Os direitos humanos no Brasil: avanços e recuos durante os anos do petismo

Apesar desses consideráveis avanços, pesquisadores pontuam o “imobilismo” dos governos do PT advindos de “alianças políticas” com setores conservadores

Por Emanuel Freitas da Silva*

A eleição de Luís Inácio Lula da Silva (Lula), do PT, para a Presidência da República, em 2002, conduziu parte considerável de setores progressistas da política brasileira ao governo federal, o que, dentre outras coisas, significaria um aprofundamento (radical) da implementação de políticas públicas relacionadas com os direitos humanos, iniciada ainda durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), de 1995 a 2002. Foi nas gestões de FHC, por exemplo, que se implementaram as duas primeiras versões do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), em 1996 e 2002, e a terceira foi implementada em 2009, já sob a gestão de Lula. Importantes pesquisadores da área apontam avanços significativos na área, sem negar recuos que impuseram retrocessos consideráveis em direitos já conquistados, incluindo violações, sobretudo porque os “planos” de atuação muitas vezes se resumiram a “cartas de intenções”.

Soares & Guindani (2017) realizaram um importante balanço dos anos sob a gestão petista no que tange aos direitos humanos. Os autores destacam avanços significativos na redução das desigualdades sociais (sobretudo por meio do aumento da renda dos mais pobres, via valorização do salário mínimo, do crédito consignado e do Programa Bolsa Família), políticas afirmativas de combate ao racismo e a outras discriminações, a atenção às questões em torno da proteção e defesa das mulheres (sobretudo com a lei contra o feminícidio), a diminuição do desmatamento da Amazônia, o estabelecimento da pauta da cultura como agenda política e a diminuição do número de homicídios, sobretudo por meio de incentivos à formação de policiais militares.

Apesar desses consideráveis avanços, os autores pontuam o “imobilismo” dos governos do PT advindos de “alianças políticas” com setores conservadores, de marcada oposição às pautas dos direitos humanos (sobretudo os “direitos coletivos” e “civis”), sob a alegação da necessidade de “compartilhamento de responsabilidades” entre os entes federados. Segundo os autores, o caso dos crimes cometidos por agentes do Estado é ilustrativo:

Alianças políticas com governos estaduais que autorizaram e encobriram a brutalidade policial, inclusive execuções extrajudiciais, impuseram aos presidentes Lula e Dilma, e a boa parte do PT, silêncio obsequioso ante violações inomináveis dos direitos humanos. O caso do Rio de Janeiro ilustra essa postura pusilânime. Como a imensa maioria das vítimas é formada por jovens pobres e negros das periferias e favelas, a anuência tácita guarda uma significação especialmente marcante, fazendo com que, no front da segurança pública, os governos federais petistas jogassem pela janela tantos avanços significativos. […] Para citar apenas alguns dados e demonstrar que não há exagero retórico, entre 2003 e 2015, no [E]stado do Rio de Janeiro, houve 11.343 mortes provocadas por ações policiais. […] Ante esse espetáculo de degradação institucional e homicídio em massa, os governos petistas lavaram as mãos; sequer bloquearam o repasse de recursos para a secretaria de segurança e as polícias envolvidas no massacre cotidiano (Soares & Guindani, 2017, pp. 199-200).

Assim, o campo da segurança pública – que também envolve a criminalização da juventude pobre e negra –, junto às pautas identitárias, seria o mais prejudicado pelas alianças petistas circunstanciais, em busca das reeleições de Lula (2006) e Dilma (2014), acarretando consideráveis recuos na política de direitos humanos no Brasil.

Outro recuo nos anos de governo do PT é o verificável avanço da política de encarceramento, sobretudo de jovens negros e de praticantes de crimes contra o patrimônio, legando ao país a quarta posição mundial em termos de população carcerária:

Em 2014 havia 574 mil presos no país, 61,7% eram negros e 40% estavam em prisão provisória. Os que cumpriam sentença por homicídio doloso representavam cerca de 12% do total. A maioria cometera crimes contra o patrimônio ou se envolvera em comércio ilegal de drogas ilícitas. Ou seja, as evidências apontavam para uma completa inversão de prioridades, em detrimento da valorização da vida e dos crimes violentos contra a pessoa. Desde 2014, não há dados consolidados acessíveis, mas se supõe que, em 2016, os presos já sejam mais de 700 mil (Soares & Guindani, 2017, p. 203).

Os recuos acentuados na promoção dos direitos humanos, sobretudo os sociais (na área da segurança pública), durante as gestões do PT também são analisados por Jatobá (2017). Depois de analisar o plano “prematuro e pouco estruturado” do governo FHC, em 2000, e a criação, no ano seguinte, do Plano Nacional de Segurança Pública – limitado a mero repasse de recursos destinados à compra de armas e viaturas para as polícias estaduais –, além de analisar a criação do Sistema Único de Segurança Pública durante o primeiro governo de Lula – que acarretou significativa diminuição do número de assassinatos – e a criação do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (Proansci), junto com a aprovação do Estatuto do Desarmamento, a autora passa a considerar os desacertos das políticas públicas na área durante o segundo mandato de Lula e durante os mandatos de Dilma Rousseff. O balanço feito pela autora é o seguinte:

Apesar dessa significativa abertura da política de segurança para a sociedade, os anos seguintes até o final do segundo mandato de Lula foram de crescimento progressivo dos crimes violentos letais no país. Em 2010, a taxa de mortes violentas por 100.000 [habitantes] chegou a 27,4. Não existia mais um quadro de redução, e sim de incremento da violência letal, mesmo sendo o ano com maior recurso para despesa em segurança da década por parte do Governo Federal, com R$ 13,6 bilhões. […] A presidenta Dilma Rousseff começou o governo com uma taxa de 27,1 e terminou o primeiro mandato com uma taxa de 29,4 mortes violentas letais intencionais por 100.000 habitantes. Do ponto de vista dos recursos destinados às despesas com segurança, não houve um incremento. Houve, inclusive, uma redução nos anos finais. […] Avançou-se muito pouco em pesquisas e produção teórica. […] Mas ao fim e ao cabo, no ano de 2014, 59.681 pessoas foram mortas de forma violenta no país, o maior número de mortes no país até então (Jatobá, 2017, pp. 212-213).

Há, pois, uma contradição em termos. Por um lado, estudiosos da área de direitos humanos apontam significativos avanços na agenda durante os governos do PT, sobretudo no que tange às pautas identitárias, ao mesmo tempo que assinalam desastrosos recuos em importantes setores dessa mesma agenda, especialmente no que tange às práticas de desrespeito aos direitos humanos por parte de agentes do Estado, principalmente policiais, apontando o crescente número da violência policial no país; esses estudiosos também assinalam um crescente número de ações letais, acompanhado de consideráveis níveis de sensação de segurança e desproteção por parte da população, fomentando o apoio social a uma agenda policialesca e de militarização da vida social.

Isso demonstraria uma inegável desimportância dos direitos humanos na agenda governamental, sobretudo no que tange à proteção à vida. Por outro lado, vimos surgir no país considerável oposição social aos direitos humanos, representados como direitos de bandidos, que teriam passado, durante os “anos do PT”, a “atrapalhar a ação policial”, “afrouxando as leis” e servindo de “proteção a bandidos”.

Assim, os direitos humanos representam, em meio à sociedade, mera defesa de uma parcela dela – a dos criminosos –, enquanto deixaria à margem, e desprotegida, a grande maioria, aqueles que não cometem delitos: nada melhor a fazer, pois, do que se opor a eles. Uma das razões para tal oposição é considerada por Renato Janine Ribeiro (2017, pp. 54-55) nos seguintes termos:

Um erro involuntário que me chama a atenção nos defensores dos direitos humanos é que, insensivelmente, eles deixaram que sua nobre causa se confundisse com a defesa tão somente dos direitos das vítimas de ação policial. Com isso, o conceito acabou ficando bastante limitado. É o que facilita uma reação dura aos direitos humanos, desde a horrível frase “direitos humanos para humanos direitos” (que nega de pronto o direito a um julgamento justo, até para saber se a pessoa é “direita”) até a expressão que ouvi certa vez de um motorista de táxi, que reclamava do “pessoal dos recursos humanos” (sic) que acudia qualquer criminoso tão logo ele fosse preso e descuidava das pessoas honestas, de bem, cumpridoras da lei. […] o que me parece um erro estratégico dos militantes da causa é não tornarem público que há um sem-número de direitos humanos, que cobrem praticamente toda a gama do que somos e fazemos. A atenção a esse ponto se torna ainda mais premente porque a massa mais fácil de se convencer de que os direitos humanos são só para bandidos – e portanto de se opor a eles – é de pobres, desempregados, vulneráveis.

Tomo a liberdade de, no espaço deste artigo e dada a impossibilidade objetiva de realizar um apurado levantamento histórico, delimitar como marco simbólico dessa representação dos direitos humanos como direito de bandidos, no Brasil, o comentário da apresentadora do Jornal do SBT, Rachel Sheherazade, em janeiro de 2014.

Um jovem negro, reincidente em assaltos, havia sido capturado por um grupo de jovens, autodenominados “justiceiros”, após a tentativa de assalto em uma praia do Rio de Janeiro, e preso a um poste com corrente de bicicleta, recebendo várias pauladas, tudo isso gravado com câmeras de celular. As imagens circularam o mundo, causando indignação e protesto de entidades ligadas aos direitos humanos. Foi então que, durante o editorial do Jornal do SBT, à noite, a apresentadora disse, dentre outras coisas, o seguinte:

O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E aos defensores dos Direitos Humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido!

A frase “adote um bandido” foi compartilhada aos montes nas redes sociais e o vídeo alcançou significativo número de visualizações, alçando a jornalista Rachel Sheherazade ao status de importante “formadora de opinião” de grupos de direita, com marcada oposição aos direitos humanos, uma vez que tais grupos se opõem a muitas conquistas progressistas do século XX – dentre as quais a própria DUDH (ONU, 1948).

Contudo, vale destacar, aqui, como tal representação dos direitos humanos como algo a combater, posto “defender apenas bandidos”, constituiu uma bandeira política nos dias atuais e, assim, arregimentou considerável apoio, sobretudo de jovens, à plataforma política do então candidato Jair Bolsonaro.

Luis Felipe Miguel (2018, p. 23), por exemplo, assinala como a tal representação se alia à “campanha pela redução da maioridade penal” e às “críticas aos programas sociais, que estimulariam a preguiça e desencorajariam o esforço próprio”.

Como, pois, compreender a oposição ideológica do bolsonarismo aos direitos humanos? Como se articulam seus elementos constitutivos? É o que analiso no próximo tópico.

Este artigo faz parte do trabalho acadêmico “Os direitos humanos no bolsonarismo: descriminalização de bandidos e punição de policiais”. Confira a íntegra aqui.

Emanuel Freitas da Silva é doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC Professor Assistênte do Curso de Ciências Sociais da FACEDI/ UECE.

 

Redação

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