Os sentidos do bolsonarismo: um modo de ser brasileiramente ideológico

O autoritarismo moralista-cristão é a mentalidade que foi canalizada e amplificada pelo bolsonarismo a partir da sociedade brasileira, e não criada por ele

Por Wécio Pinheiro Araújo 

Na questão da política, o lulismo nos deixou contradições que somente quando se inicia a formação do bolsonarismo é possível começar a decifrá-las na compreensão de um importante aspecto que levou ao sucesso da candidatura de Jair Bolsonaro: o autoritarismo moralista-cristão começa a construir um realinhamento ideológico entre civis (pobres e ricos) e militares, que acusa ideologicamente de “ideologia” qualquer leitura crítica da própria formação social brasileira, sob rótulos vazios como “comunismo” ou “marxismo cultural”.

Surge o bolsonarismo, fenômeno que nasce sob a urdidura da contradição em uma sociedade na qual o pobre é conservador, a pobreza é um problema moral, a riqueza é um título para poucos – afinal, todo rico é “doutor” – e o fundamentalismo cristão é a base ideológica que afasta qualquer leitura crítica da realidade social. A base da mentalidade bolsonarista é o autoritarismo de fundo moralista-cristão em uma versão tropical-digitalizada das cruzadas – as espadas desses novos templários são as fake News empunhadas digitalmente nas redes sociais. Vale lembrar que, segundo historiadores, Cruzada é o termo utilizado para qualquer dos movimentos militares de inspiração cristã, a chamada “guerra santa”.

Esse autoritarismo que constitui a base ideológica do bolsonarismo não é uma nova onda que surge na sociedade brasileira, mas se trata de uma progressão imanente à formação social ultraconservadora do Brasil, que encontrou em Bolsonaro, uma liderança. O bolsonarismo é um fenômeno brasileiramente ideológico; por isso, para compreendelo, é preciso uma concepção da ideologia sob uma perspectiva de totalidade, isto é, não apenas como o conteúdo dos discursos, por assim dizer, ideológicos; é necessário também entender as sutilezas da ideologia como forma de vivenciar o conteúdo das relações sociais em uma sociedade marcada por contradições.

A sociedade brasileira, tendo o autoritarismo como uma determinação histórica imanente, produziu o bolsonarismo. Apesar da sua aparência cômica e pueril – repleta de vexames nacionais e internacionais –, a gravidade do bolsonarismo está no fato de que esse fundo autoritário foi canalizado e amplificado ideologicamente na forma de um Sujeito político autônomo, autoritário e raivoso, que chegou ao poder. Embora, antes disso, este Sujeito se constituiu socialmente produzindo uma profunda capilaridade ideológica na sociedade civil brasileira. Se estendeu por todas as camadas sociais, tangenciando mesmo as contradições e oposições históricas que definem a luta de classes no capitalismo brasileiro. O bolsonarismo chegou ao poder com legitimidade política não apenas formal, mas sobretudo social e ideológica e, portanto, representa uma importante parcela do Brasil real. Em sua totalidade, é uma força política material com forte penetração nos setores majoritários da sociedade civil brasileira.

O autoritarismo moralista-cristão é a mentalidade que foi canalizada e amplificada pelo bolsonarismo a partir da sociedade brasileira, e não criada por ele. Esse fenômeno ganha força quando arrebata parte da base que havia sido captada pelo lulismo no seu pacto social que, como vimos na análise que desenvolvemos a partir do André Singer, obteve sucesso com seu programa de combate à pobreza por meio da ativação do mercado interno, melhorando o padrão de consumo da metade mais pobre da sociedade, sobretudo no Norte e Nordeste do país, sem confrontar os interesses do capital financeiro e da burguesia nacional, e mais: integrando economicamente essa massa no sentido de favorecer politicamente tais interesses. Há uma complexa continuação dialética entre lulismo e bolsonarismo: as pontas deixadas soltas no campo ideológico pelo primeiro no tocante à questão da política, agora são atadas pelo segundo.

Ao invés de trabalhar ideologicamente a questão da política enquanto esteve no poder, o lulismo unicamente transformou “pobres em consumidores e não em cidadãos” – como sintetizou de forma certeira o ex-presidente do Uruguai, José Mujica. O lulismo se comprometeu por meio de alianças demasiado permissivas em seu pacto conservador, e ignorou as sutilezas e artimanhas da ideologia na sociedade brasileira. Aquilo que o lulismo não fez ideologicamente quando logrou o encontro de uma liderança, a de Lula, com um Estado capaz de ajudar os mais pobres favorecendo a ordem, o bolsonarismo surge para fazer sob o ideológico signo da falência moral do lulismo: trata-se da consolidação do aparelhamento ideológico desse fundo autoritário moralista-cristão no Estado brasileiro, e de maneira fortemente legitimada na sociedade civil. Como isso ocorre junto à massa?

Na heterogênea mentalidade evangélica brasileira que se projetou como um bloco social fundamental na formação política contemporânea, há um traço ideológico importante, que foi ignorado pelo lulismo, mas que adquire centralidade no bolsonarismo: as narrativas míticas (bíblicas) são vivenciadas como fatos reais, ipsis litteris; porém isso se dá sob mediações ideológicas profundamente enraizadas na formação social do imaginário popular brasileiro, que entra em convergência com a normatividade neoliberal, harmonizando ideologicamente os interesses do capital com os valores moralistas deste neoconservadorismo de base teocrática neoarcaica. Há uma estrutura social muito bem arquitetada nesse importante segmento do fundamentalismo cristão brasileiro.

A reprodução social da ideologia evangélica é cuidadosamente organizada nas congregações, lideradas por seus sacerdotes. São células estruturadas com formação doutrinária eficiente e trabalho ideológico visceral. As denominações pentecostais e neopentecostais dominam entre os setores mais pobres, conforme descreve a pesquisa da Andrea Dip (2018); assim como também segmentos não pentecostais tem forte adesão da classe média. Assim, os pastores se tornaram os verdadeiros intelectuais orgânicos da sociedade brasileira. Essas igrejas são instituições mais antigas do que grande parte das universidades, conforme podemos concluir com ajuda de Alderi de Souza Matos, em seu artigo Breve história do protestantismo no Brasil (2011); com isso, conquistaram forte capilaridade ideológica na sociedade brasileira, o que se traduziu progressivamente em resultados eleitorais cada vez mais robustos na cena política.

É importante compreender a lógica alienante do discurso deste movimento: não importa se o conteúdo produzido nem sempre tem lastro efetivo na realidade; a questão é que, apesar de sua virtualidade, este conteúdo é vivenciado como real. Fantasias como o “kit gay” ou a “ameaça comunista” são vividas como reais porque são produzidas ideologicamente a partir da realidade, não simplesmente como falsa consciência, mas como verdades que abrangem a sua própria falsidade à medida que se estabelecem sem qualquer possibilidade de contraponto aquilo que afirmam. O surgimento do bolsonarismo representa o momento em que essa mentalidade cresceu no seio da sociedade civil brasileira, se amplificou como ideologia e adentrou ao Estado implicando em impacto político efetivo. O problema é que, via de regra, essas denominações religiosas são reprodutoras de conteúdos ideológicos arcaicos e autoritários como o patriarcado, a homofobia, a defesa de um Estado cristão, etc.; e até mesmo crenças que nos parecem absurdas, a exemplo daqueles que creem na Terra plana.

O surgimento do bolsonarismo representa o momento em que essa mentalidade cresceu no seio da sociedade civil brasileira, se amplificou como ideologia e adentrou ao Estado implicando em impacto político real e efetivo no âmbito institucional. A questão da política no Brasil bolsonarista passa a sinalizar para um Estado teocrático neoarcaico, que comparece no campo econômico como um excelente negócio para o capital fictício, mas com mediações distintas do lulismo. Afinal, dado o forte arrocho monetário e fiscal após o esgotamento do ciclo expansivo assentado no crédito da era lulista, o governo Bolsonaro segue o mais austero receituário neoliberal imposto pelo mercado financeiro.

Este artigo faz parte do trabalho acadêmico “ESTADO, IDEOLOGIA E CAPITAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: CONTRADIÇÕES DO LULISMO E SURGIMENTO DO BOLSONARISMO”, acessível neste link aqui.

Wécio Pinheiro Araújo é professor adjunto da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutor em filosofia pelo Programa Integrado de Pós-graduação em Filosofia UFPE/UFPB/UFRN, com estudos doutorais na Alemanha (HGB-Leipzig) mediante bolsa CAPES/PDSE. O autor mantém um blog no qual escreve sobre filosofia política, que pode ser acessado em: https://wecio.blogspot.com.

Redação

3 Comentários

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  1. Sergio Buarque de Holanda escreveu : ”essas seitas seitas nórdicas jamais florescerão nos trópicos”. Isso olha que ele foi bastante errado na análise. Hoje Brasil é um paraíso para esse fundamentalismo neopentecostal prosperar, muito mais que na matriz Americana, onde o neopentecostalismo perde adeptos.

  2. Beleza de aula, muito obrigado
    sempre acreditei, com o golpe, com lava jato, com STF, com tudo, que o bolsonarismo resultou do envenenamento lento das pessoas que foram atendidas pelo lulismo………………

    todas sendo direcionadas agora pelos pastores para se criar e manter um núcleo social fantasiado de dominante, apenas fantasiado, por cada vez mais excludente em si mesmo

    se entramos nessa furada bolsonarista pela religião, é só por ela, mas a verdadeira,
    que poderemos sair

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