A desigualdade social nas grandes cidades

Sugerido por Assis Ribeiro

Do Brasil de Fato

Mariana Desidério, do Brasil de Fato

O principal problema das grandes cidades é a desigualdade social, que faz do mesmo território um espaço distinto para as diferentes classes sociais. As contradições dentro de uma mesma cidade levam ao sentimento de desencanto, que está na raiz das mobilizações que tomaram o país em junho.

A avaliação é da psicanalista Maria Rita Kehl, que é especialista em psicologia social e em psicanálise. Em entrevista ao Brasil de Fato, Maria Rita Kehl relaciona desigualdade, juventude e violência policial.

Maria Rita Kehl foi indicada pela presidenta Dilma Rousseff, em 2010, para integrar a Comissão Nacional da Verdade, criada para investigar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante o regime militar.

Autora do livro “O Tempo e o Cão” (Boitempo), que debate a depressão na sociedade contemporânea, ganhou o Prêmio Jabuti na categoria Educação, Psicologia e Psicanálise.

Brasil de Fato: Quais os impactos da dinâmica hostil de uma cidade como São Paulo na população?

Maria Rita Kehl – A cidade é uma das invenções mais geniais da humanidade. O que destoa é a desigualdade. O problema é que a cidade onde mora a moça que faz a faxina não é a mesma em que eu moro, embora seja o mesmo município.

Por quê?

A cidade em que ela mora quase não tem calçamento e quando tem é de péssima qualidade. Se o lugar é muito maltratado, as pessoas se sentem mal também. Às vezes o bairro nem é perigoso, mas não tem onde brincar, não tem árvore, não tem sombra e não tem beleza. Cidade com desigualdade é um inferno.

Qual a consequência para a vida das pessoas?

Um sentimento de permanente desencanto, em termos de uma patologia social. Esse sentimento deixa as pessoas sensíveis à injustiça. Não dá para dizer que basta me preocupar com meu umbigo. A cidade é um espaço de sociabilidade. Não sei se todo mundo que foi protestar em junho vive mal. Muita gente que tem carro deve ter ido para a rua, como quem não precisa de saúde pública. E muitos estudantes que vivem em bairros bacanas.

Como você caracteriza essa juventude que foi às ruas?

Uma geração com um sentimento muito grande de desencanto. Vou fazer aqui uma hipótese: foram duas grandes desilusões. Uma foi dada pela imprensa, com as denúncias de corrupção do PT – sem entrar na discussão do que a imprensa fez virar esse caso. A imprensa é muito de direita no Brasil.

E a segunda desilusão?

Os governos petistas diminuíram a desigualdade no que se refere à renda, mas não diminuíram a desigualdade no que se refere aos meios de produção. A pessoa pode melhorar sua renda como operária, em uma grande obra, mas não tem as condições de ser o dono do seu próprio trabalho. Veja que contradição. Promover a igualdade não é só melhorar a renda, mas garantir a autonomia. Essa juventude de agora pode sair desse sentimento de desencanto, que nasceu com essas desilusões. É uma desilusão com a política, não só com o PT.

O que essa juventude tem em comum com os jovens que lutaram contra a ditadura?

No século 20, houve uma relação entre idealismo e juventude, que despertou como força política. A juventude é mais sensível e menos resignada com os problemas do mundo. Agora, está inaugurando a sua vida cidadã. Tem a ideia de que a juventude é nossa esperança, que vai mudar nosso futuro. Não é uma esperança pelo que vai fazer no futuro, mas pelo que faz agora. No futuro, serão adultos e vão estar barrigudos. É hoje que a juventude traz esperança, porque denuncia e não se conforma.

O que você espera desse movimento que tomou as ruas em junho?

A juventude voltou a ser protagonista. Minha preocupa preocupação é como esse movimento com bandeiras muito pulverizadas vai voltar a mobilizar. A questão de voltar o preço da passagem foi uma conquista importante. E daqui pra frente? Quando os sem-terra saírem às ruas, essa juventude vai sair junto? O MST é o movimento mais importante do Brasil. Minha pergunta é: com essa pulverização de muitas causas, é possível uma política que faça alianças e que resulte em uma transformação de mais longo prazo?

O Brasil é um país conservador?

O Brasil tem uma classe patronal injusta, que não tem vergonha de explorar. Quando a pessoa ganha o Bolsa Família, para tirar a cabeça da miséria, essa classe reclama que aquele dinheiro está saindo do imposto dela. É horrível. Veja o caso da PEC das domésticas. Danuza Leão [colunista da Folha de S. Paulo] escreveu que era justo as domésticas terem horário para trabalhar, mas perguntou como ficaria o direito dos amigos dela de tomar um chá depois das 22h…

O que isso significa?

A pessoa está tão fechada no seu mundo que não se toca. Pensam que doméstica ter hora para dormir tira o direito deles de tomar o chá. É uma alienação muito profunda e sutil. A grande elite não considera o trabalhador com direitos iguais, mesmo após a abolição da escravidão.

Você faz parte da Comissão da Verdade. Como a vida das pessoas é afetada hoje pela falta de acesso à verdade sobre os crimes da ditadura?

A nossa anistia teve condições impostas por quem tinha a força. Não houve uma votação democrática. A gente sente aos poucos os sintomas de não ter havido uma verdadeira reparação da violência e da ilegalidade do Estado. O primeiro sintoma evidente é que a brutalidade do Estado permanece contra os mais pobres. A tortura permanece no Brasil. Só que isso não sai na imprensa, porque quem poderia denunciar tem medo. São as mães dos meninos que estão na cadeia, são as mães dos mortos de maio de 2006.

Os mortos pela polícia após os ataques do PCC?

Em maio de 2006, depois dos ataques do PCC [facção criminosa Primeiro Comando da Capital], a polícia de São Paulo entrou numa ação de vingança. Em uma ou duas semanas, matou mais do que matou na ditadura militar. Foram mais de 400 jovens. Só que as mães têm medo de denunciar. Até hoje tem desaparecidos. A tortura continua, a impunidade da tortura continua e o medo de denunciar a tortura continua. Porque as polícias continuam militarizadas. E em alguns Estados, como em São Paulo, é interesse do governador que continue esse terror que a polícia espalha entre as classes baixas.

Que outros resquícios da ditadura ainda continuam?

O Estado continua autoritário em suas relações com o povo. Se você for em qualquer repartição pública paulista, você será maltratado. Não necessariamente vai ser preso, mas vai ser considerado um cidadão de segunda categoria. Há falta de informação. Não se sabe por que a sua consulta é agendada somente para dali três meses. Não se sabe por que o médico não veio. Não se sabe exatamente para que local você tem que ir. Não te informam direito. Esse autoritarismo, que continua, é cotidiano. É sintoma de 40 anos de ditadura sem reparação.

Quais as consequências da violência nas periferias da cidade?

A principal consequência é o medo. A violência aprofunda o fosso da desigualdade. Se o jovem da periferia participar de uma manifestação na Avenida Paulista, ele não vai ser preso. Mas se fizer uma manifestação lá no Jardim Ângela ou no Capão Redondo, pode ser duramente reprimidos e marcados pela polícia.

O que se espera com o relatório final da Comissão da Verdade?

O que a gente espera é que, quanto mais informação a sociedade tenha sobre esse período, menos se apoie a ditadura. Não podemos esquecer que a ditadura só se impôs porque teve apoio de uma parcela da sociedade. O relatório pode criar uma rejeição profunda à volta de um regime como a ditadura, mesmo de quem nunca sofreu nada naquele período. A gente espera que o relatório vá para as escolas para que até as crianças possam entender.

http://www.brasildefato.com.br/node/26116

Redação

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  1. São Paulo tornou-se escrava da escravidão

    O que está por trás do protesto contra os bandeirantes em São Paulo

    Do Diário do Centro do MundoPostado em 10 out 2013por :  Monumento pichado

    Monumento pichado

    Aconteceu o primeiro protesto contra os bandeirantes em São Paulo.

    O protesto foi no Monumento às Bandeiras, cartão postal da cidade esculpido pelo italiano Vitor Brecheret, em que os tupis mamelucos ostentam cruzes no pescoço e seguem portugueses gigantes montados a cavalo.

    O monumento foi pichado e os bandeirantes e mamelucos foram tingidos de vermelho. Merecidamente: os bandeirantes eram caçadores de escravos guaranis.

    São Paulo nasceu de uma aliança entre os jesuítas e uma tribo de mamelucos tupis liderada por João Ramalho, casado com Bartira, a filha do cacique Tibiriçá.

    A cidade surgiu de um acordo nepotista para a implantação de um colégio cristão às margens do Tamanduateí, o rio dos tamanduás. Esses escravos tupis integrantes das bandeiras escravagistas é que foram pichados no Ibirapuera – a árvore ou mata desaparecida.

    Mas os jesuítas fundaram muito mais que São Paulo. Fundaram mais de 30 reduções, ou missões, em território guarani, no sul do atual Brasil, Argentina e Paraguai. Na época, os territórios eram disputados por espanhóis e portugueses.

    Em São Paulo, Raposo Tavares – que dá nome à estrada que segue em direção às missões – é considerado herói. Nas missões jesuítas argentinas, paraguaias e gaúchas ele é chamado de bandido até hoje.

    Sob o comando dos sacerdotes jesuítas mais cultos e bem preparados – que incluíam artistas, cientistas e arquitetos – as missões alcançaram um nível avançado de desenvolvimento social, artístico e cultural.

    Os guaranis tornaram-se capazes de escrever e tocar música barroca, a esculpir a pedra e a construir e decorar igrejas como as florentinas ou sevilhanas.

    Os escravos eram artistas. Os escravizadores, semianalfabetos. Os paulistas acabaram com as missões e com as habitações comunitárias que circundavam a igreja e o colégio centrais de cada uma delas, porque a educação era central no projeto missioneiro.

    Liquidaram as escolas e a habitação popular. Reduziram a escombros as casas das reduções missionárias. Destruíram o Minha Casa Minha Vida guarani para obrigá-los a trabalhar de graça nas fazendas paulistas.

    Depois de transformar as missões em ruínas e escravizar seus habitantes – coisa que as escolas paulistas ensinam mas não criticam – os paulistas começaram a ser expulsos ao perder pela primeira vez na batalha de Bororé, às margens do rio Uruguai, selando definitivamente a fronteira entre o Brasil e a Argentina. Bororé é o veneno que os índios colocavam na ponta das flechas. O veneno funcionou tanto quanto as armas de fogo que os jesuítas  receberam da coroa espanhola, também inimiga dos bandidos paulistas.

    Daí em diante os bandeirantes foram caçar escravos na África e, depois, trouxeram mais imigrantes italianos. Porque eles já estavam aqui muito tempo antes.

    Em seguida chegou o capital estrangeiro que salvou os cafeicultores falidos e a indústria recém instalada.

    Os escravos passaram a vir do nordeste do país e a habitar as periferias das grandes cidades, que foram cercadas por eles.

    Mão de obra barata, recursos naturais à disposição dos caçadores de esmeraldas e mercado nacional cativo.

    Afastados os paulistas, os espanhóis expulsaram os jesuítas e os índios das missões. Elas acabaram em ruínas e seus ex-habitantes perambulam por ai até hoje.

    Jesus de Tabarangue – hoje no Paraguai – foi a última das missões e a mais bem preservada até hoje. Sua imensa igreja – em estilo mourisco – foi abandonada inacabada com a expulsão dos jesuítas, que deixaram inscrita na pedra a data da partida. Foi assim que a redução de Jesus passou a ser Tabarangue, a aldeia que não ficou pronta.

    Até que um jesuíta italiano do outro lado do rio Uruguai virou Papa. Hoje, o ítalo-argentino Jorge Bergoglio é o Papa Francisco. Não se sabe direito se em homenagem a Francisco de Assis – o frade maltrapilho defensor dos pobres e da pobreza – ou a Francisco Xavier, cofundador da Ordem de Jesus, criada com a missão de evangelizar os novos territórios conquistados na América e na Ásia.

    Provavelmente, em memória de ambos. Pois não há outra maneira de competir com os demais evangelizadores sem se aliar aos pobres.

    Os caçadores de escravos e esmeraldas tornaram-se escravos da escravidão. Derrotados na batalha de Bororé, os bandeirantes se refugiaram no Palácio dos Bandeirantes, uma fortaleza construída por um falso conde italiano em estilo fascista, situada no bairro mais rico da cidade e defendida por militares policiais.

    A próxima batalha do Bororé será assistida no Morumbi, que quer dizer “mosca varejeira”. Será que os bandeirantes sabem onde estão sentados?

    O Papa sabe. E também sabe que para reconquistar o povo não pode se aliar aos bandeirantes.

    O povo quer que Tabarangue, a aldeia inacabada, fique pronta um dia. No Paraguai todas essas traduções do tupi-guarani são dispensáveis. Lá todo mundo entende a língua que os bandeirantes já esqueceram.

     

  2. Penso que Maria Rita Kehl

    Penso que Maria Rita Kehl acertou na análise. Cobrar mais por um passe de ônibus foi instituir a derrama nos navios negreiros.

    Há um muro  de Berlim invisível nas grandes cidades, separando aqueles que vivem na privação daqueles que realmente desfrutam de uma vida digna de metrópole. Talvez a janela do ônibus seja o espelho mais fiel dessa realidade, e, não por acaso o 17 de junho começou na esteira do aumento das passagens. 

    A sociedade do brasileiro que pega ônibus, que faz de manhã para comer de noite, está saturada de imagens que não consegue mais imitar no seu  contexto econômico. O simulacro descolou-se do praticável. 

    Só tenho acrescentar que o sonho do emprego bem remunerado,  garantido pelo tão almejado diploma (sonho alimentado pela abertura indiscriminada e criminosa do ensino privado nos anos FHC), esbarra na dura realidade de que o mercado de trabalho é mais rígido que faculdades de fachada. Essa meninada que comprou o bilhete fácil do diploma à granel está frustrada por ter adquirido, à duras prestações,  uma passagem para o subemprego. Ficou mais evidente do que nunca ao pobre que não basta ter diploma para ter vida de rico. É o aprendizado empírico do “axioma de Adib Jatene”: de que o maior problema do pobre é não ter amigos ricos.

     

  3. “O Estado continua

    “O Estado continua autoritário em suas relações com o povo. Se você for em qualquer repartição pública paulista, você será maltratado. Não necessariamente vai ser preso, mas vai ser considerado um cidadão de segunda categoria. Há falta de informação. Não se sabe por que a sua consulta é agendada somente para dali três meses. Não se sabe por que o médico não veio. Não se sabe exatamente para que local você tem que ir. Não te informam direito. Esse autoritarismo, que continua, é cotidiano. É sintoma de 40 anos de ditadura sem reparação.”

    Isso não é autoritarismo.

    É simplesmente serviço publico de má qualidade

    Não há meritocracia nas repartições

    Quem ganha promoção é aquele puxa-saco ou o cara com mais tempo de casa

     

    “A pessoa pode melhorar sua renda como operária, em uma grande obra, mas não tem as condições de ser o dono do seu próprio trabalho. Veja que contradição. Promover a igualdade não é só melhorar a renda, mas garantir a autonomia.”

    Como a pessoa vai ter autonomia no trabalho se o Estado massacra o empresario com uma carga tributaria escandinava, além disso o estado dificulta a vida da empresa até na hora de pagar imposto com uma burocracia absurda. Isso desencoraja o cidadão que é empregado e quer ter seu próprio negócio.

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