Um Estado laico e democrático para israelenses e palestinos

Um Estado laico e democrático para israelenses e palestinos

Proposta defendida por boa parte da esquerda palestina e israelense é a da criação de um Estado livre do sionismo

Dafne Melo

de Haifa (Palestina)

 

Criar dois Estados, um palestino, outro judeu. Essa tem sido a solução apontada de forma hegemônica para o conflito árabe-israelense na região da Palestina histórica (ou seja, territórios ocupados em 1948, Israel, Faixa de Gaza e Cisjordânia).

 

No entanto, a maior parte das organizações de esquerda, tanto israelenses como palestinas, acredita que tal saída é falsa e que somente a criação de um único Estado democrático e laico, para judeus e árabes, resolveria o problema de forma definitiva.

 

Um dos movimentos que defendem essa posição é o Abnaa el-Balad (em árabe, “filhos dos vilarejos”, em referência aos árabes expulsos em 1948, na chamada Nakba), que atua nos territórios ocupados. A organização é formada por palestinos que ainda vivem nessas áreas e judeus israelenses que se opõem ao Estado judeu, como Yoav Bar, que, em entrevista ao Brasil de Fato, fala sobre a necessidade e os desafios da construção de tal Estado laico e democrático, que coloque fim à ocupação sionista na Palestina histórica.

Brasil de Fato – Quando a proposta de um Estado laico e democrático surgiu?

Yoav Bar – Elanão é nova. Na verdade, é um sonho antigo dos palestinos de viver em liberdade em sua terra. Ainda durante o domínio do Império Otomano, há 250 anos, houve a tentativa de Daher Alomar de formar um governo local e lutar pela independência. Posteriormente, muitos árabes foram persuadidos a apoiar a Inglaterra na Primeira Guerra Mundial, com a promessa de independência. A promessa não foi cumprida e a Inglaterra ainda dividiu a área com a França, sua aliada imperialista. Na época da ocupação britânica, o povo palestino travou diversas lutas massivas por sua libertação. Essa determinação se tornou mais forte quando o imperialismo inglês passou a estimular a imigração de judeus sionistas, à custa da expulsão dos árabes e do roubo de terras. Em 1936, a população palestina fez uma greve geral massiva de seis meses. A isso se seguiu uma insurreição armada, liderada por camponeses, contra o Exército inglês e o Exército sionista por três anos [1936-39]. Quando as Nações Unidas iniciaram o plano de partilha da Palestina, criando um Estado judeu, os palestinos rechaçaram a decisão, que legitimava a colonização e limpeza étnica em curso. Como alternativa, estava a ideia de um Estado democrático para todos. Essa também era a posição do Partido Comunista Palestino e de outros partidos de esquerda que tinham como objetivo unir árabes e judeus na luta por liberdade e justiça social. Somente em 1947, quando a União Soviética apoiou a partilha da ONU, o Partido Comunista Palestino rachou e parte de seus membros, que eram judeus, entrou para organizações sionistas que defendiam o Estado do Israel.

Na década de 1960, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) também falava em apenas um Estado democrático?

O movimento revolucionário e nacionalista palestino se reorganizou sob a liderança da OLP, na década de 1960. O programa da revolução era a implantação de um Estado democrático e secular, baseado nos princípios de autodeterminação dos povos e dos direitos humanos, em contraste com o regime racista presente na natureza do Estado sionista. Somente após a revolução popular na Palestina ter sido derrotada por meio de diversos massacres, como na Jordânia, em 1970, e no Líbano, em 1976 e 1982, e depois de a liderança da OLP ter começado a construir a perspectiva da criação de um Estado palestino dentro dos limites impostos pelo sionismo é que a solução dos dois estados – uma falsa solução – passou a ocupar o centro do “processo de paz”.

Por que a criação de um Estado palestino em Gaza e na Cisjordânia seria uma falsa solução? Criar um Estado palestino não poderia ser bom para acumular forças num primeiro momento?

Ainda que essa solução se desse da melhor forma, como sugerida pelo “campo pacifista”, com “total soberania”, o Estado palestino em Gaza e na Cisjordânia ainda deixaria 78% de toda área da Palestina histórica na mão dos sionistas. A maioria do povo palestino, que está refugiada, teria seu direito de retorno negado, pois o lugar de onde foram expulsos está nas mãos dos israelenses, que continuariam por negar um direito humano básico de milhões de palestinos. Isso não seria a restituição de nem metade dos direitos dos palestinos, e apenas prolongaria, dando mais legitimidade e hegemonia, a ocupação sionista, gerando mais guerras e não o início de um “processo de paz”, como muitos dizem. Aqueles que apoiam a solução dos dois estados se colocam como pragmáticos e, a meu ver, buscam uma solução que não afronta os interesses do imperialismo. Temos que ter em mente qual é o tipo de Estado que o imperialismo está nos oferecendo. Se concordamos com a criação de um Estado judeu, concordamos com a limpeza étnica em 1948, e, então, qual a diferença da limpeza étnica feita hoje na Cisjordânia? Israel nunca respeitaria um Estado palestino; o Estado sionista, ao lado, será sempre imperialista e expansionista. Afinal, mesmo sendo essa, hoje, a solução hegemônica [a criação de dois estados é defendida, por exemplo, pelos EUA], Israel não para de construir mais e mais colônias na Cisjordânia.

Os Acordos de Oslo, na década de 1990, foram baseados na criação de dois estados, mas o palestino não só não se tornou uma realidade como, hoje, há uma leitura de que as consequências desses acordos para a luta palestina foram desastrosas.

Israel nunca quis e não quer dar aos palestinos nem mesmo uma independência parcial, ainda que em um pequeno território. O erro do lado palestino nos Acordos de Oslo foi concordar em firmar um compromisso com Israel, reconhecendo a legitimidade de um Estado racista e sem nenhuma garantia de que os direitos dos palestinos seriam respeitados. O lado palestino, no acordo, aceitou suspender as ações da resistência, mas Israel não se comprometeu a pôr fim à ocupação das áreas de 1967 [após a chamada Guerra dos Seis Dias, entre Israel e uma frente de países árabes]. Agora, então, há uma contradição, que é o fato de que a Autoridade Nacional Palestina [ANP], criada com os acordos, ter que reprimir a própria resistência palestina à ocupação. Quando não o fazem, Israel acusa os palestinos de não cumprir o acordo. Ou seja, Israel não tem nenhuma obrigação de reverter sua ocupação.

Hoje, quais setores apoiam a solução de um Estado apenas?

A maioria dos palestinos vê a libertação de toda a Palestina como a estratégia de sua luta nacional. Alguns, que estão cansados da luta ou não acreditam na possibilidade de vitória em um futuro, acreditam que é necessário criar um Estado palestino na Faixa de Gaza e Cisjordânia, os territórios ocupados em 1967. Mas essa “solução dos dois estados” não resolve o problema da maioria da população palestina que está refugiada desde a limpeza étnica de 1948. Além disso, tampouco resolve o problema de um milhão de palestinos que ainda vivem nos territórios de 1948 [Israel], que vivem sob um regime de apartheide estão sempre ameaçados de uma nova limpeza étnica. Portanto, acredito que a maioria dos palestinos concorda com a criação de um Estado democrático. A grande questão é como atingir esse objetivo.

Como os movimentos com influência religiosa, de ambos lados, judeus e islâmicos, veem a criação de um Estado laico?

Os movimentos judeus realmente religiosos, como o Neturei Karta [grupo ortodoxo que rejeita todas as formas de sionismo], não reconhecem a legitimidade do Estado de Israel. Mas a maioria dos grupos religiosos está, agora, na vanguarda da direita mais racista, dando legitimidade semirreligiosa ao Estado sionista e gozando de gordos privilégios. O movimento islâmico moderno, como Hamas e a Jihad islâmica, nos territórios de 1967, e o Movimento Islâmico, nos territórios de 1948, são, basicamente, movimentos políticos, e representam, de uma maneira particular, os interesses do povo palestino. O bloqueio à Gaza, hoje, é justificado pelo quarteto [Rússia, União Europeia, EUA e ONU] pela recusa do Hamas [que controla a região] em aceitar a legitimidade do Estado de Israel, o que o Fatah [partido que esteve à frente dos acordos de Oslo e comanda a ANP e a Cisjordânia] fez ao negociar com Israel. Os partidos islâmicos são vagos ao falar do programa político que têm a longo prazo. Se eles assumissem publicamente a defesa da criação de um Estado democrático e laico para todos, seria um marco na busca por uma solução para esse conflito. Claro que a palavra “laico” dificulta o convencimento de movimentos islâmicos, principalmente levando-se em conta o contexto de um secularismo antidemocrático em países como Turquia e Egito, a “islãfobia” promovida pelos EUA e Europa. Assim, o secularismo acaba sendo visto como uma negação ou ataque ao Islã como uma religião e uma cultura, ou, ainda, como tentativa de tirar a legitimidade de partidos islâmicos – que não é nossa intenção quando falamos em uma Palestina democrática e secular. Ainda assim, na Faixa de Gaza, onde o Hamas tem controle, eles basicamente mantêm uma estrutura secular. O governo deles foi eleito democraticamente pelos palestinos. Portanto, é possível que os movimentos islâmicos se somem a uma coalizão por um Estado democrático e laico.

Por outro lado, como convencer os judeus israelenses de que um Estado democrático e laico, dividindo os mesmos direitos com os árabes, é a melhor opção?

Hoje, os israelenses possuem privilégios à custa do povo palestino. São educados num sistema fechado e racista. Mas não se pode esperar que os israelenses abram mão de seus privilégios só porque isso é o justo e correto. O primeiro passo é mostrar aos israelenses que esse sistema racista nunca será aceito pelos palestinos, pela comunidade árabe ou pelo mundo. Para isso, é necessário um trabalho diário que rejeite e denuncie as políticas sionistas. Um exemplo de como fazer isso é através das campanhas de boicote [em inglês, BDS – Boicote, Desinvestimento e Sanções –, que visa boicotar empresas israelenses, impedir investimentos no país e, até mesmo, apresentações esportivas e culturais). Além disso, há que denunciar o fato de que o sionismo é incapaz de manter a segurança deles, como prometem os sucessivos governos israelenses. A história já provou que a exploração da migração judia para continuar tomando terra dos palestinos leva a conflitos. A solução democrática e secular dá a oportunidade para que os judeus se livrem de seus privilégios coloniais e de toda a hostilidade que isso gera. Assim, judeus e árabes poderiam compartilhar e integrar um Estado como cidadãos – não como colonos e não colonos.

Como chegar a essa grande estratégia, ou seja, o que os movimentos que compartilham dessa opinião apresentam no campo tático?

O primeiro passo é reorganizar o movimento com a bandeira da unidade na luta, que deve abarcar a negação dos direitos humanos e de autodeterminação dos palestinos. A questão do direito de retorno dos refugiados deve ser o centro de nossas bandeiras também. Todo o povo palestino, dentro e fora, deve fazer parte dessa luta, das decisões políticas e das soluções. Um outro aspecto, no campo tático, é trabalhar com os judeus que vivem na Palestina histórica, para denunciar o projeto sionista. A solução de um Estado é um instrumento poderoso para dialogar com os israelenses aqui. Na prática, essa proposta mostra aos judeus que aqui vivem que existe vida depois do sionismo e que é melhor viver sem a instabilidade que o sionismo cria com suas guerras. Claro que, em um contexto de crise, o sionismo, diante de uma proposta alternativa democrática, vai explorar as diferenças étnicas e sociais que existem dentro de Israel. Um terceiro aspecto é a unidade com forças sociais anti-imperialistas e democráticas, regionalmente. O mundo árabe sofre com o imperialismo, que se tornou ainda mais sangrento devido ao compromisso estadunidense e europeu com a ideologia racista do sionismo. O preço que libaneses e iraquianos pagam por isso é alto. Mas, se uma resistência massiva e popular é construída, o imperialismo pode ser freado. O povo árabe precisa propor e desenhar uma nova perspectiva para essa região. A proposta de uma Palestina democrática pode ajudar a unir uma coalizão anti-imperialista e democrática no mundo árabe. Por ultimo, é necessário construir uma coalizão internacional, que pode contar com o apoio de países do terceiro mundo, tanto oficialmente como por meio de movimentos sociais, de países como China, Brasil e Venezuela, por exemplo. Também é necessário denunciar, dentro dos países imperialistas, que seus governos apoiam a política sionista racista e violadora dos direitos humanos, criando pressão para que se distanciem das políticas sionistas do Estado de Israel.

Fonte: http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/um-estado-laico-e-democratico-para-israelenses-e-palestinos/view

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