As bases da desigualdade chinesa

Do Brasilianas.org

Tese aponta bases da desigualdade social na China

Por Lilian Milena
Da Agência Dinheiro Vivo

Professora de política asiática do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e doutoranda em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Isabela Nogueira de Morais, fala do processo de distribuição de renda e pobreza da China, nos últimos trinta anos, desde que o país iniciou a modernização e abertura econômica de mercado, tema de seu estudo.

A pesquisadora, que viveu por oito meses no país estudando as diferenças entre as populações urbanas e rurais, aponta que as mudanças radicais na economia estão provocando o aumento da má distribuição de renda. “Hoje a China só perde para o Nepal, entre os países mais desiguais da Ásia e está entre os mais desiguais do mundo caminhando para um processo chamado lá dentro de latino americanização chinesa”, disse em entrevista a Luis Nassif.

Segundo Morais, o país asiático passa por um intenso boom imobiliário, que cresce sobre a especulação de terras da população rural. O resultado é o aumento vertiginoso do número de ex-camponeses a procura de trabalho nos centros urbanos. No início da abertura econômica, na década de 1980, a população urbana chinesa era de 10%, hoje alcança 50%, com estimativas de chegar 75% da massa populacional vivendo nas cidades.

A professora também explica que apesar da flexibilização com relação à migração de zonas rurais para zonas urbana, o trabalhador urbano com um hukou (Registro de Controle Migratório) rural está numa situação muito precária, “tanto do ponto de vista de rendimentos, quando de acesso à educação, pois não pode colocar o filho dele nas escolas e nem pode acessar os serviços hospitalares da cidade onde não tem registro de nascimento”, isso facilita a queda de salários de trabalhadores migrantes, que geralmente vivem nos dormitórios das fábricas tornando-se o piso do piso salarial do mercado de trabalho chinês.

Apesar desse cenário, Isabela avalia intensos esforços do governo em reduzir as disparidades sociais e aumento de investimentos em regiões menos desenvolvidas do país, como o Nordeste e Oeste, criação de seguro saúde para as populações rurais – que até então tinham que pagar por isso, e isenção das taxas que eram cobradas de familiar para manter suas crianças nas escolas.

Acompanhe a entrevista na íntegra.

Luis Nassif – Sua tese é especificamente sobre que tema?

Isabela Nogueira – Sobre a distribuição de renda e pobreza na China, nos últimos trinta anos, ou seja, do período pós-reforma até os dias de hoje.

Nas últimas décadas a China mudou de maneira radical, inclusive na distribuição de renda. O país saiu de um patamar de distribuição pessoal de renda considerado entre os mais igualitários do mundo – equivalente aos níveis de Alemanha e Áustria. O índice Gini*, que mede a distribuição pessoal de renda, era de 0,28, nos anos 1980. Hoje a China só perde para o Nepal entre os países mais desiguais da Ásia e está entre os mais desiguais do mundo, caminhando para um processo chamado lá dentro de ‘latino americanização chinesa’.

Quando eu estava na China, e era convidada palestras, me pediam informações sobre a formação da desigualdade socioeconômica no Brasil, o modo como isso se deu e quais seriam as sugestões para que a China evitasse uma trajetória similar. Atualmente o Gini desse país está entre 0,47 e 0,48. Ainda não é tão ruim quanto o índice do Brasil, mas é próximo a do México e da Argentina.

*O índice Gini é um coeficiente criado para medir o grau de desigualdade na distribuição de renda domiciliar per capita de um país. Ele varia de zero, quando não há desigualdade, a 1, quando a desigualdade é máxima.

Luis Nassif – A questão agrária das micropropriedades foi um dos fatores para estimular esse processo?

Isabela Nogueira – [Na tese], entre outras coisas, me volto para o desenvolvimento rural, partindo de uma análise bem estruturalista. [Para tanto] uso autores latino-americanos, de concepção macro, como Celso Furtado e Arthur Lewis.

Para nós é muito caro ver como se dá o desenvolvimento rural, porque é esse setor que dá base ao piso salarial de uma economia. Por exemplo, por que você vai numa feira no Brasil e compra por 50 centavos um maço de alface, e vai na Finlândia e paga 2 euros por um maço de alface? Isso é um contrato social fundamental, porque revela o quanto se está disposto a pagar pelo salário base de uma economia. O estado de bem estar europeu leva isso em conta, e de uma maneira muito radical. Também é isso que trará, do lado latino-americano, uma segmentação e uma heterogeneidade muito grande dos setores econômicos – agricultura versos indústria – quanto às remunerações.

Essa transformação estrutural chinesa – da heterogeneidade setorial entre agricultura e indústria – será muito forte nos anos mais recentes, resultando em gaps [diferenças] de produtividade que são muito próximos da América Latina de hoje, em relação à segmentação salarial.

A trajetória histórica de propriedade de terra na China é radicalmente diferente da nossa. Dentre as primeiras ações realizadas quando as reformas começaram lá, em 1980, foi a instauração de um sistema de responsabilidade familiar. Foram distribuídos lotes de terras muito pequenos, cerca de 0,7 hectare por família. No Brasil nem existem propriedades agrícolas desse tamanho. Mas apesar de todo mundo ter um lote de terra, a produtividade se manteve muito baixa, os investimentos realizados nas áreas rurais também foram muito baixos, com infraestrutura precária e atrasos do ponto de vista fiscal. Na verdade, entre os anos de 1980 e 1990, há uma transferência dos incentivos fiscais das áreas rurais para ás áreas urbanas na China.

Luis Nassif – De que maneira? Por tributação?

Isabela Nogueira – Tributação e crédito. Nas zonas rurais há manutenção de níveis altos de poupança, mas pouco crédito é concedido para essas regiões em detrimento das zonas urbanas.

Esse atraso no desenvolvimento rural vai caracterizar a disparidade de renda urbano-rural, hoje o elemento mais estrutural por de trás da desigualdade chinesa. Junto a isso, vem um processo de segmentação muito forte do mercado de trabalho local. Na China existe um sistema chamado Registro de Controle Migratório, chamado hukou. Ele registra em qual província o cidadão nasceu, se é de origem urbana ou rural, controlando a sua migração.

Antigamente se uma pessoa nascesse num determinado hukou, não podia sair de lá. Hoje isso é mais flexibilizado, podendo-se migrar das zonas rurais para as zonas urbanas. O trabalhador urbano com um hukou rural está numa situação muito precária, tanto do ponto de vista de rendimentos, quando de acesso à educação, pois não pode colocar o filho dele nas escolas e nem pode acessar os serviços hospitalares da cidade onde não tem registro de nascimento.

Portanto, tem uma série de limitações para se conseguir fixar residência longe da cidade de origem. E, com isso, é muito mais fácil se derrubar o salário dos trabalhadores migrantes. Geralmente, esses vivem nos dormitórios das fábricas, se tornando o piso do piso do mercado de trabalho chinês. Nessa situação, alguns passam parte do ano nas cidades, e outra no interior.

Mesmo assim, se você abrir os jornais hoje, tanto dentro como fora da China, vai ler que os salários estão subindo vertiginosamente e que a mão de obra está ficando mais cara, que a demografia está mudando e, com isso, o exército de mão de obra barata está acabando. De fato, o salário real está aumentando, inclusive acima do PIB, mas isso depende de que ângulo você olha.

Bom, isso sugere que algumas medidas que o governo chinês está levando a cabo surtem efeitos, como as políticas de desenvolvimento da região Oeste, o fato de terem eximido as taxas escolares, tornando a educação totalmente gratuita a partir de 2007…

Luis Nassif – Em 2007, só?

Isabela Nogueira – O movimento educacional chinês é muito bizarro, porque saiu de um nível totalmente igualitário. Durante o maoísmo todos tinham acesso à educação, dado o nível de renda percapita da época, gerando taxas de redução de analfabetismo satisfatórias.

Só que com a abertura [econômica] boa parte desses serviços vem se tornando pagos, mesmo nas zonas rurais, resultando num aumento do analfabetismo no país. O último relatório das Nações Unidas, o PNUD, observou que a China é um dos dez países, de uma lista de 130, com taxas brutas de matrículas menores hoje do que as registradas na década de 1970.

Outros indicadores também estão mudando de maneira não desejável. Por exemplo, o de expectativa de vida. A China estava 3,5 anos à frente do Brasil quando as reformas começaram em 1980. Hoje ela está menos de meio ano à frente, sendo que do ponto de vista de desempenho econômico tem trajetória completamente diferente da do Brasil. Ou seja, o PIB chinês está crescendo 10% ao ano, mas a expectativa de vida e de analfabetismo não acompanha a mesma proporção.

Houve melhoras, todos esses indicadores continuam progredindo, mas abaixo do nível do crescimento econômico, e até mesmo atrás de níveis de crescimento de países da América Latina.

Luis Nassif – Você tem desigualdade regional e desigualdade social. Isso cria focos de tensão, ou enquanto todo mundo vai crescendo os focos vão se reduzindo?  

Isabela Nogueira – Os focos são extraordinários, na verdade o governo é o primeiro a admitir isso. Há dois anos, os números oficiais falavam de 70 mil incidentes de massa, que é o eufemismo que o governo chinês usa para manifestações.

A maior parte desses incidentes ocorre nas zonas rurais, e estão ficando mais intensos por causa de um processo novo, de cinco, oito anos para cá, de expropriação de pequenos agricultores. A China está num processo bem acelerado de urbanização. Oficialmente, 50% da população é urbana, hoje. Quando as reformas começaram, apenas 10% da população vivia nas cidades. Alguns analistas estimam que a taxa de urbanização continuará muito rápida até atingir 75% da população.  

Luis Nassif – Quando fala em expropriação, é para criar empresas rurais mais eficientes, ou é urbanização que está ocorrendo nessas áreas?

Isabela Nogueira – São dois processos. Um é de urbanização, da zona rural se transformando em zona urbana. Outro, de especulação imobiliária.

A China vive hoje um processo de boom imobiliário, em parte causado pela demanda que existe por casas. Estima-se que a China necessite de 68 milhões de casas por ano. Mas, boa parte das casas que estão sendo construídas é para o mercado de alto luxo, das quais a população média, simplesmente, não tem acesso.

Isso resulta na formação de uma bolha de acesso que, provavelmente, é o maior calcanhar de Aquiles da China, formada por apartamentos de luxo nas grandes cidades, como Pequin e Xangai, principalmente.

A China é um dos países com menor área agricultável do mundo. Apesar de ser grande, falta muita terra por lá, já que metade do território é deserto, ou ocupado por montanhas. Assim, a área urbana acaba praticamente em cima dos lotes agricultáveis. Por isso, os camponeses têm sido rapidamente expropriados de suas terras pelo mercado imobiliário.

Se olharmos a lista de maiores fortunas, de 2009, veremos que a China se tornou o segundo país, com maior número de bilionários do mundo – em primeiro lugar está os Estados Unidos e em terceiro a Rússia. Agora, se você olhar a lista dos 12 maiores bilionários, verá que oito são da área da construção civil.

Quando a agricultor [chinês] perde a terra, ganha uma indenização minúscula, equivalente a 1% do valor que vai ser pago [pelo imóvel que ali será construído]. Uma parte vai para o governo local, tanto para o orçamento quanto para o bolso de algum oficial. O resto do valor do imóvel vai para o empreendedor que construiu em cima daquela terra.

Essa criação de grandes fortunas, hoje na China, é um processo estranho, e o governo corre atrás de uma série de medidas para transpor esse modelo ocidental [de desenvolvimento].

O governo chinês seria um modelo que aqui no acidente chamaríamos de centro-esquerda. O presidente Hu Jintao, aplicou uma série de medidas com essa característica, entre elas o término da cobrança de taxas escolares, e o seguro saúde rural, que até então não existia, assim como programas de desenvolvimento no Nordeste e Oeste.

A prioridade do atual governo é realizar um reequilíbrio social. Essas melhoras, de fato, estão acontecendo, mas, concomitantemente, estão gerando um mal estar na China, que é essa grande atração de fortunas.

O próximo presidente da China será, provavelmente, Xi Jinping, da facção elitista de direita de Xangai. Ele é filho de um ex-líder partidário, um dos chamados príncipes do partido.

Luis Nassif – E como se dá essas mudanças de ênfase no âmbito do Partido [Comunista da China], porque é ele que define tudo lá, correto?

Isabela Nogueira – Sim. O Partido tem muito mais nuances. Longe de ser monolítico, ele tem várias frações e grupos diferentes de disputa dentro de si.

O modelo chinês político é muito sofisticado, é o que o ocidente e os americanos gostariam de ter. Os chineses o chamam de meritocracia ou desempenho por legitimidade que é o seguinte: se você é um líder de uma província, ou cidade, seu desempenho vai ser medido, anotado e pontuado segundo os indicadores vigentes.

Por exemplo, se você é prefeito de Kunming, capital da província de Yunnan, que tem vários programas sociais. Além da meta de crescimento econômico, que tem que atingir, precisará aumentar índices como taxa de alfabetismo, adesões no sistema de saúde, enfim, uma série de aproximadamente 15 indicadores.

Antigamente, esses indicadores eram, basicamente, só crescimento econômico e combate à corrupção.  Hoje é uma lista muito sofisticada que cada líder tem que seguir. Conforme vão pontuando essa listagem, vão subindo de hierarquia dentro do Partido. Os que chegam no topo do Partido têm competência gerencial política extraordinária, são caras que dão resultados.

No Partido as grandes frações de poder político se resumem em duas. Uma, chamamos de fração elitista, alguns autores e sociólogos também chamam de neoliberal. É concentrada de gente que vem de Xangai, com relação próxima com a costa. A outra fração é dos chamados populistas, ou fração vermelha.

Dois grandes presidentes do país caracterizam essas frações. O presidente da década de 1990, Xiang Zen, era da fração elitista, com visão ortodoxa do ponto de vista macroeconômico, considerava o crescimento econômico importante, e era muito preocupado com a inflação. Já os populistas têm uma agenda social muito desenvolvida, com preocupações de reduzir o gap social.

O atual presidente é dessa fração populista. Hu Jintao fez carreira no interior da China, no Tibet e em outros lugares. Se pegar o discurso do seu primeiro ministro, Wen Jiabao, verá que se trata de um texto completamente alinhado a nova esquerda chinesa, acompanhado por um movimento universitário e intelectual muito forte.

Luis Nassif – O arco de diferenças entre eles é muito expressivo? Seria semelhante, digamos, ao modelo alemão ou americano, de ser um pouco mais para a direita, ou um pouco mais para a esquerda?

Isabela Nogueira – Exato, uma coisa entre republicanos e democratas. O fundamental em relação a essas duas frações é que, primeiro, as duas têm uma visão da necessidade do fortalecimento da China. Existe um consenso de que o país precisa emergir frente o cenário mundial, de trazer o país de volta para o centro do poder. As duas frações estão completamente comprometidas nesse sentido. O mesmo se vê quando o assunto é a necessidade de incremento tecnológico dos produtos chineses e sobre os planos quinquenais que darão direcionamento político ao país.

Não há ruptura entre as duas frações nesse sentido. Inclusive, existe especulação por parte das escolas americanas de que esses dois grupos fazem um acordo de alternância de poder. Não sabemos se é verdade, mas de fato essa alternância tem sido observada a cada nova eleição.

Luis Nassif – A eleição é feita de que maneira?

Isabela Nogueira – Apesar dos chineses chamarem de eleições, não existe eleições no país e sim escolha do próximo líder, feita pela cúpula do Partido Comunista, formada por nove membros do Comitê Permanente do Bureau Político do Partido.

O próximo presidente sairá seguramente de lá, de um desses nove membros. O processo de escolha de líder é feita por emergência gradual. Primeiro você entra no partido, e vai galgando posições até alcançar o nível mais alto. Esse processo é feito por algo que os chineses chamam de decisão por consenso. Um formato deliberativo muito extenso, de longas conversas no Partido.

E parece que houve algum tipo de disputa entre essas duas frações para ver quem é que conseguiriam nomear. O nome do próximo presidente [Xi Jinping], por exemplo, não é apoiado pelo atual presidente do país. Hu Jintao, na verdade, apóia seu primeiro ministro. Mas isso não significa, do ponto de vista institucional, que está havendo um processo de ruptura no Partido.

Luis Nassif – É possível falar como funciona a questão da liberdade de expressão na china?

Isabela Nogueira – Na verdade, com o processo de liberdade social se expandindo rapidamente, não se tem apenas a maior comunidade de internet do mundo na China, como também o uso livre para divergir do governo em comunidades próprias na internet. Claro que o governo está em cima, fiscalizando e monitorando.

Mas existem vários outros canais onde o direito de criticar o governo é expresso. A Universidade, por exemplo, é completamente livre nesse sentido. Ali é permitido discutir qualquer coisa desde que você não organize uma manifestação. Os professores, aliás, são bastante críticos. O próprio governo faz autocrítica por meio da imprensa oficial, que está cada vez mais interessante dando vazão a vários problemas sociais.

O governo chinês, inclusive, é bastante hábil nesse sentido, deixando claro querer que as pessoas dêem vazão as suas reclamações e prometendo resolver de forma rápida os problemas. Tanto que quem mais fala hoje sobre o direito dos migrantes sem registro no país é o primeiro ministro que até chora em publico e faz declarações emocionadas.

Agora, o governo não admite de maneira alguma a organização de manifestações que instigue a queda do Partido, porque daí pode morrer muita gente. Os chineses sabem que desse limite não podem passar, que não podem questionar a legitimidade do PC.

Então, essa gaiola do consumo que dizem, de que só se tem liberdade de consumir na China, não é verdadeira. As liberdades estão em expansão no país, e isso eleva o tempo de sobrevivência do partido autoritário. Eles [do Partido Comunista] até falam explicitamente que é preciso caminhar mais no sentido de aumentar a liberdade, mas no discurso falam de um processo lento que demorará uns 20 anos para se chegar às eleições diretas. “Antes é preciso tornar a China institucionalmente mais forte etc”, dizem.

Luis Nassif

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