A psicóloga do Morro do Cantagalo

Do Educação Pública

Universitária e Favelada

Por Mariana Cruz

Vanessa Meneses Andrade é formada em Psicologia e moradora da Zona Sul do Rio de Janeiro. Até aí nada de excepcional. Mas quando começamos a nos aprofundar na história dessa jovem de 26 anos, vemos que não é tão simples como parece. Vanessa é moradora do Morro do Cantagalo, uma favela – como ela faz questão de falar – localizada em Ipanema, um dos bairros mais chiques do Rio de Janeiro. É também mestranda do curso de Psicologia de Subjetividades e Exclusão Social na UFF, umas das melhores universidades do estado. Para chegar aonde chegou, teve de lançar mão de atributos como persistência, coragem, conscientização, estudo, luta contra o preconceito, disciplina, além do incentivo de seus familiares e de pessoas que acreditaram nela. Mesmo sem querer, ela é uma das pessoas que ajudam a mudar a imagem de que só é possível mudar de vida na favela pela via do esporte ou da cultura. O estudo também é um caminho para essa mudança, seja para deixar para trás a vida da favela ou, como ela faz, usando seu conhecimento para modificar e melhorar aquele ambiente tão rico e, por vezes, tão mal aproveitado.

Educação Pública – Como você resolveu fazer Psicologia?

Na verdade a Psicologia foi um acaso na minha vida; queria muito fazer Medicina, só que na primeira fase da UERJ já tinha ficado com conceito B. Com B não dava para tentar para Medicina, aí eu coloquei como segunda opção Psicologia. Aí eu passei, comecei a cursar, gostei e continuei o curso.

Educação Pública – Você entrou pelo sistema de cotas?

Foi a segunda turma de cotas. Na minha época, eu coloquei cotas porque eu já tinha uma questão política referente à questão racial, mas a minha nota foi uma das maiores notas para passar no vestibular da UERJ em Psicologia. Mas diversas vezes na turma eu tive que reafirmar isso, não por motivo de ostentação, de orgulho, mas para diminuir o preconceito que havia com quem era cotista, porque havia a ideia hegemônica de que quem era cotista era menos capacitado e menos digno de estar ali. Inclusive por parte de alguns professores. Então eu sempre reafirmava a minha nota e a minha opção por cotas para demonstrar que o fato de ser cotista não necessariamente significava que eu tinha tirado uma nota inferior e que eu estava ali por algum outro motivo que não fosse o direito meu de estar ali.

Educação Pública – Por que você usa o termo favela em vez de falar comunidade, como a mídia tem difundido ultimamente?

Eu não gosto do termo “comunidade”. Acho que comunidade remete a uma vida em comum, e é uma romantização do que é viver em favela. É favela mesmo. É o que é. A história remete à favela. Eu não tenho nenhum pudor em falar “favela”, em falar que sou “favelada”. Só que eu não sou uma “favelada” no sentido ordinário, em que se usa tradicionalmente o termo. Porque eu consegui estar num espaço em que poucas pessoas conseguem estar, porque a maioria não consegue. Favela é um local com muitos talentos, onde muitas pessoas lutam porque acreditam nos seus sonhos, mas os sonhos estão geralmente muito distantes de uma universidade. Tem muita gente que pensa em ter uma condição econômica melhor, mas pensando na via da arte, do esporte, não pela via do conhecimento, que eu chamaria de conhecimento formal, acadêmico. Talvez agora tenha uma mudança mais significativa, por conta do ProUni. Nestes últimos três anos teve um incentivo para que a população mais carente – aliás, eu não gosto desse termo, mas acaba sendo esse o argumento usado – tivesse acesso à universidade. Só que lá em casa desde sempre houve um planejamento para que a gente, um dia, estivesse numa universidade. Nós três. Eu tenho duas irmãs. Meus pais sempre incentivaram e apoiaram isso de todas as formas. A gente até às vezes se sentia meio “peixe fora d’água na favela”, pois, pelo fato de a gente estudar em um colégio particular, as outras crianças viam a gente como “os riquinhos da favela”, e as crianças do colégio particular viam a gente como “os pobretões do colégio”. Era um lugar muito desconfortável, você está o tempo todo tendo que conquistar as pessoas e mostrar para elas o seu real valor, tanto para um lado quanto para o outro. A gente foi privada de muita coisa, porque na favela a gente não tinha tanto tempo para brincar, fazer atividade esportiva, participar de colônia de férias, fazer nada ligado à cultura, porque meus pais achavam perda de tempo. O tempo em que eu estava ali fazendo, sei lá, aula de capoeira, poderia estar estudando um livro para ser a melhor aluna da sala.

Educação Pública – Você acha que essa postura talvez não tenha sido um pouco radical por parte dos seus pais, ou você acha que foi necessária essa rigidez?

Há uma diferença entre mim e minha irmã mais velha. Minha irmã seguiu isso à risca. Ela tem um desenvolvimento financeiro melhor do que o meu. Em compensação, os laços afetivos acabam ficando muito fracos, porque você não tem muito tempo de investir nisso. Você abdica das suas amizades, das relações, do prazer que é viver em favela e passa a viver praticamente num laboratório: você está ali só para estudar. Sai dali, vai para a escola, sai da escola, volta para casa, estuda. É uma vida um pouco regrada demais. Hoje em dia eu entendo meus pais, pois era um risco para eles também. Era um outro momento. Não é que eu não brincasse, mas eu não tinha o mesmo tempo disponível e a tranquilidade para brincar que meus amigos tinham. Porque eu tinha um compromisso. Estudo para mim era uma obrigação. Meu pai pagava a escola com muito sacrifício, e o retorno que ele pedia era que nós fôssemos as melhores. E nos éramos. Era o mínimo que a gente achava que podia fazer. E o meu pai não parabenizava a gente, ele falava: “vocês não precisam me dar parabéns para pagar a mensalidade, também não preciso dar parabéns para vocês por tirarem nota alta”; então era uma relação bem direta. Era um investimento, um pacto do pai com o filho. Era uma relação de obrigação: ele se sentia na obrigação de oferecer para a gente uma oportunidade melhor pagando esse estudo, e a gente se sentia na obrigação de fazer valer essa oportunidade dando o melhor da gente. Mas, em compensação, na escola a gente não dispunha dos mesmos meios para ir a passeio, usar as mesmas roupas.

Educação Pública – Como vocês lidavam com essas diferenças?

No primeiro colégio em que eu estudei era mais tranquilo, pois, apesar de ser um colégio particular, era mais fraco. Era o colégio que os pais podiam pagar, era o máximo que eles podiam pagar; por outro lado, era um dos piores colégios particulares, e as diferenças não eram tão nítidas. Mas quando eu fui para um colégio maior, tradicional, de freiras, ficou muito fácil perceber a distinção entre ricos e pobres, brancos e pretos, favela e asfalto; eram impossibilidades reais. Ocupar o mesmo espaço gerava um incômodo muito grande de ambas as partes.

Continua: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/jornal/materias/0516.html

Luis Nassif

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