“Olhos que condenam” e o lugar de fala dos olhos que assistem, por Maíra Zapater

Esse brevíssimo resumo já daria pano pra manga de discussões infindáveis sobre as muitas falhas do sistema de justiça criminal, mesmo sem acrescentar dois elementos centrais do caso: os meninos eram quatro negros e um hispânico. E a vítima, branca

Foto: Reprodução/Netflix

Por Maíra Zapater

No Justificando

Assisti quase que de uma sentada só à série original da Netflix “Olhos que condenam” (ou em seu título original, mais pleno de significados: “When they see us[1]), sobre o caso real de 5 adolescentes norte-americanos acusados injustamente de terem estuprado uma mulher no Central Park em 1989. Os meninos são condenados e presos nas variações da Justiça Juvenil e sistema de justiça criminal de adultos dos EUA, e somente em 2001 inocentados após o verdadeiro autor do crime confessar. O caso foi conduzido pelos advogados do Innocence Project[2].

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Esse brevíssimo resumo já daria pano pra manga de discussões infindáveis sobre as muitas falhas do sistema de justiça criminal, mesmo sem acrescentar dois elementos centrais do caso: os meninos eram quatro negros e um hispânico. E a vítima, branca.

 

Terminada a série, tinha eu na cabeça todo um texto sobre presunção de inocência; sobre a contaminação que a experiência prisional exerce em toda a família e relacionamentos da pessoa que passa por isso (o que igualmente ocorre com pessoas que, de fato, praticaram o crime pelo que foram condenadas – e faz com que o princípio da pessoalidade das penas seja uma imensa ficção); que, guardadas as diferenças, há muitas semelhanças (e verossimilhanças) entre o que é mostrado na série e a realidade brasileira; e ainda a importância do trabalho do Innocence Project (e o quanto deveríamos nos alarmar com o fato de iniciativas desse tipo serem tão necessárias). Enfim, uma boa série para indicar em aula de processo penal e na vida.

Mas eis que na edição de 04 de julho da Folha de São Paulo me deparo com os artigos do cineasta e roteirista Dodô Azevedo[3] e do ator Lázaro Ramos[4], em que cada um, sob sua perspectiva pessoal, expõe seu desconforto em assistir à série, ainda que ambos sejam enfáticos sobre as qualidades dramatúrgicas da produção e a relevância de se registrar o relato. Dodô traz em seu texto o depoimento de algumas pessoas negras que não conseguiram assistir à série, por verem mais uma vez a representação das histórias e vivências de negras e negros nas produções culturais se dar na chave exclusiva do sofrimento decorrente do racismo e das desigualdades sociais. Em suas palavras,”Narrativas exclusivamente dolorosas podem ser, na verdade, alienantes.” E complementa: “De imediato, catarse sintética. A longo prazo, esquecimento” – difícil discordar dele quando pensamos no sucesso de “Cidade de Deus[5]  e nos destinos nem tão brilhantes dos espetaculares dos meninos não-atores que protagonizaram o longa[6]. Neste seu artigo, Dodô reconhece todos os méritos da série, afirmando que “Ava DuVernay, a fenomenal roteirista e diretora da série, mulher negra americana, acerta ao captar o espírito do tempo e apontar como principal vilão do planeta hoje a opinião pública, o cidadão de bem”, mas defende que as produções desse tipo poderiam escolher mostrar outras histórias de pessoas negras, citando como exemplos os musicais sobre as biografias de figuras como Elza Soares e Ivone Lara: “São narrativas que se recusam a representar negros exclusivamente sofrendo. São olhos que condenam “Olhos que Condenam” “

 

Lázaro Ramos também elogia a diretora e afirma ter sido “tudo muito bem realizado e executado.” Mas compartilha sua experiência: “Pesquisei a história e conversei com pessoas que me sugeriram ir para o segundo episódio. Então, vi um pedaço de cada capítulo e a meia hora final do último. Acho que é tão dolorido porque tem a ver com dia a dia da gente. Essa pauta pula todos os dias no colo da sociedade.” Em seu artigo, o ator enfatiza sua preocupação em “sempre sugerir um caminho. Não ficar somente na denúncia.

Caramba, e eu que tinha gostado tanto da série não tinha visto nenhuma dessas questões: os argumentos expostos por Dodô e Lázaro me fizeram repensar a ideia original do meu texto a partir de dois pontos, que apresento a partir daqui.

 

O primeiro diz respeito a algumas produções cinematográficas que procuram abordar questões relativas a Direitos Humanos: são filmes que, embora tratem de assuntos que me instigam, o fazem de forma que busca simplesmente mostrar como e quanto sofrem as pessoas que têm seus direitos básicos violados. Na minha leitura, são narrativas que operam por meio de procedimentos rudimentares de manipulação de maniqueísmos e de construção de personagens sem ambiguidades, para forçar uma identificação com os protagonistas. Foi o caso, para mim, de filmes como “As sufragistas[7], “12 anos de escravidão[8], “Eu, Daniel Blake[9], “Histórias Cruzadas[10], “The first grader – uma lição de vida[11]: em todos eles, explora-se ao limite o sentimento de piedade pelos protagonistas em razão das crueldades praticadas (às vezes por indivíduos, às vezes por instituições), para ao final afirmar de forma mais ou menos explícita que é essa a “grande importância” de se garantir os Direitos Humanos para todos, pois quem não tem seus direitos sofre muito. Isso não deixa de ser verdade, é claro.

Porém, para o meu paladar, são mais instigantes obras como “Os últimos passos de um homem[12], em que Susan Sarandon interpreta uma freira incumbida de prestar apoio espiritual a um homem condenado à morte por ter praticado um crime bárbaro (personagem de Sean Penn, e sobre  qual não restam dúvidas no filme de que ele é – ou foi – um homem violento e perigoso, e que praticou a atrocidade pela qual foi condenado), ou o recente “Projeto Flórida[13], em que uma jovem mãe e sua filha pequena (interpretadas respectivamente por Bria Vinaite e Brooklin Prince), moradoras de motéis baratos localizados na periferia invisível dos parques da Disney na Flórida, se veem enredadas nas engrenagens de um Estado social ineficiente – com o saboroso detalhe de serem as protagonistas personagens absolutamente antipáticas, insuportáveis e cujas condutas antiéticas frequentemente flertam com o crime. Não é (ou não me foi, ao menos) possível construir qualquer vínculo de empatia – ou sequer simpatia – com elas: e aí, é pra “esse tipo de gente” que vamos defender “os Direitos Humanos”? ATENÇÃO: SPOILER – sim, é pra “esse tipo de gente”, assim como para os personagens doces e chorosos por meio dos quais diretores buscam extrair lágrimas a fórceps para nos convencer do que “é justo”.

 

Em suma, este primeiro ponto diz respeito a obras em que se retratam vítimas de violações de direitos como se essas pessoas fossem apenas isso: uma vítima de violação, que sofre sem ter qualquer responsabilidade ou ingerência sobre a situação em que se encontra, e sem outra perspectiva ou vivência possível. Um ângulo único e empobrecedor.

 

E aqui ingresso no meu segundo ponto: minha mudança de perspectiva sobre “Olhos que condenam” só foi possível porque, com seus textos, Dodô Azevedo e Lázaro Ramos (ambos homens negros), me mostraram como viam aquela narrativa a partir dos lugares sociais que ocupam como homens e como negros. O fato de estudar, pesquisar e lecionar há quase 20 anos na área de Direito Penal e Direitos Humanos certamente me permitiu reunir um bom repertório sobre o assunto e me sensibilizou o suficiente para me manter constantemente indignada com as injustiças massificadas que o sistema de justiça é capaz de produzir. Mas, por mais que eu estude, pesquise e vá a campo, isso jamais substituirá uma existência sob uma pele negra e um rosto de rapaz jovem que desde muito cedo precisa ser treinado sobre como (sobre)viver e interagir na presença de autoridades policiais: falamos, eu e os rapazes de pele negra, de lugares sociais muito diferentes, o que fez com que não passasse nem por um segundo na minha cabeça essa sensação de se ver sempre representado de forma quase que exclusiva como “o oprimido sofredor” (representação que tanto me incomoda nos filmes que citei mais acima), e o quanto isso pode doer ao assistir, por mais verdadeira e necessária que seja a denúncia.

 

Assisti à série a partir de um lugar que ocupo no mundo, que é de ser mulher (cis), (no contexto sócio-cultural brasileiro vista como) branca, de classe média e com alto grau de instrução na área de Direito. Estar nesse “lugar simbólico” opera efeitos na visão tanto quanto estar fisicamente em um lugar e a partir dele enxergar algo: quem está sentado no banco da frente de um carro terá acesso privilegiado de visão a alguns elementos que o cercam, mas não a outros – e vale o mesmo para quem está sentado no banco de trás. Trata-se de reconhecer que as posições que ocupamos permitem ver algumas coisas, enxergar de frente certos pontos, e só por um ângulo oblíquo alguns outros. Haverá pontos, ainda, que somente poderemos conhecer de ouvir falar: alguém discordará que a visão do motorista pelo espelho retrovisor, por mais cuidadosa e atenta que seja, jamais será a visão de quem está fora do carro e olhando de perto o que está atrás do veículo?

A leitura dos textos de Dodô e Lázaro me fizeram lembrar outro que li também esta semana na Folha de São Paulo, de autoria do professor de História da arte Jorge Coli[14], no qual ele traça distinções entre “lugar de fala” e “argumento de autoridade”. Coli reconhece, acertadamente, que “existem minorias que sofreram opressões ao longo da história e que são oprimidas ainda hoje. Minorias cujas vozes foram, ou continuam sendo, abafadas. Qualquer sentimento de dignidade humana, por menor que seja, leva a apoiar todos os movimentos que lutem para que elas manifestem suas expressões plenas e livres. Mas não se pode confundir direito à palavra com argumento de autoridade. Precisamente, a expressão ‘lugar de fala’ vem sendo usada nesse sentido com muita frequência.(…) Ora, pertencer a uma minoria confere autoridade narrativa e testemunhal apenas. Porque o único lugar de fala admissível quando se trata de conhecimento e reflexão é o da universalidade racional. Fora dele, desabamos no campo inseguro das paixões. Ele garante que os lugares de fala não interditem a própria fala.”

 

Para mim, o texto de Jorge Coli permite perceber a grande beleza e a importância de se considerar o lugar de onde cada um fala (ao menos na maneira como eu concebo este conceito): tomar consciência da visão de Dodô e Lázaro não invalida nem desautoriza minha visão, em especial como professora de Direito que viu nos profissionais retratados na série personagens que me remetem a pessoas que conheço na vida real, tais como juízes e juízas, promotores e promotoras que, como eu, frequentaram os mesmos bancos privilegiados de escolas de Direito de elite de uma cidade tremendamente excludente como São Paulo. Que, como eu, ouviram professores de Direito Penal fazerem piada em sala de aula tais como “ao inocente, a pena mínima”. Não sei o que esses colegas viram de suas “janelas simbólicas” para que tivessem a coragem de fazer a réus perguntas em audiências tais como “mas esse policial que prendeu a senhor ia mentir porquê, quando disse que o senhor estava com a droga?”, diante de alguém que inequivocamente sofreu tortura antes de ir pro fórum “confessar” um crime de tráfico de pequena quantidade. Ou de fazer uma cara pedantemente intrigada quando a pessoa sentada diante dele diz que tem residência fixa e que mora “no quintal da avó”, deixando nítido que esse tipo de moradia inexiste em condomínio de luxo. Meu lugar de fala me possibilita uma visão bastante rica desse universo: o lugar onde estou sentada no carro tem janela para essa vista.

 

Mas como fica mais rica a visão do todo quando podemos ouvir as falas de quem ocupa outros lugares do carro: Dodô e Lázaro me contaram o que viam – e sentiam – a partir do que está nas janelas deles.

Esse era um texto no qual eu ia descrever, a partir do meu lugar de professora de Direito, os problemas intrínsecos ao sistema de justiça criminal. Ao ouvir quem fala a partir de outros lugares pude enxergar elementos que estavam em pontos cegos quando observados da minha perspectiva pessoal. Ou seja: posso afirmar que, da minha janela, jamais teria visto o mesmo que Dodô e Lázaro viram das suas janelas – e só posso agradecer pelo que me contaram.

 

Ouvir as falas dos diversos lugares sociais – e atribuir-lhes a mesma importância –  enriquece as descrições e possibilita análises mais complexas, e que contribuem para soluções de problemas. É importante reconhecermos os muitos lugares de fala existentes justamente por todos serem incompletos.

 

Quanto a “Olhos que condenam”: para mim, valeu ser vista, mesmo conhecendo de antemão o caso, e, infelizmente, sem me surpreender com absolutamente nada das atrocidades a que os meninos são submetidos. Elas estão acontecendo enquanto você lê este texto, no fórum criminal da sua cidade, na delegacia, na penitenciária, na fundação onde se cumprem medidas socioeducativas. Então se você ainda não conseguiu sentar nesta janela para ver o que tem lá, a série pode ser um bom começo: “When they see us” mostra, antes de mais nada, um ponto de vista de uma janela em que nem todos vamos nos sentar.

 

 

Maíra Zapater é doutora em Direitos Humanos pela USP, graduada em Direito pela PUC-SP e em Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, professora e pesquisadora. Autora do blog deunatv.

Redação

1 Comentário

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  1. A metafora do carro é bem pobre para descrever os lugares de fala, as experiências, no caso dos negros, colocam os brancos no porta luvas e os negros com a cabeça pra fora do teto solar. Os brancos não fazem ideia do que os negros passam. Me entristece saber que a senhora foi trabalhar e estudar com pessoas que expressam aquilo que a sociedade brasileira tem de pior, o judiciário é a continuação da escravidão, os juízes, magistrados, promotores, desembargadores etc são a manifestação dos escravocratas que desejariam do fundo dos seus corações o extermínio dos negros

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