O importante papel de Via Campesina

Do Opera Mundi

11/04/2011 – 09:00 | Eduardo Nunomura | São Paulo

Via Campesina reconfigura a luta de classes globalizada, diz socióloga

Desacreditado inclusive por intelectuais de esquerda, o campesinato continua vivo e tem uma intensa história de resistência e combate aos movimentos da globalização neoliberal. A Via Campesina, originária no início dos anos 1990 como a união internacional de trabalhadores rurais organizados, acabou virando a tese de doutorado pela UFRJ da socióloga carioca Flávia Braga Vieira, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Dos Proletários Unidos à Globalização da Esperança, publicado pela Alameda Casa Editorial, mostra as origens do movimento. A publicação será lançada nesta quarta-feira (13/04), às 19h, na Blooks Livraria, no Rio de Janeiro.

Para Flávia, já são mais de 13 anos de envolvimento e pesquisa com o universo dos movimentos sociais. Desde a militância ao lado do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), os trabalhos voluntários com o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e o apoio à Via Campesina, a socióloga nutre uma curiosidade pelas transformações experimentadas pelos trabalhadores rurais em todo o mundo.

Valter Campanato/ABr

Mulheres da Via Campesina durante oficina no 7° Fórum Social Mundial, em janeiro de 2007

Para ela, que conversou com Opera Mundi, a Via Campesina conseguiu revalorizar a internacionalização da luta política, recuperando valores importantes da tradição da esquerda.

O que a Via Campesina traz de novo?
Se pensarmos no campesinato no sentido mais amplo, são trabalhadores rurais que estão na periferia do elemento dinâmico da economia. Estão no entorno, mas não significa que não façam parte dos processos de acumulação de capital. Há uma relação entre esses grupos e o agronegócio, a agricultura capitalizada. Em alguns lugares são completamente excluídos e em outros, incluídos de forma marginal. E certamente são vistos de maneira negativa. Já se decretou, pela esquerda e pela direita, intelectual e politicamente, o fim do campesinato.

O mundo ao se industrializar e urbanizar, desde o século XVIII, previa o desaparecimento desse grupo social, ou que ele seria incapaz de se organizar politicamente. Ele segue existindo, com uma agricultura para além da industrializada. Se antes se organizava mais fragmentariamente, agora compartilham, trocam experiências e consolidam uma espécie de Internacional das organizações. Adquiriram assim um componente político que não estava dando antes.

A agricultura não tem mais o propósito exclusivo de produzir alimentos e os plantios para energia estão tirando espaço da agricultura familiar. Por que essa discussão não está sendo feita?
A humanidade tem condição de produzir alimento e até já produz em quantidade suficiente. Não é mais uma questão da possibilidade tecnológica. A não-discussão é uma opção do capitalismo. Há um novo acúmulo de capital na produção de cana, de milho, de eucalipto. E até no processo de privatização da água e do gás. Quando consideramos que o capitalismo não tem mais para onde expandir, ele se inova e as formas de enfrentamento têm se renovar também.

Mas o que ninguém esperava é que, a partir dos anos 1960, o que já estava considerado fora do capitalismo, esse resíduo rural, fosse virar uma parte importante dos espaços de ampliação e valorização do capital. A incorporação de setores enormes colocaram os campos como um dos pilares centrais da acumulação capitalista contemporânea e a Via Campesina é um dos reflexos desse fenômeno.

Reprodução

A gestação da Via Campesina ocorreu na Nicaraguá, país de origem do sandinismo e das lutas místicas na América Central. É possível traçar um paralelo entre questões socialistas e guerrilhas latino-americanas?
Nesse momento, a Via Campesina não aparecia. Tentava, isso sim, atrair novas organizações camponesas do mundo. A Via Campesina não advoga o socialismo, nem diz que é anticapitalista. Em suas declarações mais recentes, o máximo que se chega de consenso é que ela defende a antiglobalização neoliberal. Há grupos dentro da Via Campesina que não têm essa perspectiva de ruptura com o capitalismo. O movimento começa a aparecer no exterior nos grandes encontros e enfrentamentos do final da década 1990 e principalmente dos anos 2000 com os fóruns do capitalismo globalizado, os da OMC, os protestos de Seatle e de Gênova, da ONU.

Com uma perspectiva de esquerda?
No Brasil, o MST, MAB, MPA, são movimentos que claramente advogam o socialismo. A Via Campesina como organização internacional não tem essa cara. Para o resto do mundo, ela é muito mais um desses movimentos altermundistas. Minha discussão é que ela tem coisas novas, mas não parte do zero. Ela possui tradições e outras histórias misturadas, porque o processo social é multideterminado. Não se trata somente de uma resposta à globalização, mas uma nova fase do capitalismo. Não só o resgate da tradição internacionalista socialista.

De uma forma geral, essa cara mais de esquerda da Via é algo que os movimentos da América Latina carregam. Na França, do Jose Bové, da Confédération Paysanne, eles não têm essa tradição socialista. Alguns têm até discussões anarquistas e outros nem têm tradição da esquerda. A constituição da agricultura do agronegócio juntou todos.

Seu estudo é claro ao demonstrar a penetração da Via Campesina na América do Sul, e no Leste e Sudeste Asiáticos. Depois na Europa. Qual a distinção entre os movimentos?
Ser camponês ou agricultor familiar na Europa é muito diferente do que na Índia ou África do Sul. A impressão que se tem é a de que, por uma série de fatores históricos, mas também políticos, as organizações da América Latina — e o Brasil tem um peso enorme nisso — impuseram um certo ritmo para os demais países do que chamamos de periferia do capitalismo.

Depois do encontro na Nicaraguá, houve um na Europa. O sudeste da Ásia se incorpora rápido por conta de “relações bilaterais”, tanto que o terceiro encontro foi na Índia. O quarto encontro, no Brasil, e o quinto, na África, já sob a hegemonia das organizações da América Latina, acabaram criando laços de solidariedade muito fortes com outros países do Sul do capitalismo. Mas os países do Norte têm mais recursos, facilidade de circular e de estar presente nos grandes encontros da OMC. Não há na Via Campesina o tipo de discussão que ocorreu nas experiências das Internacionais Socialistas, que levaram a rupturas e rachas.

É possível haver um convívio pacífico entre a agricultura globalizante e a proposta pelo movimento?
Acho que não. São projetos políticos opostos, que disputam os mesmos recursos materiais, mesmos espaços e populações. Um é o projeto hegemônico, do capital e da grande indústria na agricultura, e o outro, contra-hegemônico, da pequena agricultura. Não há possibilidade da convivência.

“Globalizemos a luta, globalizemos a esperança” é a versão atualizada da expressão marxista para os campesinos. No estudo, vemos que a globalização do movimento diminui gradativamente. Há um sinal de que a Via Campesina começa a dar sinais de esgotamento?
No começo todo mundo queria entrar e o crescimento foi grande. Quando a Via Campesina se internacionalizou, por meio de grandes eventos antiglobalização, em fóruns sociais mundiais, teve destaque. No entanto, o auge da hegemonia neoliberal teve um fim, inclusive por causa das crises econômicas, mas principalmente pelo questionamento político, e pelo surgimento de governos de esquerda na América Latina. Assim, a contra-globalização também está aparecendo menos.

O que representa, do ponto de vista histórico, a Via Campesina abrir espaço para diversas filiações ideológicas?

A Via Campesina parte de um movimento maior: de que mesmo sem a tomada do poder, do Estado, é possível fazer mudanças sociopolíticas significativas. Isso não significa que não tenha relações com governos e Estados progressistas. Por exemplo, na Venezuela, ela tem relação especial com o presidente Hugo Chávez.

De fato, a Via Campesina identifica que existe o poder de Estado, mas não o disputa. É um novo momento da história política mundial, que é herdeira de alguns dos questionamentos da tradição socialista a partir dos anos 1960. A ditadura do proletariado ou a tomada do poder não têm mais o mesmo peso e papel do passado.

Estamos diante da autêntica luta de classes do século 21?
Sim, elas são reconfigurações dessa luta de classes tanto na esfera econômica da vida social, quanto na política.

Por que a Via Campesina parece ter mais força no Brasil, um país da periferia capitalista?
Como tivemos um processo de expropriação do campo muito forte e violento, nos anos 1960 e 1970, continuamos sendo o país com a maior concentração fundiária do mundo. Desde a discussão das Ligas Camponesas em Pernambuco e depois, com a formação do MST, o MAB, MPA, todos se tornaram fruto dessa expulsão do pequeno proprietário do campo.
No Brasil, há o avanço de uma agricultura capitalista. Existe também uma expansão para a Amazônia, onde havia ocupações comunais da terra, como as populações ribeirinhas. Isso acabou provocando a organização de uma massa de trabalhadores rurais.

O momento de redemocratização brasileira, nos anos 1980, com o surgimento do PT, da CUT, também foi um momento de ebulição, que ajudou na formação desses movimentos. E eles acabaram impulsionando a internacionalização da Via Campesina. Havia a compreensão política de que o inimigo estava além das fronteiras nacionais. Essa coisa do boné, da bandeira, da lona preta, é uma “tecnologia de luta social” que se expandiu pelo MST.

Qual a relação do MST com a Via Campesina?
Há uma certa identificação de que o MST é a Via Campesina ou vice-versa. Não tem como negar que o MST é muito maior e teve uma história de enfrentamento radicalizado no final dos anos 1990 que o colocou com um ator político fundamental. Conforme o MST incorpora essa cara da Via Campesina — ao lado do boné vermelho vem o verde da Via Campesina –, que não é só do MST, mas de todos os movimentos, é natural que a imprensa e a sociedade façam essa ligação direta.

Luis Nassif

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