Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Revoluções libertárias, democratização, golpismo e ampliação do Estado, por Ion de Andrade

De por que o Estado de transição para o pós-capitalismo é o Estado de direito e de como é importante compreender o movimento de longo prazo para definir estratégias. Elementos "Norte" para a política

Por Ion de Andrade

Os momentos de inverno político, como agora, são raríssimas oportunidades em que a reflexão política vem acompanhada de uma densidade capaz de mudar concepções e orientações muito arraigadas, ocasiões a não perder. Mas isso não é inevitável, é possível imaginar que mesmo esse período crítico se perca como tempo precioso de aprendizado.

Portanto, longe de ser bizantina ou desnecessária para o momento, a reflexão teórica (e histórica) se impõe. Foi nesse ambiente de inverno político que muitos movimentos libertários fincaram suas raízes, entenderam suas realidades e se tornaram, na sequência, vitoriosos com base numa nova sistematização sobre o que fazer com base na leitura do que havia ocorrido.

O presente artigo, de forma sumária, através de uma análise histórico-sociológica, (aviso que são cinco páginas e que chamo o proletariado de proletariado) tentará explicar as razões da reação mundial da burguesia aos avanços sociais ocorridos no século XX e do golpe no Brasil e enunciará iniciativas sobre o que fazer.

 

O século XX das revoluções e da democratização/ampliação do Estado

O século XX, apesar de se encerrar com um retrocesso político profundo nessas duas primeiras décadas do século XXI, foi um século de imensas conquistas e avanços para o povo e poderia, sem exagero, ser classificado como o século das revoluções ou como o século da democratização.

Porém, as revoluções libertárias e os processos de democratização, embora sendo ambos fenômenos quase contemporâneos e de grande magnitude no período, parecem seguir trilhos separados e distintos.

Poderíamos citar como “democratização” por exemplo, todo o processo que se seguiu à vitória sobre o nazifascismo na Europa Ocidental, o fim das ditaduras ibéricas, e também o processo que décadas depois veio a materializar a democracia na América do Sul. Esses processos deram origem a sociedades nas quais a pluralidade e o respeito aos direitos fundamentais foram seus componentes legais fundadores, permitindo entrever a força daquilo que Gramsci denominava de Sociedade Civil que foi quem os protagonizou.

As revoluções libertárias, por sua vez, ocorreram comumente como fenômenos de emancipação nacional após guerras anticoloniais (China e África) ou anti-imperialistas como Cuba. A revolução Russa emerge como um processo diferente dos demais numa gênese que se inspira de um acúmulo ocorrido no século XIX sendo talvez justo dizer que seja um desdobramento exitoso tanto da Comuna de Paris quanto, feitas as devidas adequações, do marxismo clássico.

Porém, como bem observou Gramsci, mesmo a revolução russa só teve êxito por ocorrer num Estado restrito, no qual a derrubada do aparato repressivo (a Sociedade Política) se sobrepôs à própria tomada do Poder, o que se deu sob a forma de uma guerra e o que se constitui também como elemento comum entre a revolução russa e as demais do século XX, pois todas elas ocorreram na periferia do capitalismo e em Estados atrasados.

Esse brevíssimo esboço nos permite enxergar o fato de que no século XX, os Estados que tinham Sociedades Civis robustas se “democratizaram” enquanto os que tinham Sociedades Civis débeis, e eram governados eminentemente pela força, foram palco, muitos deles, de revoluções libertárias.

É interessante também observar que quanto mais o processo “democratizante” avançava, mais raquítico se tornava o processo “revolucionário” de forma que com honrosas exceções, como a revolução cubana ou a libertação da África lusófona, ambas ocorridas na segunda metade do século XX, a imensa maioria das revoluções e as maiores, como a russa (1917) e a chinesa (1949), ocorreram misteriosamente na primeira metade do século XX.

Por seu turno o processo democratizante se iniciou no pós segunda grande guerra, com a derrota do nazifascismo seguida da implantação de Estados de direito na Europa Ocidental, em substituição àqueles Estados anteriores à Segunda Guerra, abertamente autoritários; “democracias” que reprimiam greves a baionetas e que faziam as crianças trabalharem em jornadas de 16 horas por dia. O processo se continuou com a redemocratização da América do Sul nos anos 1980 e com a chegada simultânea da esquerda ao Poder no subcontinente na primeira década do século XXI.

A esquerda, naturalmente considerou esse processo de ampliação do Estado no mundo ocidental como um avanço histórico em todos os locais em que se implantou.

 

Ampliação do Estado e colapso do socialismo real

Simultaneamente e trazendo complexidade à trama, o mundo do socialismo real na Europa entrou em colapso, sendo emblemáticas a queda do muro de Berlim (1989) e a derrota da Revolução Russa ao término do mandato de Gorbatchev em 1991.

Apesar desses dois fatos terem sido possivelmente os primeiros exemplos da “guerra híbrida” que vem derrubando diversas democracias pelo mundo, é improvável que um fenômeno de tamanha magnitude pudesse ter tido êxito tão universal sem a contribuição de algum elemento presente no âmago dessas sociedades.

O Estado ampliado, apontado por Gramsci desde os anos 1920 como inviabilizador de um processo de “revolução explosiva” no Ocidente era uma das diferenças existentes entre a Rússia dos anos 1991 e aquela de 1917. Vamos admitir a hipótese de que a necessidade histórica de uma governança pelo consenso tenha contribuído para a queda de Estados que haviam envelhecido, da mesma forma que os Estados burgueses da primeira metade do século XX (onde os conflitos costumavam serresolvidos com baionetas) haviam envelhecido e haviam sido ou estavam sendo substituídos na Europa e América do Sul por Estados de direito.

Em meio a muitos acertos, alguns erros de Gramsci

Gramsci errou (não podia ter acertado em tudo) ao classificar o Estado restrito como “Oriental” e o ampliado como “Ocidental”, pois, em lugar de geográfico, o fenômeno mostrou-se cronológico, como uma “inclinação” dos Estados restritos a evoluírem para Estados ampliados, tanto no mundo socialista quanto no capitalismo… ele também não teve como antever que o fenômeno que impedia a ocorrência de revoluções explosivas no Ocidente (a densidade da Sociedade Civil inerente a essa ampliação do Estado), teria magnitude para derrotar as revoluções socialistas ao fim do século XX, como admitimos que possa ter ocorrido na Rússia. Seria, aliás pedir demais ao gênio sardo.

Não tendo percebido essa “cronologia” entre o Estado restrito e o Estado ampliado, (pois percebeu apenas a geografia), Gramsci não teve como identificar quem eram os protagonistas responsáveis pela ampliação do Estado, ou seja, “quem” é que estava obrigando no Ocidente a burguesia a ceder o governo pela força e a governar pelo consenso.

Se tivesse enxergado a “cronologia” entre o Estado restrito e o ampliado não teria tido dificuldades de identificar no Ocidente a mão do proletariado, maior vítima do governo burguês pela força e maior beneficiário dos direitos decorrentes da governança pelo consenso que ergueu uma sociedade de direitos.

A supremacia burguesa no Estado de direito contemporâneo

Mas não seria correto apontar apenas o proletariado como força responsável pela ampliação/democratização do Estado, pois esse Estado ampliado no capitalismo, a que denominamos de Estado de direito, é um Estado pacto, no qual a burguesia não somente tem assento, como tem supremacia. Enxergamos isso claramente diante do que ocorreu no mundo do socialismo real. Ali esse Estado ampliado, no entanto comparável ao modelo europeu do século XX, que a esquerda festejou, teve sabor amargo, mostrando mais claramente quão burguês de fato ele é.

Duas coisas merecem relevo nesse processo. O proletariado construiu níveis de consenso suficientes para impor o Estado pacto no Ocidente e a burguesia o fez no mundo socialista. Ambos os fenômenos decorreram e foram fortalecidos pelo processo de ampliação do Estado e de fortalecimento da Sociedade Civil dando razão a Gramsci. Entretanto a burguesia passou a deter a supremacia tanto nos Estados sucedâneos das democracias populares quantos nos Estados sucedâneos da velha democracia burguesa das baionetas.

Vale constatar que ambos os processos conduziram ao mesmo tipo de Estado. O problema central atualmente, portanto, não é mais sob que tipo de Estado se conduz a transição à sociedade pós capitalista, Estado que é denominado no marxismo clássico como Ditadura do Proletariado, pois esse último mostrou historicamente ser apenas um Estado restrito sob hegemonia proletária e não o último tipo de Estado, como previu Marx…

O problema central hoje é de “quem é” a classe social a deter a supremacia no Estado de direito, figurando ali como força forte no pacto.

De fato, se o proletariado não pudesse, a priori, ter essa supremacia no Estado de direito, obviamente que a guerra híbrida contemporânea não seria necessária…

A ampliação/democratização do Estado como tendência central das transformações sociais no século XX

Podemos concluir que a ampliação/democratização do Estado capitalista foi o fenômeno central do processo revolucionário do século XX, convertendo, por imposição do proletariado, os Estados burgueses da primeira metade do século XX em Estados de direito. Esse processo de ampliação do Estado subordinou a si a maioria das revoluções libertárias ocorridas em Estados restritos que também se ampliaram em decorrência da presença de uma Sociedade Civil mais robusta, gestada no próprio socialismo.

Isso resultou, por um lado, (a) em perdas e retrocessos pela não materialização de um Estado ampliado de matriz proletária como sucedâneo dos Estados restritos que tiveram suas revoluções vencidas (no socialismo real) e, por outro, (b) na necessidade histórica da construção, ainda hoje não materializada, da supremacia dos trabalhadores no Estado de direito, cuja missão histórica será a da realização da democracia tanto na superestrutura como na estrutura da sociedade.

Esse processo de democratização a um só tempo estrutural (econômico) e superestrutural (político) é que deve conduzir a transição para a sociedade pós-capitalista, fazendo com que seja democrática do ponto vista efetivo (econômico) e formal (político), sendo conduzida por um ente estatal que deve exprimir a visão de uma cidadania emancipada e participante que nele galgou supremacia.

A viabilidade desse processo só poderá se dar se ele estiver alicerçado numa cidadania madura, numerosa e emancipada que é a única massa crítica capaz de movê-lo e de garantir a sua estabilidade contra uma burguesia que estará sendo despojada da sua condição secular de classe dominante e tentará golpeá-lo.

Isso posiciona a emancipação dos trabalhadores (que nada mais é do que a multiplicação da cidadania em níveis populacionais) como questão estratégica para a construção da sua supremacia no Estado pacto. É a razão pela qual emancipar o povo é a  missão histórica do Estado de direito sob hegemonia popular, pois é o único meio de assegurar que o processo de realização plena da democracia, nos planos estrutural e superestrutural, possa se estabilizar e continuar avançando.

Embora pouco claro para a esquerda, esse era o processo que estava em curso no século XX, não somente no Brasil, mas em diversas partes do mundo, o que explica o esforço hercúleo da burguesia internacional de reagir mundialmente e de golpear a democracia em toda parte com o que vem sendo conhecido como guerra híbrida.

Adiante, num próximo artigo, veremos como o fascismo é provavelmente uma doença da Sociedade Civil.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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