Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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Vargas Llosa: a arte perversa de ”dizer mentiras que pareçam verdades”, por César Locatelli

Ao afirmar que sua tarefa era dizer mentiras que parecessem verdades, escritor não esperava que o mesmo fosse dito de seu proselitismo político

Mario Vargas Llosa. Foto: Arild Vågen – via Wikipedia

Publicado na Agência Carta Maior

Quando Mario Vargas Llosa afirmou que sua tarefa como escritor era dizer mentiras que parecessem verdades, referia-se a suas ficções e, possivelmente, não esperava que o mesmo fosse dito de seu proselitismo político.

“Sem dúvida, Vargas Llosa (VLl) é um escritor que cativa seus leitores e maneja com maestria essa arte perversa de ‘contar mentiras que parecem verdade’, como ele disse e escreveu repetidas vezes. Além disso, combina muito bem a ficção com o ensaio, o que muitas vezes induz seus leitores a darem crédito, como se fosse real, a algo que nada mais é do que uma ficcionalização ou, se quiser, uma fantasia do escritor”, diz Atilio Boron em seu livro de 2021: El sueño del marqués: Mario Vargas Llosa, una pluma al servicio del imperio.

Prestes a completar 86 anos, o renomado escritor peruano, continua sua cruzada, radicalmente conservadora, contra qualquer movimento político, especialmente latino-americano, que tenha o mais tênue traço progressista. Desta vez, valeu-se de um artigo, publicado neste início de ano, no jornal O Estado de S. Paulo, presunçosamente denominado “Os ditadores e o erro do povo chileno”. Ele habilmente tenta amenizar seu vaticínio expresso no título de seu texto. Em vão. É cristalina sua avaliação de que o povo chileno errou ao eleger Gabriel Boric e descartar José Antonio Kast, “o Bolsonaro andino”.

O escritor revela, logo no início do artigo, ter recusado um encontro com um jornal francês que havia publicado um protesto de intelectuais franceses contra sua eleição para a Academia Francesa. Ele, entretanto, não explica que a carta aberta, assinada por cinco professores e pesquisadores franceses, publicada, em 9/12/2021, no jornal de esquerda Libération, apresenta “graves problemas éticos” para julgar que sua nomeação à Academia é um erro.

Os intelectuais exemplificam algumas questões éticas identificadas no apoio de Llosa a Iván Duque, a Keiko Fujimori e a José Antonio Kast.

“Depois que o conheci, tive a certeza que o presidente da Colômbia, Iván Duque, seria um exemplo para o restante da América Latina”, escreveu o peruano em 2021, mesmo depois que se tornaram quotidianos os assassinatos de indígenas, defensores do meio ambiente e antigos guerrilheiros, em absoluto descumprimento ao acordo de paz firmado entre as Farc e o governo colombiano. A carta aberta prossegue com outra declaração de apoio a Duque, após as 70 mortes causadas pelas forças de repressão às manifestações contra medidas liberalizantes extremas que o governo colombiano pretendia implantar. Disse Llosa, em setembro de 2021, que a Colômbia “está agindo corretamente em termos de legalidade e liberdade”.

O violento processo eleitoral peruano também contou com um papel ativo de Llosa em apoio a Keiko Fujimori. Em que pese não haver dúvidas sobre a recusa da candidata em aceitar o resultado das urnas e a certeza de que o crime organizado voltaria ao poder com sua eleição, Llosa declarou seu apoio incondicional a ela, “contribuindo para a polarização e violência entre os dois turnos”, declaram os intelectuais franceses.

O quadro de “contradições” do escritor completa-se com seu apoio sem reservas a José Antonio Kast contra Gabriel Boric, no segundo turno da eleição presidencial chilena. Kast é “um candidato da extrema direita, saudoso defensor da ditadura militar de Pinochet”, diz a carta. Llosa reclama que os professores e pesquisadores o acusaram de “pinochetista”, entretanto a única referência a Pinochet é para qualificar Kast, a quem os escritor conferiu irrefutável apoio.

“Suas posições [de Llosa] devem ser colocadas no contexto da consolidação das redes de direita e da extrema direita hispano-americanas através do lobby da Fundação Internacional para a Liberdade (FIL), que ele preside e que se apresenta como um think tank neoliberal. Um dos manifestos da FIL protestava contra as medidas preventivas adotadas pelos Estados no âmbito da gestão da Covid-19. Na Espanha, Mario Vargas Llosa aparece ao lado daqueles que banalizam o franquismo”, complementa a carta.

Voltando ao artigo sobre o erro do povo chileno, o escritor, depois de um longo trecho em que declara seu apreço pelas democracias e sua aversão às ditaduras,  informa como quer ser julgado:

“A mais medíocre democracia é preferível à mais perfeita ditadura, seja ela encabeçada por Pinochet ou Fidel Castro. Esta é minha bandeira e por isso defendo as imperfeitas democracias contra todas as ditaduras, sem exceção. Esta é uma escolha muito simples, e aqueles que me julgam politicamente precisam ter isso em conta com clareza.”

Seu apoio a Kast parece ser, contudo, mais revelador do que meia dúzia de palavras. Diz Carol Pires, no jornal Folha de S. Paulo, na matéria “Kast perdeu, mas está consolidado como representante da ultradireita no Chile”:

“Já Kast, ainda que tenha perdido a eleição, sai dela maior do que entrou. Filho de um militante do Partido Nazista que foi soldado de Hitler, Kast é admirador do ditador chileno Augusto Pinochet (cujo regime matou 3.200 pessoas e torturou mais de 40 mil). Deputado por 16 anos, foi abraçado por jovens youtubers e viralizou nas redes sociais com a fórmula da incorreção e da desinformação. Levantou como bandeira o combate à “ideologia de gênero” e mais poder às igrejas. Impossível não ver nele um Bolsonaro andino.”

O prêmio Nobel de literatura se diz surpreso com a escolha dos chilenos. Afirma que “nada parecia indicar que esta seria a resposta popular a uma economia em crescimento”. Pois bem, ao qualificar as enormes manifestações populares, precipitadas em outubro de 2019, simplesmente como manifestações violentas em que se incendiou edifícios e estações do metrô, Llosa pode não enxergado o principal:

“Por três semanas, o Chile está em constante turbulência. Em um dia, mais de um milhão de pessoas foram às ruas de Santiago, a capital. Provavelmente, os únicos que não se surpreendem são os chilenos. No caos, eles veem um ajuste de contas. A promessa que líderes políticos de esquerda e direita fizeram durante décadas – que o mercado livre levará à prosperidade e que a prosperidade cuidará de outros problemas – não foi cumprida”, mostrou matéria no New York Times, no início de novembro de 2019.

Llosa também não deu importância quando o presidente Sebatián Piñera declarou guerra a seu povo: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso e implacável que não respeita nada nem ninguém e está disposto a usar a violência sem limites, mesmo quando isso significa a perda de vidas humanas”. Em quatro meses de repressão aos protestos, 445 pessoas tinham sofrido ferimentos nos olhos, segundo o Instituto Nacional de Derechos Humanos.

“Estas são minhas convicções. Posso estar enganado, mas, em todo caso, meus erros respondem a uma ideia que me parece ser profundamente democrática: os povos têm o direito de errar. Em uma democracia, tais erros podem ser retificados e emendados.”

Em teoria seu o argumento final parece irrefutável: todos preferimos a democracia que idealizamos. Mas para trazer a questão para as democracias realmente existentes, seria de grande valia saber o que pensam as centenas de pessoas que perderam os olhos na “democracia” chilena de Sebástian Piñera, o que pensam os familiares dos mortos pela “democracia” colombiana de Iván Duque e o que pensam os familiares dos mais de 200 mil mortos pela Covid na “democracia” peruana, nação recordista mundial em número de mortes por milhão de habitantes (6.206 mortos por milhão de habitantes contra 733 da “ditadura” cubana). Como o nobre Nobel pensaria em “retificar e emendar” esses casos?

Nota: O sociólogo Atilio Boron escreveu também El hechicero de la tribu. Vargas Llosa y el liberalismo en América Latina, de 2019.

Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

1 Comentário

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  1. Manuel Scorza se foi antes de completar 55 anos, enquanto o Marquês de Vargas Llosa em breve fará 86.
    Bem que poderia ser o contrário.
    É pena.

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