Mídia alternativa tem dado mais visibilidade à pauta indígena, por Ivangilda Bispo dos Santos

Debater publicamente a questão racial e étnica pode contribuir com a desconstrução de estereótipos, práticas racistas e políticas excludentes

Por Ivangilda Bispo dos Santos

Em Pensar a Educação

Racismo, raça e etnia: reflexões e aprendizagens a partir das mobilizações indígenas

O racismo não se restringe aos povos negros, apesar da associação ocidental entre Negro, África, Escravo e Raça – como aborda Achille Mbembe. Nos últimos dias tive acesso a vários conteúdos que abordam a questão do racismo contra os povos indígenas que ressaltam a agência desses sujeitos e algumas de suas pautas na atualidade. Irei resumi-los a seguir.

Assisti duas lives que me chamaram atenção: Indígenas acionam STF para garantir direito à vida e As elites mostram sua cara. Na primeira, o Doutor Luiz Eloy Terena é entrevistado pela repórter Cintia Alves (TV GGN). O Dr. Eloy, que é um dos advogados que assessoram a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e pertence ao povo Terena, localizado no Mato Grosso do Sul, divulgou dados preocupantes: até o dia 28 de junho de 2020, 308 indígenas haviam morrido devido a COVID-19, 9.414 foram contaminados e 114 povos atingidos. O grande temor apresentado por ele é o genocídio dos povos originários de nossa sociedade devido à falta de mobilização sistemática e histórica do poder público em criar ações efetivas de proteção desta parcela significativa da nossa população. Ele mencionou a existência de 114 grupos isolados que não entram nos 305 povos registrados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e chama atenção para os indígenas que estão em contexto urbano, que sofrem muito com o racismo institucional. O Dr. Eloy Terena ressaltou a urgência da adoção de medidas de proteção coletiva, como o estabelecimento de barreiras sanitárias, homologação das terras indígenas, a importância de serem considerados pelas políticas públicas os indígenas que estão em contexto urbano e áreas de conflito, a elaboração de um plano de enfrentamento da COVID-19 que seja construído junto com os povos indígenas e a demarcação dos territórios – patrimônio público federal fundamental no equilíbrio climático e humanitário.

A segunda live se refere ao debate entre Silvany Euclênio, Tayse Campos e Sylvia Siqueira – conduzido pelo jornalista Mauro Lopes (TV 247). Tayse Campos, que é historiadora, liderança indígena e mestranda em Antropologia, pertence ao povo Potiguar, localizado no Rio Grande do Norte. Ela apresentou a história de opressão de seu povo e levantou várias questões ignoradas, silenciadas e negligenciadas pelas grandes mídias como: o genocídio; a discriminação das crianças no contexto escolar; a subnotificação de contaminação e óbito devido a COVID-19; fluxos migratórios contemporâneos; e o apagamento de suas identidades por meio do integralismo e por meio da declaração raça/cor, especificamente associada à identidade negra, por parte do IBGE. Esta historiadora afirmou que no processo de heteroidentificação racial realizada pelos/as recenseadores/as, milhares de indígenas são identificados como pardos ou pretos. Também relatou que essa discussão tem sido feita entre os povos indígenas, e destes junto ao IBGE, com o intuito de preparar os profissionais que vão às aldeias.

Na mesma semana que assisti aos vídeos mencionados acima, li a reportagem “O indígena também deve ser incluído na pauta antirracista”, diz advogada e ativista, publicada no site almapreta.com, no qual a advogada Juliana Guajajara afirmou o seguinte: “O racismo contra nós vem mascarado, não fica muito evidente porque sequer sabem o que é ser indígena. A construção da estrutura conseguiu apagar boa parte de nossas históricas. Nós sofremos violações há 520 anos. Os colonizadores chegaram para dominar, extrair e saquear tudo o que tinha para oferecer. Isso inclui a nossa mão de obra que foi utilizada compulsoriamente nos primeiros anos desta chegada, fomos escravizadas e ainda hoje sofremos resquícios irreparáveis desse triste episódio. As nossas desigualdades são enormes. […] Se nós que vivemos nas cidades não temos anticorpos para combater esse mal [COVID-19] imagina quem vive nas aldeias”.

Essas falas me mobilizaram a escrever o presente texto, sobretudo a da historiadora Tayse Campos relativa ao processo de heteroidentificação racial realizada pelos/as recenseadores/as do IBGE. A partir destes relatos, cabe afirmar que raça e etnia não são conceitos sinônimos – apesar de muitos/as usarem neste sentido, terem origens nos processos coloniais e muitas vezes se darem de forma relacional. Esta confusão prejudica a compreensão sobre a constituição social brasileira, assim como a diversidade étnica dos povos que a compõe (originários da América, da África, da Europa, e de outros continentes). Como menciona Jean-Loup Amselle e Elikia M´Bokolo, se na grande mídia o termo etnia pode estar associado a falsa noção de  selvageria e tribalismo de determinados povos, sobretudo quando são abordadas as sociedades do continente africano, na atualidade, no campo das ciências humanas, este conceito remete à complexidade, multiplicidade e ao caráter performativo das identidades sociais.

A reflexão que quero deixar é a seguinte: o Movimento Indígena nos mostra que, além da necessidade de difusão do diálogo sobre as dinâmicas e a configuração do racismo na sociedade brasileira, devido o processo de miscigenação que alguns povos tiveram, há sujeitos indígenas que se autoidentificam e/ou são heteroidentificados como brancos, pardos ou negros. Assim, o termo indígena tende mais para uma macro categoria identitária de cunho étnico do que racial – apesar de, como já mencionado, também serem vítimas do racismo e estarem inseridos em dinâmicas socio-históricas de racialização. Acredito que o caráter educativo deste movimento se faz presente mais uma vez. Afinal, como mencionado pela historiadora Tayse Campos Potiguar, uma pessoa identificada racialmente como parda ou preta não a exclui de sua identidade e pertencimento indígena. No mesmo sentido, uma pessoa moçambicana negra pode pertencer ao povo Macua, e um brasileiro, branco ou negro, pode pertencer ao povo Calon. Em outras palavras, a identidade racial não exclui a identidade étnica.

Cabe contextualizar brevemente que, se antes a palavra indígena era usada para homogeneizar, tentar apagar as identidades coletivas e como um instrumento de repressão e subjugação, a partir da segunda metade do século XX, como abordado por Daniel Munduruku, o Movimento Indígena ressignifica este termo com o intuito de fortalecer a luta em prol de direitos historicamente negados pelos brancos. Nesse sentido, indígena é um termo que abarca diversos povos – Caiapós, Xavantes, Pataxós, entre muitos outros.

Com base na reflexão acima, percebe-se que as mídias alternativas aos grandes veículos de informação têm proporcionado uma visibilidade maior em relação às pautas e às lideranças indígenas. Como demonstrado, debater publicamente a questão racial e étnica pode contribuir com a desconstrução de estereótipos, práticas racistas e políticas excludentes. Complementarmente, é preciso entender que o processo de racialização no Brasil não se restringe as pessoas negras. Os brancos, por exemplo, estão inseridos neste imaginário enquanto “sujeitos universais” e “raça superior” – passando uma noção de um macro grupo desracializado. Compreender o sistema de vantagens da branquitude é tão importante quanto entender o racismo estrutural imposto aos indígenas, aos afro-brasileiros e aos africanos que aqui vivem. A partir da compreensão desta estrutura que conseguiremos caminhar para relações étnico-raciais que sejam antirracistas.

Por fim, cabe enfatizar que nossas vidas importam! Lembremos-nos de Alvanei Xirixana, João Vitor da Rocha, Miguel Otávio, Paulinho Paiakan, João Manuel, José Carlos Ferreira Arará, entre tantos outros.

* Historiadora e Mestranda em Educação: Conhecimento e Inclusão Social.

 

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Redação

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