Estamos caminhando para a naturalização dos retrocessos no Brasil?

O tal “novo normal” –  como se convencionou chamar esse contexto pandêmico duradouro, em especial entre as camadas médias – não tem tanto de “novo”,  tampouco de “normal”

Por Ana Beraldo, Ariane Lopes, Isabela Araújo, Isabella Matosinhos, Lívia Lages, Ludmila Ribeiro, Luana ChavesNatalia Martino, Thais Duarte e Valéria Oliveira

No Justificando

Há quase seis meses, recebíamos atordoadas as notícias sobre o alastramento da pandemia de Covid-19 pelo mundo e sobre as medidas a serem adotadas para conter o espraiamento deste novo coronavírus. Atentas a este contexto, criamos a  coluna “Por Elas: segurança e pandemia”, a fim de pensar, com base nas evidências trazidas por nossas pesquisas, os efeitos da Covid-19 nas dinâmicas de violência, segurança pública, justiça criminal e, especialmente, no cotidiano das populações encarceradas. Àquela época, acreditávamos que o isolamento social não perduraria por mais de 90 dias e que os governos (federal, estaduais e municipais) seriam capazes de somar esforços para administrar os efeitos perversos do fechamento dos serviços não essenciais.

Seis meses após os primeiros decretos de fechamento de algumas cidades brasileiras, seguido pela queda de dois ministros da saúde, um da segurança e outro da educação, somos confrontadas com um cenário aterrador. Em um país de profundas e de múltiplas desigualdades, populações historicamente vulnerabilizadas se viram agora afligidas também pela doença, pelo desemprego decorrente do fechamento do comércio e pela ampliação do descaso, sobretudo, do governo federal. As áreas pobres seguem vivenciando maiores taxas de contágio e menor acesso à saúde, sendo os moradores dessas regiões os principais alvos de mortes pelo Covid-19 e também pela violência policial. O tal “novo normal” –  como se convencionou chamar esse contexto pandêmico duradouro, em especial entre as camadas médias – não tem tanto de “novo”,  tampouco de “normal”.

Na coluna de hoje, abordamos quais foram as lições aprendidas em nosso campo de estudo desde o começo da pandemia. Quais foram os temas mais candentes da nossa coluna e o que tais assuntos nos dizem sobre a política de segurança pública e do sistema de justiça criminal durante a crise do coronavírus? Estamos diante de um quadro de aprofundamento das violações de direito – que já era comum em nossa sociedade – sob o manto da invisibilidade gerada pela Covid-19? Essas são algumas das questões que queremos responder com o texto de hoje.

Os temas abordados: mais violência durante a pandemia?

No isolamento social à brasileira, permanecer em casa, ao invés de um direito básico à saúde e uma ação de saúde coletiva, é, na prática, um privilégio de classe e de raça, denotando as desigualdades sociais estruturantes da nossa sociedade. Em decorrência desta configuração, racismo, questões de classe, machismo e violência ocuparam as redes e as manchetes a partir de casos emblemáticos de violações de direitos, negligência infantil, exploração do trabalho de cuidado e agressão às mulheres. Nesse momento, assuntos tão centrais à sociologia estavam na boca e na ponta dos dedos de cada um de nós. Nossos textos continham não apenas denúncias destas situações, mas também análises que mostraram como estes problemas, já presentes em nosso cotidiano,  tornaram-se mais exacerbados e complexos com a pandemia.

No campo da segurança pública, a violência contra as mulheres cresceu exponencialmente e poucos foram os estados que se preocuparam com ações que fossem maiores do que o Boletim de Ocorrência on-line. A mulher registra o tapa na cara, mas volta a dormir com seu marido/companheiro, posto que as questões de gênero não foram consideradas nas discussões realizadas pelo poder público. Ao contrário, alguns dos serviços que poderiam proteger a população feminina foram temporariamente suspensos. O resultado não poderia ser outro: aumento dos casos de feminicídio em várias cidades no país.

Os policiais militares e guardas municipais foram colocados na rua, muitas vezes sem máscara e álcool em gel, para atender uma série de novas demandas – como o reforço das medidas de isolamento, as chamadas de violência doméstica nos “bairros nobres” e até mesmo as brigas para abertura ou fechamento de bares. A resposta dada pelo poder público a essas novas conflitualidades foi a prisão em flagrante que também cresceu em algumas localidades, apesar de alguns índices de criminalidade, como o roubo, terem caído. Nesse contexto, o  Judiciário se vangloria do número de audiências realizadas por videoconferência, demonstrando a eficiência dessa modalidade virtual, sem questionar os impactos desse distanciamento para as pessoas que demandam justiça.  Como ter certeza se a pessoa foi ou não vítima, por exemplo, de violência policial, quando a filmagem não é capaz de captar a possível coação do agente da lei? Esse cidadão, levado à audiência de custódia, sabe pouco sobre o funcionamento dessa justiça ‘online’ ainda que ele seja o principal afetado pela mudança.

Ante à completa omissão estatal diante do cenário de pandemia, organizações criminais, como as milícias fluminenses e o Primeiro Comando da Capital (PCC), passaram a prescrever algumas medidas de distanciamento, tanto nos ambientes carcerários quanto em territórios de periferia urbana. Entretanto, longe de preservarem direitos, tais grupos recuperam e, no limite, reforçam seus discursos de legitimação a partir da suposta proteção dos mais pobres . Vale a pena lembrar que Luiz Mandetta, ex-Ministro da Saúde chegou a reforçar esses discursos de legitimação, dizendo que tais grupos eram tão eficientes na decretação de tais medidas, que precisavam ser contemplados em iniciativas do poder público.

Não podemos esquecer também da Resolução nº 62 do Conselho Nacional de Justiça, que nos ajudou a ilustrar as situações em que se encontram as mulheres e os homens custodiados em nossas prisões. Tal medida nos possibilitou também demonstrar como a crise sanitária afeta de forma direta esta população, a qual já é privada, em cenários de “normalidade”, de diversos direitos, que não somente a sua liberdade. Na pandemia, os cárceres se fecharam sobremaneira a partir da proibição de visitas familiares e da suspensão de inspeções por órgãos de controle sob a justificativa de evitar o contágio pelo coronavírus, aumentando a dificuldade de comunicação entre o mundo interno e o exterior. Neste contexto, as mulheres presas, em especial as mães, foram esquecidas nas prisões, pois, longe dos olhares públicos, elas não mobilizam qualquer emoção por parte das autoridades judiciais.

Ainda no que tange ao âmbito penal, problematizamos a situação dos policiais penais e as dificuldades enfrentadas neste trabalho. Não nos esquecemos dos demais profissionais de segurança pública, considerados como “serviços essenciais” e que, por isso, mantiveram suas rotinas de trabalho durante a pandemia. Se o medo já era um sentimento presente no relato desses profissionais antes da crise de saúde decorrente da Covid-19, ele se potencializou com a presença do vírus, elemento invisível em sua aparência, mas bastante tangível em suas consequências. Com efeito, colocou-se em pauta as reivindicações destes agentes, como melhores condições de trabalho, cujo objetivo seria protegê-los do risco de contágio.

As áreas de periferia passaram a ser alvo de inúmeras violências, mais agudas do que as experimentadas em termos de vida “normal”. O desemprego e a dificuldade em acessar o auxílio emergencial, por falta de documentação, informação ou, até mesmo, por ser familiar de uma pessoa em situação de cárcere, fizeram a renda cair. As frágeis condições sanitárias e as dificuldades ao acesso a serviços de saúde de qualidade tornaram a mortalidade por Covid-19 mais elevada  nas periferias e entre a população negra. A polícia, se aproveitando do home office de alguns órgãos de controle, passou a agir com maior intensidade e letalidade, chegando ao ponto de o Supremo Tribunal Federal ter de proibir essas incursões no Rio de Janeiro. Quem é pobre não tem paz, nem quando tenta cumprir o bordão do período: ficar em casa para evitar a contaminação.

A expectativa dos próximos meses: normalização da maior violência?

Depois de quase seis meses em contato com essa realidade, a pandemia e seus efeitos parecem ter se institucionalizado, em especial nas rotinas dos sujeitos mais vulneráveis. Com o passar dos meses e à medida que publicamos semanalmente nossos artigos, as denúncias observadas no início da pandemia mantiveram-se perenes. Inclusive, não é exagero sugerir que o cenário se agravou,  mas a repercussão da pandemia arrefeceu. Jovens negros seguem morrendo em abordagens policiais, mulheres continuam sendo agredidas em suas casas, a população carcerária do Brasil segue crescendo quando já é uma das maiores do mundo sujeita a condições aviltantes, profissionais de segurança se arriscam sem qualquer proteção e as crianças são constantemente negligenciadas e violentadas.

Depois de meses em (suposta) quarentena e frequentes casos das mais diversas violações, os dias ganharam um tom de “normalidade”. A expressão “novo normal” entrou para o nosso vocabulário, em especial nas camadas médias, sendo associada ao home office (que transfere para o trabalhador os custos do seu trabalho), ao uso de máscaras, higienização das mãos com álcool em gel e um menor contato físico. Entre as classes mais pobres, não há (ou há pouquíssimo) isolamento, porque “o pão de cada dia” depende de muito suor e sangue fora de casa, o que implica em se sujeitar ao ônibus lotado, às filas numerosas nos mercados mais populares e às residências sem infraestrutura sanitária. Essa face do  normal nos parece bastante parecida ao contexto antigo. Aliás, vivemos o antigo, mas em uma versão piorada, já que agora temos o peso das mortes das pessoas queridas, das perdas materiais e das incertezas em relação ao futuro. Seguimos invisibilizando e naturalizando as desigualdades sociais e a violência no Brasil como se nada fossem.

Pretendemos seguir com a coluna “Por Elas” nos próximos meses. Queremos nos manter firmes na proposta de evitar a banalização do “novo normal”. Atentas a isso, os temas que continuaremos a tratar aqui servem justamente para olharmos criticamente a situação de criminalidade evidenciada pela pandemia e as formas como a segurança pública e a justiça criminal respondem (ou deveriam responder) a isso. Problematizar essas questões de tal modo é essencial para que consigamos enxergar a realidade da pandemia com um olhar de estranhamento, nunca como algo corriqueiro.

Ana Beraldo, Ariane Lopes, Isabela Araújo, Isabella Matosinhos, Lívia Lages, Ludmila Ribeiro, Luana Chaves, Natalia Martino, Thais Duarte e Valéria Oliveira são pesquisadoras do Crisp da Universidade Federal de Minas Gerais.

Redação

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