Jornalismo vive dilema terminal diante de terrorismo de Trump, por Gustavo Conde

O resultado desse submundo do texto que se alastra por todo o espectro de nossa percepção de mundo e que fantasia a realidade para controlá-la, é um país inteiro infantilizado

Jornalismo vive dilema terminal diante de terrorismo de Trump

Por Gustavo Conde

Estamos sequestrados pela mediocridade. Vira-se o ano, estoura-se fogos, veste-se branco, celebra-se uma esperança que ninguém sabe muito bem o que é e, ato contínuo, volta-se a trabalhar para um país que detesta o trabalhador.

Jornalistas jamais entenderão isso. Jornalista vive da rotina, da repetição, do ceticismo e da passação de pano para o patrão. Jornalista passa o pano para o patrão que passa o pano para o governo (que, no caso do brasileiro, passa o pano para os EUA).

O resultado desse submundo do texto que se alastra por todo o espectro de nossa percepção de mundo e que fantasia a realidade para controlá-la, é um país inteiro infantilizado e à espera bovina das atrocidades institucionais de 2020. O timing da guerra de Trump lida com essa hipocrisia: troca-se as manchetes políticas por fogos de artifício para, em seguida, trocá-los por fogos de mísseis e do terrorismo de Estado, este o grande fiador da engrenagem da informação no mundo.

Claro que, no caso do jornalismo de cativeiro, Trump é o patrono da democracia e os atentados em Bagdá significam a defesa do povo americano seguida do intrépido combate ao terrorismo. Nem se discute. Eles publicam artigos de opinião levemente dissonantes apenas para dar a impressão de que há pluralidade, mas o texto factual é mais sujo do que algumas operações judiciais de terceiro mundo.

Nem os países-satélite dos EUA – com a exceção do Brasil – são tão coniventes assim com o terrorismo real promovido pelo Ocidente. O jornalismo político brasileiro já conhecemos: é familiar, venal, pouco sofisticado, preguiçoso e covarde. Mas o que levaria agências internacionais ocidentais a aderirem com tanta fidelidade, em seu regime de pressupostos, a narrativa imperialista?

Trata-se de um fenômeno chamado ‘discurso’, que eu costumo chamar de ‘semântica’ para simplificar. A organização dos sentidos da linguagem que fundamenta a prática do texto é tal que, sem uma técnica específica, não se pode dela desvencilhar. Essa técnica, fartamente descrita em livros de linguística, análise de discurso, filosofia e crítica literária, é ignorada pela massa global de trabalhadores do texto, aqueles que mais deveriam conhecê-la.

Para não deixar o leitor no ‘vácuo’, explico rapidamente a natureza de ‘organização de sentidos’ e da técnica para lidar criticamente com essa organização.

Provedores de sentido

Para usar o argumento da moda, mais absorvível intuitivamente, faço um paralelo da linguagem humana com as redes sociais. Muito se reclama do algoritmo, da Cambridge Analítica e da indústria de fake news que toma conta da atividade linguística-digital no mundo. Com a linguagem humana é a mesma coisa. Há provedores de sentido, gerenciadores do dizer e controladores de associações argumentativas.

Aliás, a linguagem humana precede a internet, caso alguém tenha esquecido.

Esses provedores de sentido comandam a atividade crítica que subjaz a toda e qualquer manifestação jornalística, desde a fundamentação teórica até o varejo. Um exemplo básico é o princípio da ‘neutralidade’. A neutralidade é definida no ‘dicionário’ desses provedores como branca, masculina, heterossexual e capitalista. O que for diferente disso é uma ameaça. Toda a rede semântica da produção de informação no Ocidente passa por esse filtro prévio, uma espécie de algoritmo real da atividade linguageira do homem.

Reparem que eu mesmo disse ‘homem’ para designar a totalidade da espécie. A onipresença desta lógica estruturante da linguagem é tal que não há como escapar dela nem mesmo dispondo de uma técnica ou de uma “consciência”. É possível ‘minimizar danos’.

Mais que isso, esse afunilamento do sentido é necessário para que exista progressão textual e propriamente significação, pois explicar e relativizar todos os sentidos do discurso nos levaria a uma vertigem similar a de Funes, o memorioso, personagem de Jorge Luís Borges que decorava o formato de todas as folhas de uma árvore – e que, por isso, era devorado pela própria sensibilidade, sendo relegado ao silêncio.

A tarefa de um sujeito (um leitor, um escritor, um crítico, um jornalista) seria lutar minimamente contra essa lógica opressora dos sentidos para assim poder se afastar um pouco da ideologia – em vez de replicá-la obsessivamente – e se aproximar um pouco mais de realidade factual do mundo, como, por exemplo, o “terrorismo com todas as letras” praticado por Donald Trump no Iraque.

Há um movimento crítico, intuitivo, que começa a furar esse bloqueio semântico a duríssimas penas: os novos enunciadores das pautas identitárias. Eles (elas, elxs) discutem precisamente os sentidos das palavras que são ditas e repetidas ad nauseam pelo discurso padrão, acionista majoritário de valores e de visões de mundo.

Duas observações importantes. Esses provedores de sentido não são indivíduos malvados instalados em gabinetes. Eles são um efeito estrutural e espontâneo de nossa atividade simbólica. A linguagem produz formações ideológicas internas opacas que se retroalimentam e subsidiam o discurso. Ninguém reivindica o sentido de ‘neutralidade’ que dá as cartas na produção dos textos, pois se assim o fosse, este sentido estaria irremediavelmente fragilizado na arena da disputa narrativa e, poderia, assim, ser facilmente desmascarado.

Não. Ele é invisível a olho nu, opera nas profundezas da gramática, no submundo do texto e a ele só terá acesso quem dispor de uma técnica e de um desejo poderoso de conhecer algo mais que o horizonte generoso e confortável do já dito.

A outra observação é o que efetivamente fundamenta esse provedor de sentido invisível e onipresente. A resposta é: a atividade econômica. Assim, como há uma lógica prévia e estrutural de produção e distribuição da riqueza material produzida pela espécie humana, há também uma lógica prévia e estrutural de produção e distribuição de riqueza intelectual produzida pela espécie humana.

O dinheiro, o excedente, a especulação, a riqueza natural de um país, a soberania, o poderio militar, as pressões migratórias, o protecionismo, toda essa engrenagem econômica “comprime” os sentidos do discurso de maneira a torná-los “serviçais” de sua manutenção e perpetuação.

A discussão sobre o controle do discurso nas redes sociais, que ganha força neste momento, é apenas um simulacro do mecanismo que controla toda a atividade de discurso nas sociedades humanas. A demonização de Mark Zuckerberg e de Larry Page, as mentes por trás de Facebook e Google, por mais sedutora que pareça ser, apenas ilustra indiretamente o que de fato ocorre com toda a nossa atividade simbólica aqui do “lado de fora”.

Essa demonização também serve de estratagema, pois acumula para si a energia crítica necessária para desmascarar as forças que controlam de fato o discurso de mulheres de homens, jornalistas e escritores, discurso este que opera também fora da internet, embora ambas as dimensões, digital e social, estejam em um nível de conjunção nebuloso demais para separações. O enunciado “a linguagem humana precede a internet”, pode fazer algum sentido aqui.

A técnica

Estou devendo a técnica para resistir a este assédio histórico da possibilidade de se dizer algo crítico e relativamente novo. A mera consciência dos protocolos de produção de sentido já subsidia uma leitura amplamente diferente de mundo do que as tradicionais e convencionais.

Saber que o sentido da palavras não está nos dicionários mas sim no curso de um texto já ajuda bastante. Cada texto produzido (inclusive este) tem seu dicionário particular. O que não invalida sua universalidade, pois é da natureza dos textos terem seus dicionários particulares. Dito de outra forma: se a máquina subjetiva de produzir sentido não for infinita ela morre, como no fascismo.

Evitar o saber convencional datado também ajuda muito para que se possa produzir uma prática jornalística menos precarizada e “funcionária”. Combater a fé profunda em gramáticas prescritivas e dicionários ajuda muito (alguém aqui acha que operadores bilionários consultam o dicionário para alguma coisa? Eles “compram” o sentido que querem).

A partir desta constatação, há um sem-número de protocolos técnicos de apoio para se desconstruir uma percepção apodrecida de mundo: grades semânticas, análise de sequenciamento anafórico, análise de referenciação, rastreamento de pressupostos, análise de nuvem de palavras, verificação de tempos verbais, observação do uso de modalizadores textuais e assim por diante.

Essas técnicas contemplam os textos a serem reinterpretados, mas, por isso mesmo, também servem a uma nova observação de mundo (uma observação que não enxergue ‘combate ao terrorismo’ aonde existe ‘terrorismo’).

Jornalistas

Jornalistas são pessoas simples, são trabalhadores (palavra que talvez jamais usariam para se autodesignar). Seriam os vetores de subjetividade mais importantes do mundo não fosse a subserviência estrutural que lhes é peculiar.

O estilhaçamento das táticas de redação com a chegada da internet ajuda a minimizar os danos provocados pelo cativeiro heteronormativo das redações tradicionais (que ainda sobrevivem digitalmente e causam grandes estragos na qualidade dos textos). Mas não é suficiente.

O episódio eleitoral-terrorista de Donald Trump chama a atenção para uma certa saturação previsível dos protocolos convencionais de interpretação e enunciação factual e/ou crítica. Quando a história se repete muito, ela cansa. Isso afeta a codificação de seus sentidos.

As redes sociais podem mudar o processamento deste acontecimento histórico que foi a agressão dos EUA ao Irã. A irreverência e o descompromisso com linhas editoriais mumificadas são tremendamente bem-vindos nas atuais circunstâncias de precarização do texto jornalístico.

Muitos dizem que tudo muda para continuar exatamente do mesmo jeito que sempre foi (eles acham que dizem, porque, no fundo, eles repetem aquilo que já foi dito de maneira debochada por alguém criativo há muito tempo).

O enunciado, no entanto, fica. E dele, pode-se fazer uma limonada. E o pulo do gato é: já que a possibilidade, pois, de um jornalismo menos subserviente tem se mostrado um desafio muito além de nossas posses intelectuais de turno, a solução pode estar na interpretação de texto.

Há no entorno sígnico do ataque de Trump ao Irã, neste momento, quase uma unanimidade em se desconfiar do que nos relata a imprensa ‘internacional’ (também chamada de “Ocidental” – eis a ‘neutralidade’ estrutural operando mais uma vez). Passou a ser automático traduzir as manchetes e os enunciados jornalísticos para parâmetros aceitáveis de leitura. Chamam isso, nas redes sociais, de “desmanipulação”.

É esperado que o jornalismo minta. E como talvez tenha dito Alan Turing, o inventor dos computadores, “o pior momento para se mentir é quando se espera que você minta”.

A se julgar por esta constatação óbvia que circunda a combalida prática jornalística, eu diria que esse acontecimento de 2 de janeiro de 2020, pode ser lido como uma declaração de guerra não apenas ao Irã, mas à preguiça intelectual que brinda com justiça uma profissão autocentrada demais na própria ilusão de ser uma dos pilares da democracia.

Pilar da democracia é o ser humano. Pilar da democracia é o trabalhador. Pilar da democracia é a educação. Pilar da democracia é a soberania. Pilar da democracia é a autodeterminação dos povos. Pilar da democracia é o respeito a mandatos conquistados com o voto popular.

É bom irmos nos acostumando com os sentidos “malcomportados”. Quando eles se assanham, fica difícil de segurar.

Redação

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