Lava Jato, a distopia discursiva dos piratas jurídicos, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Sérgio Moro não seria um pirata jurídico bem sucedido sem a anomalia discursiva que ele mesmo ajudou a criar e que o permitiu cometer ilegalidades

Foto: Lula Marques

Aqui mesmo no GGN afirmei que a Lava Jato foi transformada num Ser Supremo. Volto ao assunto por causa dos novos lances que movimentaram os dois campos maquiavélicos antagônicos.

O Ministro da Justiça tenta desesperadamente descriminalizar sua própria conduta e criminalizar e/ou silenciar o The Intercept. Luis Nassif chamou de “aposta final” o Decreto 666 de Sérgio Moro. De maneira geral concordo essa análise. Mas não posso deixar de mencionar algo importante: a história se tornou um abismo imprevisível em razão do desprezo pela normalidade democrática. Desde o final de 2014, sempre que uma de suas apostas finais foi frustrada aqueles que desejam controlar o poder obrigam o país a descer um degrau na escala da barbárie para que algo menos civilizado se torne uma aposta final.

Listo aqui algumas das apostas finais pelas quais transitamos de maneira descendente. Era só impedir Dilma Rousseff de governar. Era só derrubar a presidente do PT. Era só Michel Temer aumentar os salários dos juízes, extinguir programas sociais e reduzir os gastos em saúde e educação. Era só eleger Jair Bolsonaro. Era só o novo presidente seguir o programa neoliberal e agradar os militares. É só ameaçar ou expulsar o The Intercept…

O maquiavelismo do The Intercept abalou o Estado de exceção, mas não foi capaz de destruir o maquiavelismo da Lava Jato. Isso se deve a própria natureza do Ser Supremo que invadiu e conquistou o imaginário da população brasileiro com a ajuda da mídia. Parte dela continua firme ao lado dos heróis lavajateiros. A Rede Globo pode até jogar Deltan Dellagnol ao mar, mas não abandonará o verdadeiro capitão da operação.

Para entender melhor o que está acontecendo, devemos recorrer à uma metáfora.

Um punhado de navios somente se torna uma frota naval quando é capaz de se movimentar de maneira coordenada respeitando regras que são universalmente compartilhadas por todas as embarcações. Durante as operações navais os capitães tem um certo grau de autonomia, mas eles estão submetidos a um comando central. Essa realidade se reproduz dentro de cada barco: a autonomia dos membros da tripulação é limitada pela sujeição ao respectivo capitão.

O comandante geral das operações navais, entretanto, não tem vontade própria. A frota que ele comanda é um instrumento de projeção do poder do Estado. Assim como cada tripulante não pode se rebelar contra seu capitão e nenhum capitão deve se rebelar contra o comando da frota o comandante geral desta não é livre para fazer o que bem entender. Ele deve cumprir as deliberações do Estado e não pode se sujeitar a uma potência estrangeira.

A diferença entre uma frota naval e um barco pirata é evidente. “Navios piratas eram verdadeiras repúblicas, cada navio (ou frota), uma democracia flutuante independente.” (Utopias Piratas, Peter Lamborn Wilson, Conrad Livros, São Paulo, 2001, p. 172).

A Lava Jato foi concebida para operar como parte integrante de uma frota naval (metáfora do Poder Judiciário). Rapidamente, ela começou a agir como se fosse uma embarcação pirata. A tendência dos membros da operação a praticar pirataria jurídica piorou depois que o TRF-4 proferiu aquele famoso Acórdão dizendo que a Lava Jato não precisava cumprir a Lei.

Nunca é demais lembrar que a grande imprensa legitimou quase todos os abusos que foram cometidos pela Lava Jato. Os jornalistas se referiam aos membros da operação de maneira elogiosa como “República de Curitiba” enquanto depreciavam a corrupção que dominava a “República do Brasil”. Os média chegaram ao cúmulo de aplaudir o acordo internacional celebrado pelos heróis lavajateiros como se eles pudessem violar as regras constitucionais que outorgam ao Presidente da República o dever de representar o país no exterior e ao Itamaraty o poder de negociar com potências estrangeiras.

A guerra entre a Lava Jato e o The Intercept é apenas o desdobramento de um grave conflito político que ameaça e degrada o sistema constitucional brasileiro. Desde que conseguiu controlar o Judiciário e migrar da periferia para o centro do poder político, a Lava Jato sofreu uma mutação. A operação era uma “democracia flutuante independente” que não observava quaisquer regras jurídicas. Agora ela está se transformando numa tirania entrincheirada que luta para não afundar em razão do peso das contradições que a hegemonia do discurso Lava Jato criou.

“O homem deixa de ser idiota quando sai de si, quando percebe que há outros eus com direitos iguais aos seus, que não sobrevive por si mesmo, que é com os outros que ele se constrói no com-um. Para quem sai de si, tudo é problema; há pedras no caminho. Heráclito propõe o discurso como recurso para unir o que de outra forma se dispersaria e para se comunicar com os demais. O discurso tira da idiotice sem destruir os que concorrem. O discurso é proferido em lugar comum a todos, o discurso constitui o lugar comum, dispondo um falante diante de outro sem hegemonia. O discurso faz de todos um sem prejudicar nenhum. O discurso não subordina. Acolhe sem tolher. Comum é o lugar onde discursos concorrem. Sem o Discurso, falas se isolam na idiotice.” (Origens do discurso democrático, Donaldo Schüler, L&PM Pocket, Porto Alegre, 2007, p. 61/62)

O discurso Lava Jato não admitia e não admite outros eus, sua finalidade não era e não é unir e sim dispersar e, eventualmente, esmagar outros discursos. Como rejeitava e rejeita a Lei e/ou aplaudia e aplaude sua violação, ele não prejudicou apenas as vítimas da pirataria jurídica (Lula incluído entre os tais), mas todo o sistema de justiça brasileiro. Destruindo o lugar comum onde todos poderiam falar e em que todos os discursos podiam exercer uma parcela do poder sem ser prejudicados, o discurso Lava Jato se tornou uma ameaça para o próprio jornalismo. Em razão de suas características totalitárias vai legitimar estruturalmente a perseguição a Gleen Greenwald.

Fonte da idiotice que não acolhe qualquer diferença, o discurso Lava Jato mergulha o país numa barbárie sem precedentes. E nós já estamos tão atolados nela que um Ministro da Justiça se tornou capaz de promulgar uma Portaria para expulsar do país seus desafetos como se ele mesmo fosse o verdadeiro presidente da república.

Os chats telefônicos divulgados pelo The Intercept provam a tese de que “As ideologias são facilmente internalizadas quando o egoísmo e auto-imagem coincidem com a retórica e os objetivos ideológicos.” (Utopias Piratas, Peter Lamborn Wilson, Conrad Livros, São Paulo, 2001, p. 47). Enquanto a imprensa atacar ferozmente os hackers e aplaudir a expulsão dos jornalistas considerados incômodos continuaremos vítimas da idiotia instituída pelo discurso Lava Jato.

A democracia brasileira não está em frangalhos por causa da esquerda e sim por que a direita permitiu aos heróis/vilões lavajateiros (verdadeiros piratas jurídicos) hackear todo o sistema de justiça brasileiro. Entretanto, foi o discurso Lava Jato que possibilitou que vários procuradores, juízes, desembargadores e ministros do STJ e do STF passassem a agir como se fizessem parte de uma quadrilha ou bando que despreza a legislação para poder se ajustar aos objetivos ideológicos da “democracia flutuante independente” que promulga decretos inconstitucionais para virar tirania entrincheirada.

Não é por acaso que Sérgio Moro já atua como se fosse um chefe de quadrilha como disse o presidente da OAB. Principal redator, locutor e beneficiário do discurso Lava Jato ele é incapaz de tolerar qualquer notícia que desafie o conjunto de mentiras repetidas à exaustão que transformou em verdade compartilhada os supostos benefícios da destruição do espaço comum (onde todos os discursos podiam conviver e resultar em políticas públicas).

Jair Bolsonaro não sobreviveria politicamente como uma anormalidade dentro de um Estado em que os cidadãos pudessem exigir respeito sem serem engabelados pelo discurso Lava Jato. Sérgio Moro não seria um pirata jurídico bem sucedido sem a anomalia discursiva que ele mesmo ajudou a criar e que o permitiu cometer ilegalidades.

Qual das duas tiranias é pior? A dos homens ou a do discurso? Presidentes e Ministros da Justiça passam e eventualmente morrem. Anomalias discursivas, entretanto, podem ser insufladas indefinidamente por aqueles que se pretendem comandar a agenda pública e controlar o orçamento sem disputar eleições.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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