Favela feliz, racismo mascarado e mulheres do lar: Que coisa mais linda é essa?

O Brasil dos anos 1959, 1960 fervilhava! A ditadura já nos rondava e muitas mulheres romperam barreiras. Com luta, dor, e com açúcar e certo afeto. Eis que, essa “Coisa mais Linda”, em 2019, está muito rasa

Foto: Netflix/Divulgação

Por Dora Martins

Em Justificando

Que coisa mais linda é essa?

É preciso dizer a você, que me lê, que este texto foi escrito num dia qualquer do começo de abril do ano de 2019. Estamos no Brasil. E, nem chegamos à metade deste ano e já temos  triste e dramático índice de mulheres mortas ou feridas por homens, sejam eles maridos, amantes, namorados, ou qualquer um deles na condição de “ex”.  A cada duas horas uma mulher é morta no Brasil, por ser mulher. Em 2018 dados mostram que crime de ódio contra a mulher teve aumento de 12% em relação aos anos anteriores. E neste ano, até fevereiro, quase 18.000 mulheres vítimas de violência de gênero, pediram ajuda, pelo 180, na Central de Atendimento à Mulher.

Eis que, no meio desse cenário preocupante, em março último, foi lançada no canal de filmes e vídeos, Netflix, uma série brasileira, intitulada “Coisa mais linda”.

E sendo mesmo linda, nas imagens e cores, tem sido apreciada por muitos e muitas, e quem recomenda até costuma dizer que nela há positiva mensagem feminista. Então, vamos ver.

E, eis que, somos levados para o ano de 1959. Tudo bonito, tudo limpinho, enfeitado, ensolarado. E a música, ah! a música é cheia de bossa! E, quem assiste aos capítulos segue embalado pela nova bossa, pelas cores do Rio de Janeiro, Corcovado, Redentor, que lindo. E tem samba, tem favela, tem morro (onde não é bom subir à noite, epa!), e tem a mocinha, o bandido, a feminista, o machista (quase todos os homens), e lá estão os conservadores e salvadores da moral e dos bons costumes. E há as mulheres, as jovens, que querem amar, que apanham sem reclamar, que querem cantar, mandar, vencer. Mas tudo com abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim.

O Brasil, hoje, caminha por rumos estranhos, a pobreza aumentando, a fome atingindo muita gente e o Rio de Janeiro, que continua lindo, com seu mar azul, e com a polícia que sobe o morro e o exército também. E é guerra, mermão!

E a gente fica, assim, meio sem graça, a perguntar o porquê de uma série, com esse jeitão, na Netflix, que atinge um público específico da classe média, num Brasil que tem ficado meio de boca aberta ante um governo que diz que a moral e a decência são valores da (nova?) família brasileira, valores esses que tem que ser garantidos nem que seja a custa de mortes e eliminação dos diferentes – LGBTS, negros, e todos quase sempre pobres. 

Olhando bem de perto, sem cantinho e sem violão, a “Coisa mais Linda” soa demodê, com sua favela feliz, com o racismo mascarado e edulcorado, com o galã bonitão meio inseguro, com seus machistas e conservadores tão óbvios e com suas belas mulheres, quase recatadas, e quase do lar, a buscar um novo espaço de fala e do feminino. E tudo a sugerir modernidade. E tudo, talvez, a querer dizer que a luta feminista havia começado. Só que não. Os temas, todos importantes para a causa feminista e feminina, atravessam-se nos vários capítulos, em falas curtas e bobinhas, tudo de modo a parecer que, vejam só, estamos falando de vocês mulheres valentes, estamos respeitando seu espaço. Homenagem ao feminino, será!?

O Brasil dos anos 1959, 1960 fervilhava! A ditadura já nos rondava e muitas mulheres, por certo, romperam barreiras, fizeram muitas manhãs de sol. Com luta, dor, e com açúcar e certo afeto. Eis que, essa “Coisa mais Linda”, em 2019, está muito rasa, muito samba de uma nota só, tudo muito sussurrado, fingindo que grita verdades inteiras! A continuar assim, não há paz, não há beleza, é só tristeza e essa melancolia que insiste em ficar.

Para quem pretende assistir, que o faça sem esquecer que neste Brasil tão injusto com suas mulheres que morrem por serem mulheres, um Brasil tão racista e nada faceiro, e que não anda nada divino ou maravilhoso, é preciso estar atento e forte. Cuidado, a Netflix tem o dom de iludir.

Dora Martins é  juíza de direito em São Paulo.

Redação

6 Comentários

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  1. Acho muito pertinente muitas coisas que você coloca, acho que muitas coisas foram rasas de fato, mas quando você diz que o mais raso da série é sobre o feminicidio, mostra que você não viu o ultimo episódio da série. Se você tivesse abordado o fato de que a primeira fase da bossa nova na verdade fez sucesso nas mãos principalmente de playboys, brancos, heteros, cis, de classe media alta, do machismo entremeado na bossa nova… Falar da forma que você diz do morro, do crescimento de mulheres negras na época, acho que mostra seu desconhecimento total do cotidiano do Rio de Janeiro, principalmente na época em questão… Outra coisa, usar dados atuais de violência contra a mulher para comparar com a época, “como se ATE hj os numeros são esses, entao antigamente com certeza eram maiores”, também acho errado, não que essa violência não existisse, mas como a Maria Rita Kehl fala, a violência contra a mulher tem aumentado, não só as denúncias e que isso está ligado a queda do patriarcado e da posição que os homens se vêem perdendo. Sem contar o principal de tudo, é uma obra audiovisual, não e baseada em fatos reais e por mais raso que seja, levantar qualquer reflexão no assunto é importante junto ao entretenimento, se a serie fosse brutal como a vida real, não existiria ficção, bastaria assistir jornalismo e documentário. Ele pode não tratar de forma literal a época e você teria argumentos bem melhores pra criticar do que esses, alem de um texto extremamente repetitivo, deixando claro que você não assistiu e só quis “lacrar” .

  2. Não é à toa que a justiça brasileira segue desacreditada. Veja o que escreveu uma “juíza” de direito. Perdi até a graça de comentar a série em questão, mas minha opinião sobre ela: é excelente!

  3. A discussão dos temas para uma PRIMEIRA temporada foi quase suficiente, pois, particularmente eu preferiria que seguissem a tendência de episódios de 55 minutos no máximo. Eu não sei muito bem como era a realidade das mulheres nesse período 59/60, o pouco que entendo é, como dito no texto, a aproximação da ditadura, reações da oposição, a classe intelectual se posicionava, as mulheres estavam conquistando sua liberdade e sendo mais corajosas, entretanto NÃO DEVEMOS ESQUECER que nem todas nossas mulheres brasileiras eram engajadas, sabiam reconhecer o buraco em que estavam. Havia mulheres conformadas sim, conservadoras que defendiam o que lhe faziam mal… mas elas não enxergavam, não é? (Alô mãe do Augusto!).
    A Malu é a musa inspiradora da série, abandonada pelo marido, rejeitada pelo pai, enfrenta o machismo dos colegas endinheirados, enfim… A Thereza é a feminista, a mulher moderna com um relacionamento aberto com o marido, a que está o tempo todo com os olhos abertos identificando as opressões que rondam as mulheres. A Adélia é a mulher preta, favelada, que sabe o seu lugar social, a existência do racismo, e as diferenças sociais que separam os brancos e pretos na sociedade brasileira da época. Lígia é o exemplo de mulher do lar. Sacrifica, por algum tempo, seus sonhos para viver para o marido, fazer suas vontades, agradá-lo, fazendo-o feliz com a desistência dos seus próprios sonhos. Seu mundo cai quando ela, motivada pelas amigas, decide correr atrás da sua felicidade. O que ganha em troca? Apanha, é estuprada, desquitada, rejeitada pela elite. Destrói a carreira política do marido, é odiada pela sogra.
    Como havia dito, para uma primeira temporada foi quase suficiente a jogada dos temas. Boto fé que eles explorem mais o machismo, feminismo, moralidade, racismo, política, na segunda temporada em diante. A série tem tudo para dar certo. Achei equivocada sua relação com as taxas tristes dos feminicídios da nossa atualidade para a série, creio que as taxas daquela época não se comparam as atuais, mas isso não anula o fato de que nossas mulheres sofreram e morreram naquela época.

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