No Estado de exceção a caminho da ditadura, por Xixo Piragino

A escalada da perda de soberania do poder popular no Brasil: "Não podemos virar uma Venezuela. Por essa razão, é que já entregamos a base de Alcântara, não somos mais soberanos na Amazônia"

Por Xixo Piragino

Há trinta anos quando foi promulgada a Constituição Brasileira e o país encerrava a ditadura empresarial-militar de vinte e um anos e nós, jovens e os de juventude acumulada1 estávamos com os corações cheios de esperança e as mentes cheias de sonhos de construir um novo Brasil. E isso fazia parte de um caminho.

Desde a década anterior, sucessivos movimentos com a participação da população, manifestando-se nas ruas, num consenso da ideia de um Brasil livre, democrático, diverso e justo para todos, nos mobilizava desde a luta contra a carestia2, passando pela anistia, pelo fim da ditadura e por eleições diretas para presidente, entre outros.

Com essa mobilização, entramos num processo constituinte, contando com a participação popular através dos Comitês Pró-Participação Popular na Constituinte, oferecendo emendas democráticas, peças fundamentais para transformar a Constituição Brasileira de 1988. Assim, ela foi apelidada carinhosamente de Constituição Cidadã.

Em contraponto, o processo de formação da Assembleia Constituinte não foi o ideal, já que o mais adequado teria sido eleger apenas Constituintes e não deputados e senadores Constituintes, em 1986. Tal fato implicou uma distorção, isto porque quando feitas as propostas vinculadas às esferas de representação, estes (que continuariam com seus mandatos após a promulgação da Carta) construíram um modelo de sistema político não isento de interesses particulares. Mesmo considerando a revisão planejada cinco anos depois, em 1993, e o plebiscito no qual se definiu o nosso regime político. Isto é, uma Constituição promulgada que apontava para um regime parlamentarista e que fortaleceria os partidos e possivelmente os deixariam mais coerentes e enfraqueceria a ideia de “salvador da pátria3, o que fortaleceria a nossa democracia. Porém, o trauma do parlamentarismo imposto em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, nos fez rejeitá-lo democraticamente e a força do presidencialismo foi o resultado da consulta popular.

Porém, todo esse processo uniu o país: políticos com posições partidárias e ideológicas contrárias se tratavam como “adversários”. Atualmente, o cenário é outro: declaram-se “inimigos4”.  

Apesar de divergências mais pontuais, a Constituição foi promulgada com o povo esperançoso. No entanto, era possível observar algumas ambiguidades, a começar pela devolução do poder soberano ao Povo. De todo modo, o povo não pode aprovar diretamente, ao final do processo constituinte, através de um plebiscito, o texto da Carta Magna, como seria feito em qualquer democracia de alta intensidade.

O trabalho dos constituintes (que tinha um amplo espectro político e ideológico) foi de 19 meses e o fruto foi uma constituição longa – 245 artigos5– com muitos artigos com a necessidade de serem regulamentados através de leis complementares, mas que revelava um Brasil dinâmico e com a luta política feita dentro da seara democrática.

De qualquer forma, a Constituição, naquela altura recém-saída do forno, estabeleceu um pacto na sociedade brasileira como os colocados no seu Preâmbulo e nos primeiros cinco artigos que nos dizem quem somos, qual liberdade temos, quem tem o poder soberano, como vivemos e nos relacionamos e para onde queremos ir.

As cláusulas pétreas6 expressas no Artigo 60 § 4º dão ao cidadão garantias fundamentais. Por essa razão, são imutáveis.

Assim, o Brasil tinha uma democracia de baixa intensidade pois país nenhum com esse grau de desigualdade pode ter uma democracia forte.

Mas o que estamos assistindo desde o golpe jurídico parlamentar de 2016, com o impeachment de uma presidenta eleita7 sem crime de responsabilidade, já nos colocou num regime de Estado de Exceção. Temos saudades da democracia de baixa intensidade que vivíamos. Isso se mostra quando a Constituição deixa de ser respeitada e o ‘jeitinho’ brasileiro passa das ruas para as instituições. É o famoso “em nome disso”, deixa-se de cumprir o que garante a democracia: a lei maior, a Constituição, que nos norteia.

A censura é proibida no Brasil. Entretanto, já tivemos peças de teatro e exposições proibidas.

Ninguém deverá ser preso até o ‘trânsito em julgado’, isto é, o fim de qualquer possibilidade de mudança de veredito por uma corte mais alta ou suprema. Porém, há centenas de milhares aprisionados no Brasil sem o final de seu julgamento, inclusive um ex-presidente popular preso sem provas concretas.

Há liberdade de manifestação e liberdade política. Já temos repressão por parte dos organismos de repressão do Estado à manifestação, além de pessoas presas, processadas e agredidas pelo legítimo direito de se manifestar pacificamente.

A liberdade de imprensa é garantida, porém é farsesca. Na maioria dos grandes órgãos de comunicação temos a censura do dono da empresa jornalística, além de uma concentração da mídia fenomenal, única área no Brasil que nunca teve seus artigos constitucionais regulamentados.

Temos políticos e pessoas perseguidas que tiveram até que sair do país, sem que as autoridades competentes tenham qualquer ação para protegê-las e aí, sim, reprimir e levar aos bancos dos tribunais os agressores.

Sem falar na baixa resolução e, portanto, os órgãos do Estado vinculados à Justiça (polícias, Ministérios Públicos, Ministério da Justiça), não sendo quase nunca implacável no caso de assassinato de políticos, militantes e lideranças populares e do direito de minorias, indígenas e de defensores dos Direitos Humanos.

E para coroar – nesse país com espírito monárquico – agora estamos assistindo um ataque ao Supremo Tribunal Federal no qual figuras importantes públicas estão dizendo que devemos fechá-lo!

Como um deputado (filho do presidente que disse que mandava “um cabo e um soldado” para isso); uma líder do partido do governo eleita num partido até recentemente sem expressão, e que foram eleitos e cresceram à base de ‘fakenews’; um jurista que vem se equivocando e sendo autor de manobras jurídicas com sua empáfia se mostrando a serviço não de valores democráticos e, também, a namoradinha do Brasil, velha atriz de grande sucesso e popularidade, que só o obteve em novelas os personagens que foram inicialmente censurados pela ditadura passada.

A hipocrisia nacional não tem limites!

Quem pede o fechamento do Supremo Tribunal Federal, como esses listados anteriormente, está trabalhando para a volta da ditadura no Brasil.

Isto é, devemos lembrar qual é o papel do STF: ele é o guardião da Constituição Federal, isto é, quem pede para fechá-lo, está dizendo que a Constituição Federal de 1988 não vale para nada! Deve ir para o lixo! Está dizendo que voltamos ao triste passado de um estado sem democracia e sem direito. Se fossemos sérios no Brasil, esses todos deveriam estar sentados à frente da Justiça, respondendo por essas declarações.

É bom lembrar que a democracia não permite tudo. Tudo que atenta contra ela deve ser fortemente reprimido. Isso é o Estado Democrático de Direito.

Entretanto, caminhamos para uma ditadura. O presidente está dizendo isso em várias ocasiões e de diversas formas e ainda apoiado pelos seus que acreditam que a Terra é plana.

Ele está seguindo claramente a cartilha do grande capital internacional. Inclusive na forma como intervir na sociedade criando mais discórdia8.

E, assim, vale eliminar o “inimigo9“!

Afinal, não podemos virar uma Venezuela. Por essa razão, é que já entregamos a base de Alcântara, não somos mais soberanos na Amazônia, nas próprias palavras do presidente, venderemos o Pré-Sal daqui a alguns meses. Porém, o risco é nos transformarmos numa Colômbia, pois a eliminação dos inimigos lá, que foram massacrados e dizimados, criou vários grupos de guerrilheiros que lutaram e não reconheciam mais nenhum dos poderes constituídos, e mantém o país fraturado até hoje, apesar de ser um país incrível e com um povo espetacular.    

Para os donos do poder atual, Deus é o caminho de tudo. Não precisamos de democracia, precisamos de Deus. Deus cuidará de todos. Não importa se passaremos mais fome, se teremos mais brasileiros morando nas ruas, se vai aumentar a miséria. Não precisamos fazer nada, Deus cuida de tudo e está acima de tudo.

Porém, o Deus desses líderes não é o mesmo que o nosso, não é do Deus espiritual que eles falam. É o Deus dinheiro que não tem o valor da solidariedade, da fraternidade, da igualdade. Só tem o valor do livre mercado e do lucro: esse sim o ‘supremo’ a ser defendido!

__________

Notas

  1. Como gosta de expressar a nossa querida Profa. Maria Victoria Benevides  
  2. A luta contra a carestia foi o Movimento Custo de Vida (MCV) da década de 1970, com protagonismo das mulheres e que se colocava frontalmente contra a política econômica do regime empresarial-militar que arrochava o salário dos trabalhadores e elevava os preços dos produtos, principalmente dos alimentos.   
  3. Vale lembrar que o primeiro presidente eleito, Fernando Collor de Melo, após a promulgação da Constituição era o próprio “salvador da pátria”, o “caçador de marajás”. Através de um marketing político e a manipulação da mídia, vendeu para a população a ideia que ele era o novo apesar de ser de uma velha elite política coronelesca. Mais uma vez, a população foi enganada, como já tinha sido no discurso e golpe de 1964 que tirou um presidente eleito (vice-presidente era eleito na época), João Goulart, acusado de comunista (nos mesmos moldes de hoje) por defender a soberania nacional e querer enfrentar algumas das desigualdades aqui instaladas.
  4. Inimigos enfrentamos na guerra onde vale até matar!
  5. Já “remendada” – como diria o Professor Fábio Konder Comparato – 107 vezes sem que o soberano saiba o que está sendo modificado e aprove diretamente.
  6. Cláusula pétrea é um artigo da Constituição Federal que não pode ser alterado. Uma cláusula é um artigo de uma lei, é parte do texto jurídico que define direitos ou obrigações. Pétrea é um adjetivo para aquilo que é como pedra, imutável e perpétuo.
  7.  Infelizmente os deputados e senadores constituintes rejeitaram o mecanismo de democracia direta chamado RECALL, que garantiria um processo mais justo e democrático e, portanto, traria mais estabilidade política ao país em 2016. Recall é um referendo revogatório de mandatos dos executivos e legislativos, no qual a população participa diretamente retornando às urnas, num processo que garante o debate de quem defende o político em manter seu cargo e também de quem quer retirá-lo.
  8. Assistam o filme “O fim do sonho americano / Réquiem of American Dream” no qual o ativista Noam Chomsky descreve a forma de agir do grande capital e as 10 regras para manter a supremacia do capital, que se confunde com a supremacia branca.
  9.  É mais fácil hoje eu ser perseguido, caluniado ou atacado do que esses que vem afrontando a nossa democracia irem responder por isso. Virou arriscado hoje expressar opiniões, como neste texto!
Redação

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