O “mérito” de Deltan: vaidade, ganância e o bom e velho patrimonialismo brasileiro

A narrativa sobre sua infância é um típico relato da alta classe média; um núcleo familiar estável e bem estruturado, no qual ambos os pais possuem formação superior, com a presença de uma empregada doméstica e em uma casa grande o suficiente para contar com um jardim

Foto: Agência Brasil

Por Felipe Araujo Castro

No Justificando

Todos nós tendemos a racionalizar justificativas para nossas decisões e, principalmente, para as posições que ocupamos na sociedade. Somos encorajados e ensinados a enxergar o que temos e o que somos não como o resultado complexo da soma entre esforço pessoal e sorte, mas como fruto exclusivo de nosso “mérito”. Nessa equação social, o componente “sorte” se materializa numa série de condicionantes associadas ao nascimento; quero dizer, ninguém controla o local e as condições sobre as quais vem ao mundo – se nascemos ricos ou pobres, em um núcleo familiar estável e afetivo ou inseguro e violento, em meio a uma guerra civil ou num país com um forte sistema de seguridade social e níveis baixos de desigualdade etc. Condições essas que são tão importantes quanto, não raras vezes mais importantes, que os esforços individuais para determinação do nosso “sucesso na vida”.

Não existe sociedade, apenas o homem. No mundo de Margaret Thatcher a acumulação individual de capital é mais que recomendada; a concepção da vida admite. Nessa lógica, o indivíduo não deve contar com a sociedade e /ou o Estado para resolver seus problemas – não deve sequer historicizar ou questionar a origem destes –, antes, deve tratar a si mesmo como uma espécie de microempreendedor[1], consequentemente, tratando todos os demais como seus concorrentes.

É apenas nessa luta cotidiana pela sobrevivência dos mais aptos que é possível obter “sucesso”, compreendido cada vez mais como acumulação de renda. Naturalmente, a questão subjetiva do quantum pode ser considerado “suficiente” ou “justo” abre as portas para indiferenciação entre uma adequada remuneração, tendo em conta o exercício de uma dada função em um dado contexto social, da simples ganância. Mas o mais importante é que o Mercado está aí para validar essa visão, ou seja, para recompensar os mais laboriosos e inventivos ao garantir-lhes o retorno justo pelos seus méritos. Portanto, na ideologia subjacente ao neoliberalismo, as imensas disparidades salariais e desigualdades sociais são explicadas não como condicionadas por variantes associadas à acumulação de capitais (econômico, cultural e social, atrelados a recortes de raça e gênero), mas sim como fruto exclusivo dos méritos individualmente considerados.

O problema com essa narrativa está, no entanto, nos limites impostos pela realidade objetiva que teima em não se comportar como quer a teoria. Assim, não existem organizações sociais como a descrita, muito menos no Brasil, onde a escolha pelo modelo do Estado Social em 88 teve como objetivo fundamental a redução de desigualdades históricas e violentamente construídas, ao mesmo tempo em que manteve um modelo de produção centrado na liberdade de iniciativa e livre concorrência.

Nesse modelo de Estado os servidores públicos, trabalhando sobre o regime de estabilidade e independência, em diferentes níveis e nos diferentes aparatos burocráticos do Estado, têm como missão buscar os propósitos do pacto constitucional e não agendas privadas, pessoais ou coletivas. Parte importante desse trabalho está em apaziguar as eventuais externalidades negativas da livre concorrência em ambientes de desigualdades, por isso mesmo, muitas vezes esses funcionários públicos devem confrontar os interesses mais imediatos do Mercado: a arena por excelência daqueles e daqueles dispostos a assumirem os riscos para tornarem-se milionários.

Porém, o que acontece quando a remuneração de alguns servidores públicos os coloca na posição de potenciais milionários, gozando de retornos financeiros equivalentes aos dos melhores quadros do setor privado sem, no entanto, sofrerem os riscos inerentes ao jogo do mercado?

Entendo que os rendimentos das elites jurídicas nacionais, sobretudo os de juízes e promotores, corrompe a lógica do Estado Democrático de Direito ao combinar o melhor de dois mundos, estabilidade e retornos financeiros extraordinários, sem as desvantagens inerentes aos dois modelos; com consequências gravíssimas para o funcionamento da democracia.

Como já mencionado, as posições de extremo privilégio na qual se encontram determinados sujeitos precisam ser legitimadas (justificadas), tanto para o agente diretamente beneficiado quanto para a sociedade, o que é feito por meio de um processo de racionalização individual e coletiva. Por vezes tal processo de justificação é capaz mesmo de levar os agentes jurídicos mais bem pagos da burocracia estatal a conclusão que são mal remunerados[2], mesmo que seus rendimentos, não raras vezes, ultrapassem “500k” em um ano. A partir dessa má avaliação auto-interessada esses sujeitos passam a buscar “soluções disruptivas” para aumentarem ainda mais as suas rendas. As soluções passam pelo oferecimento dos mais variados serviços, como coachspara concurseiros, presença paga em eventos públicos e até mesmo palestras motivacionais.

Desde Weber, ficou claro que a afinidade eletiva entre capitalismo e o ascetismo protestante forneceu uma das mais encantadoras justificativas para a ganância, ao justificar moralmente a busca e acumulação de renda. Nessa lógica, a melhor forma de amar o próximo é “produzir”, pois, ao fazê-lo, por meio dos seus esforços individuais, você estará contribuindo para uma sociedade mais justa e igualitária.

Não disponho de dados estatísticos para comprovar minha intuição, mais ainda assim me arrisco a dizer que a visão de mundo que venho descrevendo aqui é hegemônica entre as elites do campo jurídico e desvirtua a própria noção de serviço público, na medida em que ao invés de servirem, esses agentes são “servidos” pelos seus cargos.

É difícil imaginar um exemplo concreto que materialize melhor o que venho afirmando do que a trajetória do Procurador da Lava Jato, Deltan Dellagnol. Isso em função da importância de sua posição no campo e, principalmente, pelo imenso material que Deltan nos legou: voluntariamente, por vaidade, em um livro-panfleto autobiográfico sobre combate a corrupção no Brasil e, por descuido, nas mensagens vazadas pelo jornal The Intercept – que a essa altura ninguém mais desconfia da veracidade das mesmas. Convido qualquer um que queria compreender o fenômeno da Lava Jato, suas condições de possibilidade e externalidades negativas, a comparar a imagem auto-construída de Deltan, destinada a justificar publicamente sua cruzada pessoal como representante do melhor interesse público, com o comportamento do mesmo Procurador quando acreditava estar protegido pela privacidade.

No primeiro capítulo do seu livro, denominado As injustiças no caminho, Deltan apresenta aos leitores as dificuldades que teve de superar, desde sua infância, para alcançar o posto de Procurador, bem como os obstáculos impostos pela realidade brasileira à sua prática profissional, sobretudo em relação ao combate dos crimes de colarinho branco, especialmente a lavagem de dinheiro. A origem dos obstáculos podem ser religadas à cultura nacional do “jeitinho” e suas consequências, como a corrupção sistêmica, ausência de dispositivos judiciais eficientes, conivência social com as práticas corruptas etc., todas elas conduzindo a um cenário de impunidade generalizado e frustração dos agentes jurídicos do sistema de justiça, aparentemente os únicos comprometidos com a mudança desse cenário.

A narrativa sobre sua infância é um típico relato da alta classe média; um núcleo familiar estável e bem estruturado, no qual ambos os pais possuem formação superior (o pai exercia a função de Promotor de Justiça e a mãe a função de professora), com a presença de uma empregada doméstica e em uma casa grande o suficiente para contar com um jardim.

Deltan descreve então a reprodução de privilégios de classe, como a introjeção de valores associados à educação e a disciplina, como se fossem frutos de seus próprios méritos[3]. “Desde pequeno fui estimulado a ler, estudar e vencer pelo meu próprio esforço”. Tendo tido a mãe como professora do Jardim de Infância, sua “âncora” e “porto seguro”, admite que “agradar a professora era, literalmente, agradar a minha própria mãe”.

Seu pai, por outro lado, teria sido quem o condicionou à disciplina, pois “embora a família contasse com o auxílio de uma funcionária”, seus pais sempre insistiram para que os filhos lavassem a louça, cortassem a grama e limpassem o próprio quarto! Conta-nos essas histórias para ressaltar como desenvolveu os valores da cultura trabalho, mas não avalia que o trabalho manual nesse contexto familiar era um meio de valorização da disciplina e não um fim em si mesmo, uma vez que ao jovem Deltan não estaria destinado o trabalho braçal e sim herdar a profissão do pai no sistema de justiça.

Superada a fase de lavar louça enquanto as outras crianças jogavam “bets” na rua, o que dificilmente pode ser descrito como “injustiça do caminho”, Deltan conta em um parágrafo curto, como que sem importância, que fora aprovado mais ou menos simultaneamente nos concursos da magistratura, da promotoria e da procuradoria da República, sem esquecer, no entanto, de nós informar as exatas posições que logrou em cada certame.

Escolher não foi tarefa difícil, a indecisão logo se desfez quando o jovem Deltan descobriu que “a função do Procurador da República é uma espécie de atividade de amor ao próximo”, uma pesquisa que aparentemente só lhe ocorreu após a aprovação nos concursos. Vejamos a imagem que o hoje Procurador faz de sua função e, consequentemente, de si mesmo[4]:

O procurador da República é um servidor público, um servidor do povo que recebeu da sociedade grandes e importantes desafios a enfrentar. Ele defende a democracia, os direitos fundamentais, promove a saúde, a educação, a cidadania, o meio ambiente e a segurança pública, protege direitos de consumidores, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com necessidades especiais, bem como zela para que criminosos paguem por seus crimes e, assim, sejamos uma sociedade com menos vítimas. […] Seu compromisso é unicamente com o povo a que serve.[5]

Nada mais distante do Deltan revelado pelas reportagens do The Intercept, nas quais o Procurador aparece discutindo com sua esposa e colega, Roberson Pozzobon, sobre estratégias para alavancar seus ganhos por meio da notoriedade que o cargo lhe rendeu. Tais estratégias passavam pela constituição de uma empresa de eventos, na qual as esposas dos membros da força-tarefa figurariam como laranjas, destinadas a promover palestras e eventos que renderiam a Deltan, segundo seus próprios cálculos, “400k” líquidos em um único ano.

As conversas mostram ainda as tentativas do Procurador de justificar os lucros provenientes de suas novas atividades enquanto celebridade, para si e para os colegas que passaram a demonstrar desconforto com o comportamento de Deltan. Para ele, as palestras compensariam os seus esforços em dedicação exclusiva à força-tarefa, o que implicava perdas potenciais referentes a impossibilidade de realizar intinerâncias e substituições[6]. O modelo de negócio vislumbrava ainda expandir o público ao sair da “linha tradicional do ensino jurídico” e avançar sobre o mercado das palestras motivacionais, com “uma pegada de pirotecnia”. O Procurador imaginou diversos títulos para seus cursos, muito deles ironicamente envolvendo a palavra “ética”, mas o meu favorito é “Empreendedorismo e governança: seja dono do seu negócio e saiba como governá-lo”.

O ato falho é latente: considerando que o Deltan nunca exerceu outra atividade que não a de Procurador, o que por lei lhe proibi de ser um empresário, que tipo de conselhos ele teria a dar sobre empreendedorismo? Pior ainda: assumindo então que ele trata o cargo público como um negócio próprio, e daí retira a experiência necessária para palestrar sobre o tema, quais estratégias estariam justificadas na busca de fama e lucro? O sucesso do Procurador-empreendedor promove os bens públicos que outrora Deltan afirmou defender por vocação?

As palestras de Deltan Dallagnol não valeriam nada se não fosse o cargo que ocupa, e jamais valeriam os “10k” líquidos que cobra sem a fama que o Procurador alçou ao mal versar esse mesmo cargo. Portanto, seu comportamento nada mais é que uma manifestação banal do bom e velho patrimonialismo, ou seja, a utilização de bens públicos para obtenção de benefícios privados; outra manifestação do jeitinho e da corrupção que proclama combater. Aparentemente, melhor que amar o próximo apenas ficar rico e famoso no processo.

Só nós resta esperar que o Ministério Público entenda rápido que a melhor prática corporativa não é defender as práticas dos seus integrantes a qualquer custo, mas sim repreender exemplarmente os desvios de conduta, na esperança de preservar a própria instituição e os aspectos positivos da Operação. Caso contrário, como bem alertou um membro da força-tarefa em outro diálogo vazado, o campo jurídico terá apenas repetido de maneira farsesca a República do Galeão, tendo contribuído, mais uma vez, para escalada do autoritarismo no Brasil

Felipe Araújo Castro é doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e Professor na Universidade Federal Rural do Semi-Árido.

Redação

1 Comentário

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  1. Felipe Araujo Castro, muito preciso o seu texto. Lembra as análises de Jessé de Souza, bem como remete aos conceitos de campo e habitus, de Bourdieu.
    A meu ver, instituições como MP e Judiciário já perderam o timing para evitar repetir a República do Galeão, e a lava jato foi o ápice desse processo, não exatamente sua causa.
    Você deve lembrar de um evento recente que ocorreu em Cuiabá, se não estou enganada. O judiciário e o MP realizaram um desfile de crianças para adoção (em outros estados acontecem coisas tão abjetas quanto essa). A repercussão negativa deixou juízes e promotores envolvidos estupefatos. Para eles, tudo foi feito “no melhor interesse da criança”, mote em nada diferente do “combate à corrupção”. O discurso e a prática desses agentes é de que eles detém o único arsenal de virtudes capaz de realizar as grandes transformações. Ainda que a realidade os desminta diariamente.
    Fiz esse comentário para acrescentar a seu texto o argumento de que não se trata apenas de cretinice, hipocrisia e mau caratismo do agente, mas de uma estrutura que favoreceu a militância até mesmo criminosa dos agentes jurídicos. E não falo de patrimonialismo, mas do interesse em acúmulo de poder como forma de garantir o absolutismo de suas práticas. Não foi o acaso que juntou a lava jato a um governo autoritário; foram anos de práticas absolutistas no judiciário e no MP, as quais aparecem para o público como modernização, combate à corrupção, melhor interesse da criança e similares. Todas correm à revelia do conhecimento e do controle social.
    Às vezes eu penso que fomos capazes de elaborar as melhores leis e as piores instituições para aplicá-las.

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