No Dia dos Pais, enfrente os Bolsonaro, em nome das famílias brasileiras, por Luis Nassif

Aquele valhacouto familiar, explodindo ódio e preconceito por todos os poros, com personagens saindo das entranhas do filme Amargo pesadelo, não pode ser a expressão da família brasileira

Ultimamente tenho pensado mais em seu Oscar, e não necessariamente pelo Dia dos Pais. Penso nele em cada momento em que Bolsonaro conspurca o conceito de família brasileira, em cada ato de ódio, de intolerância, em cada humilhação que impõe ao país, como uma cloaca aberta.

Aquele valhacouto familiar, explodindo ódio e preconceito por todos os poros, como personagens saindo das entranhas do filme Amargo Pesadelo, não pode ser a expressão da família brasileira. Em várias comunidades, tribos bárbaras, como a dos Bolsonaro, foram contidas em sua aspereza, selvageria, foram derrotados, mais que isso, domesticados pelos ventos civilizatórios emanados dos cidadãos de boa índole, que ajudaram a construir a sociabilidade, com o exercício diuturno da solidariedade. Como seu Oscar.

Sempre foi fundamentalmente um cidadão público, na melhor acepção do termo. O pai, Slaib, que se tornou Luiz, saiu do Libano com cinco irmãos, chegou em São Paulo, os irmãos ficaram por aqui, parte em São Paulo, parte na região de São João da Boa Vista, e foi para Rosário, Argentina, onde meu pai nasceu.

Vô Luiz se casou com minha avó Carmen, de família libanesa de Mendoza. Quando ela contraiu tuberculose, mudou-se para Quilmes e montou comércio em Porto Madero. Morta minha avó, deixando o caçula Oscar com apenas 6 anos, perdeu o rumo, os negócios e veio com a família para o Brasil.

Passaram por São João da Boa Vista e chegaram em Poços quando Oscar tinha 10 anos. Como me contou certa vez Lindolfo Carvalho Dias, seu amigo, “com dez anos seu pai era argentino, com dez anos e um dia se tornou mineiro”.

Poços se tornou para sempre sua cidade natal. O dia mais feliz de sua vida foi quando conseguiu a naturalização e se tornou Cidadão Honorário de Poços.

Quando acabou o jogo, e Poços se tornou efetivamente uma cidade, os jovens poçoscaldenses montaram suas lojas em quatro quarteirões entre a rua Junqueira e a Marechal Deodoro e começaram a trabalhar pela cidade. Cresceram juntos, desenvolveram seu comércio e se uniram para construir a cidade.

Seu Oscar entrou na maçonaria, da qual saiu para se casar na Igreja, no Rotary, no Lions, tornou-se diretor de futebol da Caldense, dirigiu a seccional do Conselho Regional de Farmácia, ajudou a construir o próprio Conselho Federal, foi tesoureiro da Santa Casa, enfim, tudo o que significava melhoria para a cidade.

Trombadas na adolescência me impediram de conhece-lo melhor. A busca de seu Oscar se deu após sua morte, com relato dos mais surpreendentes.

Como o do pipoqueiro que tinha carrinho em frente o cine Belas Artes. Tinha problemas de deficiência e foi parar em frente à Farmácia Central. Seu Oscar colocou-o no carro, veio para São Paulo, conseguiu um tratamento na Beneficência Portuguesa. E terminou financiando um carrinho de pipoca para ele. Nunca soube disso até o momento em que o rapaz veio me visitar e relatou o ocorrido.

Ou o senhor que cuidava da piscina do Pálace Hotel e que era freguês da farmácia. No Natal, a farmácia expunha brinquedos na vitrine. Ele parou para olhar. Sabendo que tinha filhos, seu Oscar perguntou se não queria levar brinquedos para as crianças. Ele disse que não estava em condições de gastar. Não tinha problema. Brinquedo é primeira necessidade, ainda mais no Natal. Leve e pague quando puder.

Quando montei o blog, ainda na UOL, recebi outros depoimentos. Como de um empresário poçoscaldense, que se tornou pessoa de posses, que me relatou como superou a barreira psicológica que impede os pobres de ascenderam.

Ele e o irmão passavam em frente à farmácia, com roupas simples, quando papai chamou-os. Perguntou o que faziam. Não tinham emprego, embora precisassem. Imediatamente foram contratados para lavar vidros na farmácia.

Os funcionários saiam para almoçar em suas casas. E os meninos ficavam na farmácia. Indagado por meu pai, explicaram que não tinha almoço em casa. Imediatamente se tornaram comensais da dona Tereza.  Foi esse gesto que os convenceu que podiam frequentar qualquer ambiente, sem complexo, me disse um deles.

Outro relato me foi enviado por uma vizinha que morava na rua Rio de Janeiro, no início da subida do morro de São Benedito, um quarteirão com uma leve ladeira. Quando foi asfaltado, motoristas abusavam da velocidade. Seu Oscar juntou a criançada, explicou que a rua era deles. Juntos, pintaram faixas com alertas para não correr. Quando um carro ensaiava uma imprudência qualquer, os meninos esticavam a faixa.

Em toda minha vida, nos momentos cruciais, em todas as grandes crises que se instalavam no país, é a imagem do meu pai que me aponta o mundo a seguir. E seu imenso amor, e o de minha mãe, pelo Brasil acompanhou todos os filhos e netos.

Por isso, a cada reação contra os desmandos de Bolsonaro, contra a humilhação cotidiana imposta ao país, estou defendendo a memória do seu Oscar e da dona Tereza, de toda uma geração, em um momento em que o país se urbanizava, ajudaram a plantar as sementes da solidariedade e do amor pelo Brasil, um amor fincado na generosidade, não no ódio.

Luis Nassif

29 Comentários

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  1. Em um governo que aprisiona qualquer um injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo é a prisão”

    – Henry Thoreau, Desobediência Civil

  2. Lindo demais!!! Que sorte a nossa que seu Oscar veio para o Brasil. E ele sabia que criou o maior jornalista de nosso país? Muito obrigada!!

  3. Lindo demais!!! Que sorte a nossa que seu Oscar veio para o Brasil. E ele soube que criou o maior jornalista de nosso país? Muito obrigada!!

  4. Belíssimo texto. Nassif um sobrenome que ser tornou bem brasileiro. Eu bem gostava de saber como um povo, individualmente acolhedor e amável, é capaz de se transmutar numa turba de misóginos preconceituosos com sede de vingança contra quem nunca lhes fez mal algum.
    Eu, um tanto mais jovem que você, perdi a força e o brilho, a esperança de realizar, de viver e de me orgulhar por ser brasileiro. Sinto muito por meus filhos peço perdão pelo país que lhes entrego.

  5. Uma história linda e humana, seu Nassif…… E que nos deixa a verdade que essencía o texto, que lhe dá a alma em relação ao seu contexto: que somos, muito, muito, o “caldo” desses exemplos vindos de nossos avós e nossos pais, que a tal “família brasileira” (e quem tem amigos em comunidades carentes sabe o quanto isso é REAL…) tem na solidariedade, no respeito ao outro, no espírito fraterno, sua base cultural, é quase como um “arquétipo” – que, e falo isso com imensa tristeza e frustração… – perdeu-se um tanto nessa geração que hoje está entre os 40 e 60 anos, em nossas classes médias, que pouco se importam com o destino dos milhões de miseráveis à sua volta. Narcísicos, muitos tornaram-se fúteis com o tempo, e presas fáceis da perversa manipulação midiática que empestiou nosso ambiente social – inclusive com brigas dentro das famílias… – ao ensiná-los a ODIAR…..
    Bom seria se refletíssemos mais nesse passado, não tão distante assim, de cordialidades, de conversas nas calçadas, de tempo sobrando para o convívio das pessoas, das famílias…..
    Éramos um país longe da pujança econômica de hoje,
    mas o ar era mais respirável…..

  6. É certeza, assim como a Terra é redonda, que Bolsonaro e o bolsonarismo emergiram do ranço conservador das pautas anti-CLT, anti-homo, anti-espiritas, anti-refugiados… na verdade, tentando esconder a frustração dos milhões de negócios falidos por acreditarem no keynesianismo petista.
    Também é certo que a ideologia de direita atual não se sustenta nos próximos anos, principalmente depois que Macri e Trump não conseguirem e nem quererem suas reeleições para presidente de seus países.
    Por isso, os progressistas devem gastar todas suas energias em uma agenda mais atuante e mais agregadora para já já em 2022, em detrimento dessa direita natimorta e do degredo da esquerda, que tem grandes dificuldades em enchergar um palmo no futuro.
    Exemplo disso, foi o relato entusiasmado de um membro do sindicato dos motoristas de ônibus coletivo de São Paulo, que me disse que eles (sindicato) conseguiram, através de forte revindicação, que o prefeito B. Covas revogasse a lei que extinguia a função de cobrador de ônibus, sem eles perceberem que, mais cedo do que se imagina, a tecnologia que realmente vai vence-los, como venceu os taxistas donos de táxis, as vezes positivamente, como foi a criação do Uber.

  7. Belíssimo artigo pelo dia dos país.
    E para você, Nassif, também um Feliz dia dos Pais.
    Que Deus abençoe a você e a tua família.
    Parabéns, enfim, a todos os pais no blog!

  8. Texto primoroso. Muito obrigado pela aula de cidadania, amor, compreensão e virtudes. É uma pena que esses que hoje transformam o Brasil em um país regado a ódio e ressentimento não deixarão para seus filhos o exemplo desse “turco” brasileiro.

  9. Nassif, muito lindo.
    Tirando a história de mudanças para o exterior e depois ser naturalizado brasileiro, participar de clubes de filantropia, nossas histórias são muito parecidas.
    Meu pai, formado em farmácia pela hoje UNESP, em Araraquara, trabalhou por 54 anos na farmácia. Isso, na época que não tinha PS, nem farmácia noturna.
    Levantava várias vezes por noite e, muitas vezes, tinha que fazer o remédio.
    Precisou vender porque iria falir.
    No tempo da inflação de 80%, como não houve acordo entre os donos de farmácia, cada um tomou suas providências mas ele não. Recebia uma conta de três meses atrás pelo preço de três meses atrás.
    Nunca ninguém ninguém saiu da farmácia sem o remédio, se a pessoa não pudesse pagar.
    Até um fogão pequeno eu levei pra um desses casos.
    Mas, o que reavivou muito a memória de lavar vidros.
    Como eu sempre ia à farmácia, perguntava se podia ajudar, criança ainda.
    O serviço era lavar vidros, que ficavam de molho no sábado em pó.
    Ô coisa chata! ?
    Vai fazer seis anos que ele se foi e já não sendo dono da farmácia mas, o farmacêutico responsável, até hoje, as pessoas compram na farmácia do seo Albertinho. Tb, muita gente ainda vem chorar comigo.
    Meu pai posava nas casas de pessoas em estado terminal, para o caso de precisar de morfina.
    Era plastimodelista: aviões de primeira e segunda guerras mundiais. Uma cultura enorme, incomparável.
    Essa é uma parte da minha história com meu pai, que tinha minha mãe, como gerente da casa, tb artista em várias modalidades.
    O incentivo ao estudo, à literatura, à música era total. Pra mim e minhas filhas.
    Gratidão e saudade eterna.
    Nós fomos sortudos!

  10. Que beleza de texto, Nassif! Uma declaração de admiração e orgulho por um pai que soube lhe ensinar, pelo exemplo, a amar o país.
    Sem saber de onde viemos, não saberemos onde poderemos chegar, e honrar aqueles que nos formaram, saber da importância das suas lutas de suas posições, é essencial tanto para nós, familiares, descendentes, quanto ao país. Um país que de desconstrói a cada dia, na mão de vendilhões da pátria, na concepção viralata de quem despreza o valor do nosso povo, que é tão desigual na origem, mas tão rico em história.

  11. Nassif, nao nos conhecemos pessoalmente, mas te considero um irmão. Seu Oscar se orgulharia por suas lutas e talento. Parabéns pela poética do texto.

  12. Caro Nassif, ao ler seu texto, parece que voce estava falando de meu pai. Aí, me veio à mente que nossas origens, apesar de sofridas, eram cheias de vida – vida honesta, muito trabalho, recheada de amor ao próximo e, uma sociedade inclusivista e não exclusivista como esta que nos estão querendo enfiar goela abaixo. Isto que está aí sendo proposto é uma excrecência que só levará à aceleração da desigualdade – isso se não tivermos uma catástrofe antes , catástrofe que está sendo construída diariamente por aquele que deveria ser o exemplo de cidadania.

  13. Luis Nassif, estou lendo seu livro “Walter Moreira Salles: O banqueiro empreendedor e a construção do Brasil” e o parabenizo por sua dedicação em contar a história de um homem que se mistura a história de muitos outros homens e mulheres que construíram essa nação. Como Walter Moreira Salles, foram muitos os homens e mulheres que trabalharam para deixar na memória dos seus, um país melhor do que àquele em que haviam nascido.

  14. A história de Seu Oscar, se assemelha em muito com a vivência de muito da classe média brasileira, de origem humilde, que vivenciou e não esqueceu as agruras da precariedade. RElembrei, várias histórias que tinha meu pai como autor. Que se manifestem mais “S. Oscar” nesse universo Brasil.

  15. Nassif, sou suspeito para falar bem de você, já que sou seu admirador, desde seu início no jornalismo, e seu seguidor, por onde vc passou e sei da sua formação moral, e dos princípios que vc herdou do “Seu Oscar” e da Dona Tereza, mas desta vêz, vc extrapolou, e me remeteu à minha também boa formação (ao contrário da sua) cristã, mas crítica e de ser um brasileiro que “pensa” o país.
    Obrigado por esta confissão de amor à família e ao país que acolheu ( como não poderia ser diferente) a sua família imigrante, que em tão pouco tempo, viraram mais brasileiros, que os aqui nascidos, assim como vc, que vindo estudar e trabalhar em São Paulo, tornou-se o mais paulistas dos mineiros.
    Sem aqueles imigrantes(como seus pais e outros “brimos” não estaríamos no status que estamos, apesar de termos, de vêz em quando, governantes que “remam contra a maré” e conseguem desgovernar.

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