Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
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O 8 de janeiro e o fator humano – Parte 1, por Letícia Sallorenzo

Para entendermos o que aconteceu, é importante decifrarmos não só o papel como a função das Fake News nisso tudo.

Marcelo Camargo – Agência Brasil

O 8 de janeiro e o fator humano

Parte 1

por Letícia Sallorenzo

Tem uma questão muito importante a ser compreendida a respeito do terrorismo do 8 de janeiro: o fator humano. Não é difícil perceber que as pessoas que participaram dos acampamentos e do levante terrorista do dia 8 estão fora da casinha.

Vou evitar aqui qualquer expressão que remeta à ideia de doença ou de patologização – já sabendo que lá na frente talvez eu sucumba. O objetivo aqui não é mistificar, mas entender o que aconteceu com elas – porque foi tudo estimulado, não duvide disso.

Para entendermos o que aconteceu, é importante decifrarmos não só o papel como a função das Fake News nisso tudo.

O comportamento apresentado por essas pessoas é consequência de um estímulo ao qual elas se submeteram – ou foram submetidas. A escolha da voz passiva ou reflexiva neste caso é fundamental para que entendamos o processo e tenhamos condições de tomar providências para que isso nunca mais aconteça.

Confesso que, a esta altura, não terei a pretensão de vaticinar a voz verbal adequada para explicar esse processo. Ainda careço de elementos para dizer se quem se submeteu a esse ecossistema de desinformação o fez por livre e espontânea vontade, ciente do que estava fazendo, ou se foi levado a entender que o que estava fazendo era o certo, pois todos à sua volta faziam o mesmo. Por isso, vou nominalizar o processo: submissão.

O impresso, o digital e as Fake News

Vamos nos colocar no lugar dessas pessoas, mas não no dia de hoje. Vamos voltar a 2018. Lá atrás, essas pessoas começaram a ser bombardeadas por notícias que chegavam no WhatsApp. Quem as enviava não era um Zé Ruela qualquer. Eram outras pessoas em quem elas confiavam, elas acreditavam. Era o pastor da igreja, o tio, o avô.

Essas pessoas enviavam informações políticas sem a roupagem institucional que o jornalismo confere a esse tipo de texto. Você nunca vai ler num jornal de grande circulação títulos do tipo O cabeça de piroca mandou prender o Allan dos Santos, ou O cachaceiro nove dedos subiu a rampa. Se assim o fizerem, tomarão um belo de um processo. As notícias de jornais e portais estão presas a um gênero textual que deve ser obrigatoriamente respeitado para que sejam compreendidas como tal.

O analista do discurso Teun van Dijk explica isso de forma bem clara. Em “News as discourse”, de 1988 (disponível em PDF no site do van Dijk). É importante observarmos quando esse livro foi escrito. Em 1988, a Internet estava longe de ser popular, e gadgets eletrônicos como ebooks, smartphones e tablets eram coisa de ficção científica. Mal e mal tínhamos telefonia celular, que começava a migrar de redes analógicas, com suporte apenas para voz, para redes celulares, que permitiriam todo um leque de serviços. (Observe a importância da tecnologia nesse processo).

Mas eu estava em 1988. Nessa época, jornais eram impressos em papel, em formato standard (aquele formato compridão, em que o produto é vendido dobrado ao meio). Ler um jornal, então, era um processo cognitivo (e social) completamente diferente do que é hoje. Você tinha em mãos uma publicação que você reconhecia cognitivamente como jornal. Ali você sabia que tipo de informação obteria. Sim, estou falando de frames, ou associações de ideias. Ao pegar um jornal em mãos, sua mente já fazia, inconscientemente, uma série de conexões de ideias, que associavam aquele objeto a verdade, informação de qualidade, notícias do Brasil e do mundo. (não se espante com o inconscientemente daí de cima: George Lakoff avisa em vários de seus livros que pelo menos 95% de nosso raciocínio diário é inconsciente, como apertar o botão do interruptor para acender a luz, ou destampar uma caneta para escrever).

O segundo momento cognitivo da leitura de um jornal era a percepção da diagramação das notícias. A disposição das manchetes e dos títulos, fotos e gráficos, o que ficava grande, o que ganhava uma tripinha etcetc. Isso também te acionava ideias na cabeça: notícias sobre os Estados Unidos, por exemplo, ganhavam manchetes grandonas, no topo da página, enquanto Burkina Faso ganhava, se muito, um quadrinho minúsculo num cantinho pouco visível da página. Mais uma vez, a percepção dessa disposição de notícias acionava uma série de ideias na sua mente, e de forma inconsciente: Estados Unidos ganha manchete grande, é importante; Burkina Faso não ganha quase nada, não tem relevância.

Vamos dar um salto de 30 anos no tempo. Em que meio físico você lia as notícias escritas que chegavam até você? Se você não consegue se lembrar, eu tenho a resposta: o Digital News Report do Instituto Reuters, levantamento realizado todos os anos em parceria com a universidade de Oxford (saiba mais aqui) aponta uma queda no consumo de notícias em formato impresso. Se em 2013, 50% dos entrevistados brasileiros diziam se informar em meios impressos, em 2018 esse percentual chegou a 34% (dou o spoiler: em 2022 já estava em 12%).

As pessoas pararam de consumir notícias? De certa forma, sim. A confiança nas notícias sofreu uma queda vertiginosa, ainda segundo o Reuters Digital Report. Em 2015, a confiança dos brasileiros na imprensa era de 62%, índice que caiu para 59% em 2018 (e 48% em 2022). Mas disso eu falo depois.

É que tem outro fator aqui: se em 2013, 23% dos brasileiros entrevistados nesse levantamento liam notícias em smartphones, em 2018 esse percentual chegou a 72%, o mesmo da leitura em computadores (desktops/laptops). E aí, a gente volta para aquele festival de frame que um jornal impresso despertava em 1988, e pensa: como é o processo cognitivo de leitura de notícias em 2018?

Acertou quem respondeu caótico. No computador você tem o site do [insira aqui seu portal de notícias preferido], mais o Facebook, o Twitter, o Microsoft Office (word, excel, power point) e o escambau a quatro disputando sua atenção e sua concentração. A diagramação faz ainda mais diferença: links em textos grandes terão mais cliques, links em textos miúdos terão menos cliques. E o visual do site se mistura com o visual do Facebook, e do Twitter, e do Word-excel-power point, e do… eu já falei caótico, né?

E no smartphone, então? Se a disputa de concentração é tanta quanto no Desktop, a percepção cognitiva da diagramação desaparece, e a relevância de um link de WhatsApp se iguala à de um link do app do seu jornal preferido, ou do navegador web. Vou grifar aqui pra você prestar bem atenção no que eu vou escrever agora: fica tudo igual. A notícia que o seu tio enviou no zap e a notícia que você lê no site oficial do órgão de informação têm o mesmo visual no smartphone. Isso significa que elas adquirem a mesma relevância. A pompa e a institucionalidade que a diagramação conferia à notícia não existem mais.

Temos, então, a primeira importante ruptura cognitiva: qualquer coisa é notícia, qualquer um pode ser jornalista, qualquer formato / padrão de texto é noticioso. Nesta realidade, você pode até fingir que é jornalista e que está dando um furo jornalístico.

Ouso dizer (ou seja, estou falando sem pesquisar) que essa ruptura cognitiva é um dos motivos de o fenômeno que submete o mundo inteiro neste momento ter recebido a alcunha de Fake News – notícias falseadas. Ou fraudulentas, como diz o ministro Alexandre de Moraes.

As pessoas, elas estão com as ideias misturadas demais com a alteração de forma e meio de consumo de notícias. A mudança de um ambiente impresso de leitura de notícias para um ambiente digital alterou a percepção cognitiva das pessoas acerca do que é notícia, e elas não se deram conta disso, pois foi um processo inconsciente.

E é aqui que começa o modus operandi do Firehosing.

Estamos, então, em 2018, com todo mundo cheio de celular nas mãos, mas não necessariamente com um plano de dados que lhe proporcione o acesso ilimitado a notícias e informações de fonte confiáveis. Muitos planos de dados dão WhatsApp e Facebook gratuitos – isso significa que se a pessoa estiver com o telefone cortado por falta de pagamento, ou sem carga de pré-pago, ainda assim o Facebook e o WhatsApp continuarão a atualizar. Se você pensou que inferno, pensou direitinho.

Essas pessoas continuam recebendo informações dos tios e tias do zap, do pastor da igreja, e de pessoas em quem elas confiam. Sai o William Bonner, que fica dentro da televisão e não te olha nos olhos, não te conhece, não fala o seu nome, não vai na sua festa de aniversário, não puxa uma oração por você. Entra o tio e a tia do zap e o pastor da igreja, ou mesmo outros fiéis da igreja. Pessoas de carne e osso, que interagem socialmente contigo de uma forma que o Bonner nunca interagiu.

Mas essas pessoas não são produtoras das informações, tampouco têm noção de jornalismo, critérios de noticiabilidade e o escambau. Elas recebem esse material pronto no zap. Provavelmente receberam de outras pessoas que também receberam de outras, e assim por diante, até se perder a fonte original da informação – ou melhor, da propaganda.

A propaganda (disfarçada de informação) repassada por essas pessoas é percebida (lá vem ela com o negrito!) como real, factível, confiável. Não importa se é ou não, a percepção das pessoas é positiva com relação a confiabilidade e realidade.

Agora vocês fiquem aí ruminando esse montão de coisa que eu trouxe pra vocês. Tem mais coisa nesse artigo, mas vamos dividi-lo em partes.

Leticia Sallorenzo – Mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (2018). Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Graduaçao em Letras Português e respectivas Literaturas pela UnB (2019). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração. Autora do livro Gramática da Manipulação, publicado pela Quintal Edições.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

4 Comentários

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  1. Discordo em parte da senhora, a mídia tradicional perdeu também credibilidade por conta de anos de conversa mole tentando enrolar pobres leitores como este escriba.
    Hoje leio ainda um jornalão do Rio, o que sobrou, leio no celular, mas na diagramação de celular.
    Mas uma experiência pessoal, quando eram impressos, e ajudavam os feirantes no dia seguinte, não assinava, gostava de mudar a marca, Globo, Folha, Estadão e até O Dia, era só comprar na banca, hoje isto é IMPOSSÍVEL, para quem não recebe senhas de brinde é inviável assinar 3 ou 4 jornais ou só comprar quando algo interessa.
    Lembro de um artigo da senhora que me fez ver a embromação dos jornalões, ainda os leio, mas agora vacinado como contra a Covid …
    Tem uma questão do voto em Bolsonaro que vejo por experiência pessoal e a esquerda simplesmente não aceita, a agenda de costumes que tentam empurrar goela abaixo das pessoas gerou o Bolsonaro em 18 e quase em 22, por “ajuda” do próprio Bolsonaro.
    Se a esquerda não entender isto sempre correrá risco nas eleições e a culpa não é minha.
    Muita coisa a discutir e pesquisar ainda todavia…

  2. Essa questão dos planos celulares com redes sociais grátis, sem descontar das ridículas franquias oferecidas pelas operadoras, responde por uma boa parte da dissonância cognitiva na sociedade brasileira. Uma violação continuada da neutralidade de rede (e do Marco Civil da Internet), sem que ninguém (Anatel, Ministério das Comunicações, Ministérios Públicos, PROCONs, etc.) tome qualquer providência – sempre com a desculpa de que, se são oferecidas de graça, nada pode ser feito. Uma falácia, pois isso nada mais é que uma tática de dumping; tem alguém pagando para criar essa assimetria. Taí o resultado.

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