O mensalão e o crime do colarinho branco

Do Valor

O mensalão e o crime do colarinho branco

Cristine Prestes

Se o julgamento do mensalão foi ou não um ato político do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro, só a história nos dirá. Enquanto isso não acontece, jornalistas que acompanharam atentos o julgamento da Ação Penal nº 470 se apressam em escrever e lançar livros contando o que viram e ouviram, na tentativa de produzir uma análise que responda à dúvida que apenas o tempo conseguirá dirimir. O mesmo não ocorre com a academia, que, com extrema cautela, aguarda ansiosa a publicação do acórdão resultante do julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal (STF), cujo prazo final é o dia 1º de abril.

Para juristas e estudiosos do direito penal econômico, é prematuro avaliar se o que foi dito pelos onze magistrados em plenário e transmitido ao vivo pela TV Justiça durante os acalorados e por vezes agressivos debates que tomaram conta do tribunal de agosto a dezembro do ano passado é, de fato, o que constará da decisão final do processo judicial.

Acautelar-se, no entanto, não significa calar-se. Aqui e ali, professores e estudiosos do direito penal econômico apresentam, a promotores, procuradores, juízes estaduais, juízes federais e advogados, suas primeiras impressões sobre o “julgamento do século” e as principais questões que emergiram do debate público televisionado.

O mundo inteiro busca uma resposta ao crime econômico

A cautela faz sentido. Além do fato de sermos todos, por enquanto, meras testemunhas oculares da história, o mensalão é apenas uma peça a mais do quebra-cabeças que hoje representa o direito penal econômico no Brasil. Se é certo que teremos uma nova jurisprudência destinada a combater a corrupção, não menos certo é que já temos vigente uma nova Lei de Lavagem de Dinheiro capaz de conferir maior abrangência à persecução penal do crime que a sucede e dificulta sua identificação. Duas das consequências dessa nova lei entram hoje em vigor: as resoluções de número 24 e 25 do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que exigem das pessoas físicas e jurídicas que exerçam atividades de assessoria, consultoria e auditoria e ainda de comercialização de bens de luxo a comunicação de operações suspeitas de lavagem.

À nova Lei de Lavagem de Dinheiro pretende-se somar mais uma, dedicada especialmente a combater a corrupção. Tramita na Câmara dos Deputados, sob enorme resistência de parte do setor empresarial, em especial das empreiteiras, um projeto de lei que prevê pesadas sanções administrativas e cíveis a empresas corruptoras de funcionários públicos nacionais ou estrangeiros.

Vistas isoladamente, as iniciativas podem dar a entender que o Brasil toma a dianteira no que diz respeito à moralidade. Não está. Pelo contrário, caminha com atraso numa trilha percorrida por diversas nações ao longo dos últimos anos – nações estas que sofreram na pele as nocivas consequências do crime econômico.

Da crise financeira que atingiu os EUA em 2008 emergiram duas constatações: a primeira é que fraudes corporativas podem causar efeitos para muito além do prejuízo a acionistas; a segunda, que uma parcela de seus cidadãos mais ricos tinha por hábito enviar para fora de suas fronteiras bilhões de dólares sem declará-los ao Fisco, em prejuízo de todo o restante da população. Desses tristes cenários resultaram duas legislações extremas e controversas. A primeira delas, a Dodd-Frank Act, que incentiva os cidadãos a denunciarem fraudes contábeis e violações às normas por qualquer companhia que negocia ações no país. A segunda, a Foreign Account Tax Compliance Act (Fatca), um duríssimo golpe em uma das garantias individuais mais caras aos cidadãos americanos: o sigilo bancário.

Imersa na mesma crise americana está a Europa, cuja resposta aos desvios do colarinho branco veio com a aprovação da UK Bribery Act, lei que pune não apenas a prática de corrupção entre empresas privadas e governos como também o pagamento de propina entre companhias privadas.

Não à toa a academia, no mundo inteiro, debruça-se sobre o novo arcabouço legal e busca na doutrina respostas ao problema da criminalidade econômica. Como punir o indivíduo que, num escalão inferior, apenas cumpre tarefas repassadas por quem tem o domínio do fato (no caso, do crime)? E como levar os membros do escalão superior à punição se não praticaram o crime com as próprias mãos? O chamado “compliance” – ou, em tradução tupiniquim, “dever de vigilância” – deve ser usado como fator de proteção no caso de responsabilização criminal? São questões contemporâneas que ainda não encontraram resposta na doutrina mundial, preocupada em assegurar que a persecução do crime do colarinho branco não coloque em risco a atividade econômica.

Engana-se, portanto, quem enxerga o mensalão apenas como mais um triste capítulo de nossa história, marcada por tantos casos de corrupção e malversação do dinheiro público, ou somente como um julgamento que levou à condenação um grupo de políticos cuja existência uma parcela da elite quer extirpar do cenário nacional. Partindo-se do pressuposto republicano de que nossa Suprema Corte agiu deliberadamente no intuito de escolher a Ação Penal nº 470 como o processo cujo veredicto será a base para a formação de uma nova jurisprudência capaz de retirar do Poder Judiciário a pecha de ser conivente com o crime do colarinho branco ao postergar o julgamento dos poderosos, seu resultado será uma referência única para todo um sistema judiciário envolvido no combate à criminalidade econômica – incluindo nele polícias, Ministério Público, magistratura e advocacia.

Daí a importância da tão aguardada decisão resultante dos quatro meses em que os ministros da Corte se debruçaram sobre um tema tão controverso aqui quanto no resto do mundo. A jurisprudência que sairá do plenário da Suprema Corte estará estampada no acórdão publicado. Mas que ninguém faça pouco caso das chamadas notas taquigráficas que o acompanharão – aquelas falas dos magistrados, por vezes intempestivas, que trazem consigo seu entendimento a respeito do tema. Como a do ministro Luiz Fux, que ao analisar uma acusação de lavagem afirmou que, segundo seu juízo, o simples ato de gastar o dinheiro ilícito já configura crime. É bom não esquecer que o voto vencido de hoje pode ser a jurisprudência de amanhã.

Luis Nassif

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