Ocupar o espaço público para oxigenizar a esfera pública

[Originalmente escrito em 20/06/2013]

A discussão sobre o sentido das mobilizações sociais recentes e sobre quais seriam suas demandas concretas surge não só da perplexidade dos “especialistas” frente a um evento quase sem precedentes em nossa história mas, principalmente, por sua ocorrência em um contexto de alta aprovação popular do governo federal concomitante a um evento esportivo que, seria de se esperar, manteria as pessoas ocupadas em frente a suas televisões pela administração correta do “ópio do povo”. As comparações feitas com o Occupy e com a primavera árabe talvez não consigam explicar exatamente isto: como uma população que não se encontra frente a um regime político ditatorial e nem em uma situação de franca decadência material se expressa, ainda assim, de maneira tão expressiva nas ruas?

Isso se deve provavelmente pelo fato de que estas análises perdem exatamente o ponto fundamental: o sentimento difuso e generalizado compartilhado por todos não se deve a questões econômicas e políticas imediatas, mas sim à própria atrofia do público estipulada pelo projeto político hegemônico nas últimas décadas. As mobilizações nascem como reação à falta de debate sobre o público, interdito em uma esfera pública esclerosada por interesses corporativos e privados. Os custos sociais dos eventos da FIFA possuem esse caráter eminentemente público: suspensão seletiva de direitos, remoções forçadas de famílias e comunidades, apropriação do espaço público por patrocinadores dos eventos. Esta interpretação se reforça ainda pelo fato do movimento haver nascido completamente por fora dos canais institucionais que operam exatamente esta atrofia do público: os alvos das manifestações são diversos, mas basicamente se referem a símbolos de poder econômico e político, institucionais. Tendo em vista esse diagnóstico, as mobilizações são, ao mesmo tempo, seu sintoma e seu expediente, o primeiro ensejo de oxigenização da esfera pública, de instauração de uma pauta alternativa àquelas colocadas pelos distintos níveis de governo, pelos partidos, pela mídia e pelos grandes grupos empresariais e corporativos: a pauta da reorganização da esfera pública por meio de um debate público não-mediado, possível pela emergência de um ponto de discussão coletivo que permitisse ao conjunto da população uma referência comum: a própria tomada do espaço público. Essa referência comum, é claro, comporta pontos de vista dos mais diversos, boa parte destes conflitantes. Deste processo, é de se prever, se ensejará um aprendizado coletivo, de caráter eminentemente político. Se essa interpretação estiver correta, é de se esperar que, ao contrário das manifestações de maio de 1968 e sua busca pela diversidade, as manifestações atuais se orientam na direção da afirmação da coletividade como ponto de apoio para um novo projeto político que tanto falta a nosso país. Porém, os desdobramentos mais concretos não são previsíveis.

O capítulo que agora vivemos é composto por três movimentos que delimitarão as consequências futuras das mobilizações: primeiro, aqueles que se orientam na direção da mobilização ou desmobilização pública das massas, engendrando a perpetuação ou o declínio relativos das demonstrações; segundo, aqueles ligados à disputa pela interpretação legítima de seus sentidos e significados; terceiro, aqueles referidos à disputa pela liderança do movimento, de seus representantes legítimos em meio à massa mobilizada. É fundamental que, em meio a forças divergentes e até mesmo antagônicas, as mobilizações mantenham seu estoque de energia voltado para a ampliação dos horizontes de possibilidade da questão pública brasileira, sabendo evitar a ação daqueles que querem transformá-las em mais um exemplo de que “nesse país, nada dá certo”. O sentido da expressão “imagina na copa” adquirirá, a partir de então, um significado completamente distinto.

 

Belo Horizonte, 20 de junho de 2013

Redação

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