Lava Jato chega ao Peru, mas mídia e políticos locais silenciam sobre corrupção

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – Os esquemas de pagamento de propina entre agentes públicos, políticos, empresários e doleiros investigados na Lava Jato não se limitaram ao Brasil. O Peru também ganhou uma espécie de CPI que apurou os desdobramentos de crimes praticados por OAS, Odebrecht, Andrade Gutierrez, entre outras companhias, naquele país, a partir de depoimentos de Alberto Youssef.

A diferença é que, aqui, a Lava Jato reina no noticiário e até é usada para derrubar presidente da República. No Peru, a atenção é pífia, tanto que o relatório da CPI, com mais de 600 páginas e vários possíveis indiciados, está sendo “silenciado”. É o que mostra reportagem reproduzida na Agência Pública.

O relatório silencioso

Da Agência Pública

A solidão obscura dos arquivos do Congresso peruano pode ser o destino final do relatório do presidente da Comissão Investigadora do caso Lava Jato, que desde novembro do ano passado busca identificar as ramificações da investigação brasileira no país vizinho. Seu nome verdadeiro é bem maior: Comissão Investigadora Encarregada de Investigar o Pagamento de Supostas Propinas a Funcionários Peruanos por parte de Empresas Brasileiras Odebrecht, Camargo Corrêa, OAS, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e outras, desde o Início de suas Atividades até a Data, por Qualquer Forma de Contrato com o Estado Peruano. Mas não é apenas o nome que é incomum. O fato de o presidente da comissão, o deputado independente Juan Pari, assinar o relatório final sozinho também é incomum – e inquietante.

O detalhado relatório corre o risco de nem sequer ser apresentado ao plenário do Congresso peruano. Isso porque a sessão extraordinária para sua apresentação deveria ter ocorrido no dia 30 de junho, em meio ao recesso parlamentar. Para isso, eram necessárias 78 assinaturas de políticos. Só 66 assinaram. Sem discussão no plenário, nada de cobertura na TV, manchetes na imprensa ou debate público.

“Considerando que não existiu consenso entre os membros da Comissão Investigadora para aprovar o informe, mesmo após havermos descartado várias conclusões e recomendações feitas pela Presidência da Comissão Investigadora – itens que, a nosso ver, são medulares na busca da verdade sobre os possíveis atos de corrupção que ligariam representantes de empresas brasileiras e funcionários públicos peruanos –, consideramos conveniente apresentar ao plenário do Congresso da República e aos cidadãos um informe que contém cada uma das conclusões e recomendações, com a finalidade de que se tenha completo conhecimento da magnitude da investigação”, explicou Pari no texto do documento, quando ainda buscava as assinaturas.

À esquerda, o deputado Juan Pari assina sozinho o relatório mais completo sobre o esquema de propinas, elaborado após nove meses de investigações (Foto: Agência Peruana de Notícias/Andina)

A falta de exposição pública não se deve à falta de esmero. O relatório de 650 páginas resulta de um destemido esforço de investigação durante os poucos meses que durou a Comissão. O relatório afirma que o “cartel de caráter criminoso” constituído no Brasil pelas empresas Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, OAS, UTC, Queiroz Galvão e outras “havia transferido suas operações e procedimentos ilegais ao Peru, convertendo o Estado peruano em seu contratante, replicando assim o papel da Petrobras; prejudicando o erário público do Peru. E convertendo o Peru em uma sorte de paraíso tributário-financeiro”. Os cúmplices, aponta Pari, são fundamentalmente “funcionários do Estado peruano que participaram destes atos [ao haver] cometido e/ou permitido o pagamento de propina por parte das empresas brasileiras”.
Por meio de diversas fontes confidenciais, o site IDL-Reporteros, parceiro da Pública, obteve e publicou na íntegra o informe do congressista. (Veja aqui)

São relatos de envio de dólares em dinheiro vivo, algumas vezes atados às calças de doleiros contratados por Alberto Youssef. Aparecem no relatório nomes como OAS – esta repetidas vezes –, UTC e Camargo Corrêa. Os dados citados fazem parte dos depoimentos tomados por dois procuradores peruanos, Hamilton Castro e Sergio Jiménez, de alguns réus da Lava Jato, em Curitiba.

O esquema, de acordo com as declarações de Youssef, era usado por membros de construtoras brasileiras para o pagamento de propinas a funcionários governamentais peruanos que haviam facilitado contratos milionários. Tudo em dinheiro vivo. “Ele assegurou que várias vezes ordenou a retirada de valores do Brasil e os transportou em espécie ao Peru para ser entregue a diretores e funcionários da OAS neste país”, diz o documento do Congresso peruano. Youssef se valia de outros doleiros, como Adarico Negromonte e Rafael Angulo López, além de Carlos Alexandre Rocha (conhecido como “Ceará”), que viajavam pessoalmente ao Peru e levavam o dinheiro colado ao corpo.

“Segundo Youssef, cada vez que essas pessoas entregavam o dinheiro no Peru, ligavam ou enviavam mensagens avisando sobre a entrega. E Youssef avisava Alexandre Portela, [executivo] da OAS”, diz o documento. As remessas da OAS para o Peru ocorreram entre o final de 2012 e março de 2014. Foram realizadas aproximadamente dez viagens, totalizando ao redor de US$ 2 ou 2,5 milhões. O doleiro, no entanto, disse não se lembrar do nome do funcionário da OAS no Peru que recebia os valores.

Youssef relatou também aos investigadores peruanos que no começo de 2013 foi procurado pelo vice-presidente da Camargo Corrêa, Eduardo Leite, e o diretor financeiro da empresa para discutir como retirar do Peru uma verba relativa ao lucro de uma grande obra no país. A preocupação era fugir da tributação no Brasil. Youssef manifestou que poderia conseguir uma empresa chilena de fachada para receber os recursos – graças a um acordo de comércio entre o Peru e o Chile, o custo seria menor. A negociação não prosperou.

A UTC também figura no relatório por causa de uma transação feita em 2013. O doleiro contou aos promotores peruanos que Ricardo Ribeiro Pessoa, dono da UTC Engenharia, e Walmir Pinheiro, diretor da empresa, pediram que ele mandasse US$ 100 mil ao Peru para abrir um escritório no país. O dinheiro foi enviado por meio de duas transferências de uma conta em nome de Leonardo Meirelles (DGX o RFY) . Segundo o relato de Youssef, o dinheiro foi enviado a uma conta específica de um funcionário no Peru indicado por Pessoa – conta que já está sendo investigada pelas autoridades peruanas.

Leonardo Meirelles é outro doleiro que fazia remessas de dinheiro ao exterior. Em 22 de janeiro de 2016, Meirelles declarou na sede da Procuradoria da República em Curitiba que três anos antes “se reuniu na sede da empresa OAS em São Paulo com Alberto Youssef e o senhor Mateus, responsável pelo setor financeiro da empresa, que solicitou os serviços de Youssef para a entrega de dólares no Peru, e que a partir desse momento começaram a ocorrer entregas semanais de recursos em efetivo no escritório de Youssef de aproximadamente R$ 800 mil a R$ 1 mihão”.

Meirelles fez aproximadamente 18 transferências para o Peru, tendo como destinatário Gary Luty Dávila Alverdi, indicado pela OAS. Segundo Meirelles, algumas transferências foram feitas da conta da sua empresa DGX, no HSBC de Hong Kong, ao Banco Continental do Peru.

Segundo o relato de Meirelles, desde 2010 Youssef ordenava o uso das contas no Brasil e no exterior para movimentação de dinheiro obtido ilicitamente, tendo como destinatários sempre políticos peruanos ou seus emissários. No seu caso, as remessas de valores ocorriam por meio de contratos de importação futura de insumos farmacêuticos fictícios. Ele recebia uma comissão de 1% do valor bruto depositado e mobilizou entre 2009 e 2013 aproximadamente US$ 120 milhões.

Dólares nas calças

Outro doleiro delator, Rafael Angulo López, contou que foi ao Peru três ou quatro vezes entre 2013 e 2014 a mando de Youssef. Sempre se encontrava com Alexandre Alves de Mendonça, representante da OAS, em hotéis em Lima. Ele descreveu o ritual: ao chegar ao hotel, ligava para Alexandre, que ia até ele e subia ao quarto para receber o dinheiro vivo. Em troca, dava um recibo atestando a entrega. Logo depois, Mendonça ligava para Alberto Youssef confirmando a transação. Ele não falava com mais ninguém em Lima. Suas passagens e reservas de hotel eram compradas pela empresa Marsans, de Youssef. Nunca ia e regressava pela mesma companhia aérea.

Presidente Ollanta Humala em visita a uma das obras da OAS no Peru: o Centro de Convenções de Lima (Foto: Presidência da República do Peru)

Rafael contou ainda que, em uma viagem, trouxe US$ 120 mil atado às próprias pernas, assim como outro doleiro, Carlos Alexandre Rocha, conhecido como “Ceará”. O relato de Ceará à Lava Jato também foi destacado pelo deputado Juan Pari: “O colaborador Carlos Alexandre de Souza Rocha afirmou que nos anos 2013 e 2014 viajou ao Peru (quatro ou cinco vezes) a pedido de Alberto Youssef para entregar dinheiro à filial da empresa OAS neste país. Em cada ocasião, transportou US$ 300 mil, tendo recebido 3,5% de comissão”. Em Lima, o dinheiro era entregue sempre no hotel Meliá, de cinco estrelas, que fica no chiquérrimo bairro de San Isidro, a pessoas diversas, incluindo peruanos.

O relatório do deputado Pari afirma haver indícios de corrupção transnacional que comprometem seriamente não apenas o atual governo de Ollanta Humala, cujo mandato acaba em 28 de julho, mas também os governos dos ex-presidentes Alejandro Toledo e Alan García. Para Pari, esses “procedimentos têm antecedentes desde os anos 1980; mas é a partir do ano 2003 e durante os três últimos governos que se tornaram frequentes, via os denominados megaprojetos que comprometem bilhões de dólares do Tesouro Público financiados pelos contribuintes”. Diante da falta de uma audiência no Congresso, Pari pretende enviar o informe para Fiscalía de la Nación, órgão similar à Procuradoria-Geral da República (PGR) brasileira.

Texto baseado na reportagem original de Gustavo Gorriti, em espanhol. O texto foi editado e adaptado por Natalia Viana.

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