O Grupo de Viena e o acordo nuclear

Do Blog do Tomás Rosa Bueno

Uma lição de má-fé: a resposta do Grupo de Viena ao acordo Brasil-Irã-Turquia 

Em documentos entregues ao embaixador do Irã junto à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), os países que compõem o “Grupo de Viena” (E.U.A., França e Rússia, além da AIEA) expressaram as suas “Preocupações sobre a Declaração Conjunta transmitida pelo Irã à AIEA “. O Irã tem declarado repetidamente que a Declaração Conjunta Brasil-Irã-Turquia (DC) não foi concebida como um documento final vinculativo, mas como uma base para negociações. Portanto, todas essas “preocupações” podem e devem ser tratadas no âmbito dessa base.

Segundo a Reuters, estas são as “preocupações”:

1. A Declaração Conjunta (DC) não contempla a produção ou a retenção pelo Irã de urânio enriquecido a 19,75%. A cessação desse enriquecimento e a remoção do urânio enriquecido a 19,75% já produzido (ao mesmo tempo que a remoção dos 1.200 quilos de urânio de baixo enriquecimento, UBE) deve ser parte integrante de qualquer arranjo de reabastecimento do Reator de Pesquisas de Teerã (RPT). 

2.D2. A DC reafirma o direito do Irã de levar a cabo atividades de enriquecimento, apesar do fato de que várias resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) proibirem o Irã de continuar com essas atividades.

3. O DC não indica que o Irã está disposto a se reunir com oos países do P5+1(os membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha) para resolver as preocupações da comunidade internacional sobre o seu programa nuclear. Embora tenha concordado em outubro de 2009 em reunir-se de novo em breve com esses países para tratar da questão nuclear, incluindo propostas anteriormente apresentadas pelos dois lados, o Irã nunca concordou em realizar essa reunião. Uma reunião do P5+1 sobre a questão nuclear é um passo essencial para responder às preocupações da comunidade internacional a respeito do programa nuclear geral iraniano, bem documentadas em numerosas resoluções do CSNU e relatórios da AIEA.  

4. Ao contrário da proposta apresentada em outubro de 2009 pelo Grupo de Viena, a DC não define uma data determinada para a remoção dos 1.200 quilos de UBE a 3,5% do Irã. A DC declara que o UBE seria retirado no prazo de um mês após a conclusão de um acordo de implementação. Mas como não há prazo determinado para conclusão desse acordo, não há prazo para a retirada do UBE.

5. O prazo para a fornecimento completo das placas de combustível ao Irã é irrealista. O Acordo de Suprimento e Projeto da AIEA previa o fornecimento inicial de combustível em cerca de um ano para garantir o funcionamento ininterrupto do RPT, com o combustível remanescente a ser fornecido em uma data posterior. A DC prevê o fornecimento total de combustível em um ano, o que cremos ser impossível de cumprir. 

6. A DC indica que, se o Irã decidir unilateralmente que as disposições do acordo não estão sendo respeitadas, a Turquia seria obrigada, mediante solicitação do Irã, a “devolver rápida e incondicionalmente o UBE ao Irã”. Nos termos da proposta anterior de “escrow” (depósito em garantia), a devolução do UBE seria justificada se as partes deixassem de entregar as placas de combustível ao Irã do modo acordado. 

7. A DC declara que o UBE iraniano seria “propriedade” do Irã enquanto estivesse depositado na Turquia. Pela proposta de outubro do Grupo de Viena, a AIEA teria a “custódia” do UBE durante todo o processo. 

8. Detalhes técnicos importantes do acordo de reabastecimento de combustível não são abordados na DC. Por exemplo, não se especifica o que acontece com os 1.200 quilos de UBE conservados em depósito na Turquia depois que as placas de combustível forem entregues ao Irã. 

9. A DC não leva em conta a acumulação de UBE pelo Irã desde a primeira vez que a AIEA propôs acordo sobre o RPT. A remoção de 1.200 quilos agora deixaria uma grande quantidade de UBE no Irã, diminuindo o valor de confiança da proposta original. A DC não oferece meios alternativos para garantir que o elemento de confiança do acordo seja mantido. 

Alguns destes pontos podem parecer mais naturais em um comunicado de relações públicas visando o público em geral do que em um documento oficial dirigido por um grupo de potências mundiais a um país com o qual pretendem negociar e, portanto, não podem ser levados a sério. Que outra coisa se pode pensar dos pontos 3 e 4, por exemplo? O Irã manifestou diversas vezes a sua disposição a negociar com o P5+1, mesmo antes de assinar a DC, e uma menção específica às negociações com o P5+1 é feita no item 9 do Declaração de Teerã: “Saudamos a decisão da República Islâmica do Irã de continuar, como no passado, as suas conversações com os países do grupo P5+1”. Se isto não fosse suficiente, o que impediria que uma rodada de negociações específica fosse incluída em um eventual documento final? E por que dizer que a “DC não indica que o Irã está disposto a encontro com os países do P5+1”, quando a DC faz uma referência específica a essas negociações?

O item 4 é risível: se o envio de UBE do Irã para a Turquia deverá ter lugar trinta dias após o fechamento de um acordo final, como se pode definir uma data fixa para esse envio antes de se chegar a um acordo final? Ou o item 7: desde quando “custódia” exclui “propriedade”? O UBE do Irã, tanto na DC como na proposta de depósito de garantia (“escrow”), deverá continuar sendo propriedade do Irã até que todas as cláusulas de um contrato de permuta de combustível sejam cumpridas; é precisamente isto que significa a palavra “escrow” em inglês, de acordo com o American Heritage Dictionary: “Dinheiro, propriedade, escritura ou título deixado em custódia com terceiros para entrega ao destinatário final somente após o cumprimento das condições especificadas”. Ou, ainda, o item 8: estamos falando de um acordo de permuta de combustível nuclear, certo? Uma certa quantidade de UBE do Irã deve ser “permutada” por uma certa quantidade de urânio enriquecido a 20% e transformado em placas de combustível para o RPT. Novamente, o American Heritage Dictionary diz que a permuta é “a troca de uma coisa por outra”, e o Houaiss confirma. Para qualquer um que tenha um dicionário em casa, seria óbvio que “o que acontece com os 1.200 quilos de UBE conservados em depósito na Turquia depois que as placas de combustível forem entregues ao Irã” é que o UBE depositado na Turquia será entregue a quem fornecer as placas de combustível ao Irã, detalhes a serem ajustados em negociações subsequentes. Mas parece que isto não está claro para a Rússia, a França e os Estados Unidos, e eles precisam para expressar as suas preocupações a respeito.

Outros itens usam meias-verdades ou apresentam metas de negociação como negócios fechados; ou, como o item 5, tentam deixar a porta aberta para renegar o acordo todo: se o Irã, com a sua capacidade limitada de enriquecimento de urânio e produção de combustível, foi capaz de produzir 22 quilos de urânio enriquecido a 20% em seis meses, por que motivo a França, os E.U.A. e a Rússia, que juntos respondem por 95% das capacidades de enriquecimento do mundo, não seriam capazes de produzir de 120 a 200 quilos de urânio enriquecido a 20% e transformados em placas de combustível em doze meses? O ponto 6 é uma pérola: a DC é uma proposta de acordo de permuta; em qualquer contrato de permuta, uma parte concorda em entregar um artigo ou artigos a outra parte em troca de outro artigo ou artigos em um prazo determinado: o Irã entrega 1.200 quilos de UBE em troca de 120 quilos de placas de combustível da França e da Rússia em um ano. Se estas disposições não forem respeitadas, o UBE do Irã deverá ser devolvido ao seu legítimo proprietário. O que no proposta atual é diferente da proposta anterior de “depósito de ganatia”?

O item 2 é a peça central desta lista de preocupações: “A DC reafirma o direito do Irã a desenvolver atividades de enriquecimento, apesar de várias resoluções do CSNU proibirem o Irã de prosseguir com essas atividades “. Isto merece uma análise mais detalhada:

• o direito do Irã a desenvolver atividades de enriquecimento nuclear como signatário do Tratado de Não Proliferação (TNP) não está em causa e, naturalmente, não é negociável. O TNP diz claramente que todas as partes do tratado têm um “direito inalienável” a desenvolver, produzir e usar energia nuclear para fins pacíficos. O Irã pode até decidir renunciar aos seus direitos em troca de vantagens significativas nesta e em outras áreas, como um pacto de não agressão que inclua os Estados Unidos e Israel; mas, segundo as leis internacionais e os termos do TNP, ninguém pode “proibir” o Irã de exercer o seu direito a dominar o ciclo de energia nuclear completo. Tanto assim que,

• ao contrário do que é afirmado no item 2, a Resolução 1929 do CSNU (aqui, em inglês) não “proibe” o Irã de enriquecer urânio, mas pede a suspensão, “verificada pela AIEA, de todas as atividades relacionadas com enriquecimento e reprocessamento, para permitir negociações em boa-fé”.

Portanto, o item 2 está baseado numa mentira deslavada. Nenhuma resolução do CSNU sobre o programa nuclear iraniano jamais “proibiu” o Irã de enriquecer urânio. Todas elas exigem a “suspensão” das atividades de enriquecimento durante as negociações – em “boa fé” – sobre uma maneira de garantir o “direito inalienável” do Irã a desenvolver um programa completo de energia nuclear e resolver as preocupações internacionais sobre a natureza exclusivamente pacífica desse programa.

Isto nos deixa com os itens 1 e 9. Ambos se referem a questões que poderiam perfeitamente ser incluídas em emendas à Declaração de Teerã original, sem necessidade de uma nova rodada de sanções cujo principal e quase único efeito foi tornar mais difíceis as negociações e eliminar a “boa fé” do processo.

A desonestidade desta lista de “preocupações” é tão evidente que chegamos a duvidar que seja real, tal o desprezo manifestado por seus autores pela inteligência alheia, e a total falta de preocupação em sequer esforçar-se para obter uma aparência de boa vontade. Mesmo assim, o Irã continua aberto aberto a negociações, e tem dito isto de maneira clara e inequívoca em várias ocasiões. Porém, dada esta demonstração de má-fé pela França, os Estados Unidos e a Rússia em resposta a uma proposta de base para as conversações, a presença de intermediários honestos como a Turquia e Brasil em todas as negociações ainda é uma pré-condição à qual o Irã não pode renunciar e e à qual o Brasil e a Turquia devem aderir de forma inequívoca, para honrar os seus compromissos anteriores com a busca de uma solução pacífica e negociada para o impasse nuclear iraniano e para proteger seus próprios direitos, no futuro, contra ataques concertados deste tipo por parte das potências nucleares. 

Luis Nassif

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