Doações e universidades públicas

Ontem vários veículos da mídia tradicional (Folha, Globo, etc.) deram destaque a um projeto da Escola Politécnica (Poli) da USP de estabelecer um fundo de investimento para captar doações e gerar recursos para a pesquisa:

http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/931316-poli-usp-quer-captar-verba-para-pesquisa-nos-moldes-de-harvard.shtml

Em primeiro lugar, nessas reportagens há vários equivocos e omissões sérias. Por exemplo, elas repetem o lugar-comum de que Harvard e outras grandes universidades americanas devem seu sucesso ao fato de serem privadas.  Na verdade, elas são fundações sem fins lucrativos — e não empreendimentos comerciais, como a grande maioria das universidades privadas brasileiras.

De modo geral, a universidade “privada” americana não tem donos e não distribui lucros.  Sua autoridade máxima é um Conselho de Curadores, cujos membros não tem nenhum interesse financeiro e pessoal na mesma, exceto o desejo de ver a universidade cumprir seus objetivos filantrópicos. O Conselho Curador de Stanford, por exemplo, não inclui nenhum docente, funcionário, ou aluno da universidade.  Todos os seus membros são antigos ex-alunos já estabelecidos na vida; e acredito que essa é a regra em toda as universidades americanas.  Embora se reúna esporadicamente e não se ocupe de detalhes, o Conselho tem em princípio poder total sobre decisões internas da universidade. Em particular, é o Conselho, e não os docentes, quem escolhe (e, se quiser, demite) o Reitor, e renova seus próprios quadros.

A saúde financeira e acadêmica das melhores universidades americanas provavelmente deve muito mais a esse modelo de governança do que à entrada de doações ou a cobrança de mensalidades.  Entretanto, sempre que Harvard e seus símiles são apontados como exemplos para nosso ensino superior, esse “pequeno” detalhe é convenientemente esquecido.  Tanto os donos das nossas universidades privadas quanto os docentes e funcionários de nossas universidades públicas tem intensa ojeriza a esse conceito.

Em segundo lugar, a notícia acima pode dar a impressão de que no Brasil é difícil ou impossível doar recursos diretamente para as universidades públicas.  Na verdade, tais doações para universidades sempre foram possíveis e não são nada complicadas.  O “defeito” dessa opção é que a doação, embora fique no orçamento da universidade, passa a ser dinheiro público; e como tal não pode ser usado para investir no mercado financeiro — por óbvios e inquestionáveis motivos.  (Outro “defeito” dessa opção é que, pela lei, o doador não pode receber nenhuma contrapartida da universidade, nem controlar o uso do dinheiro doado; e esse dinheiro não pode ser usado para complementar salários de docentes ou funcionários. Há excelentes razões para estas regras também; mas esse assunto tem que ficar para outra ocasião.)

Então, a novidade na proposta da Poli é que o dinheiro doado não ficaria com a universidade, mas seria entregue a uma empresa privada, que investiria o capital no mercado financeiro e repassaria os rendimentos para a escola.  Segundo a notícia, a empresa gestora ficaria com uns 10% dos rendimentos, para cobrir seus salários, custos e lucros. 

Naturalmente, os proponentes dessa idéia só mencionam os aspectos positivos, e omitem os problemas óbvios.  Em primeiro lugar, ninguém disse o que vai acontecer se os investimentos derem prejuízo em vez de lucro.  Será que, nesse caso, os donos e funcionários da empresa gestora pagarão 10% das perdas, de seu bolso?  (Não precisam responder.)

Ou seja, a empresa gestora desse fundo estaria realizando o sonho de muita gente: apostar na bolsa com dinheiro alheio, compartilhando os lucros mas não as perdas.  Nessas condições,  a empresa fica incentivada a correr riscos que a universidade julgaria inaceitáveis, investindo em negócios que podem dar grandes lucros mas que tem grande chance de dar errado. 

Aliás, a própria Harvard fornece um bom exemplo deste perigo:

  The Boston Globe, November 29, 2009
  Harvard ignorou avisos sobre investimentos
  Conselheiros avisaram Summers [gestora do endowment de Harvard] e outros para
  não colocarem tanto dinehiro assim no mercado financeiro; perdas atingem 1,8 bilhões de dólares.
  http://www.boston.com/news/local/massachusetts/articles/2009/11/29/harvard_ignored_warnings_about_investments/

Conforme esse artigo, em 2008 a empresa gestora de Harvard estava investindo no mercado 80% dos 5.1 bilhões de dólares que constituíam o caixa da universidade.  Nessa época, a universidade começou a ficar preocupada, e para diminuir o risco resolveu que iria retirar 1 bilhão por ano desse fundo para colocar em bônus do Tesouro americano — uma aplicação pouco rentável porém mais seguras.  Mas não deu tempo: com a crise da bolsa de 2008, a carteira desse fundo perdeu quase 30% do seu valor, e a universidade teve que amargar uma perda de 1,8 bilhões.  A crise levou a demissões e outros cortes drásticos de salários e gastos.

Mas pior que o risco de gestão temerária são as “oportunidades irresistíveis” que esse esquema cria para os gestores do fundo.  Considerem por exemplo este cenário:

 1. Filantropo doa 100 milhões de reais para a empresa gestora, em prol da universidade.
 
 2. A empresa investe os 100 milhões em ações da recém-criada e muito badalada
    empresa de social networking LivroDeCaras SA (que, por coincidência, é da
    mulher do presidente da empresa gestora).
   
 3. A LivroDeCaras contrata por 100 milhões os serviços da micro-empresa de consutoria
    de internet Pimpolho SA (que, por coincidência, é do filho do casal).
   
 4. A LivroDeCaras SA fecha as portas, e suas ações fazem *puf*.
 
 5. A empresa gestora diz para a universidade que lamenta muito, mas
    o mercado financeiro é assim mesmo; e com certeza ela
    terá mais sorte com a próxima doação.
   
Pelo que sei da legislação, acredito que este golpe (ou alguma variação dele) seria totalmente legal, e a universidade não teria como obter seu dinheiro de volta. 

É por conta deste risco, nada teórico, que foi inventado o conceito de “fundação”. Esta é uma pessoa jurídica formulada especificamente para proteger um capital filantrópico da depredação por seus gestores e garantir que ele será usado para os fins desejados por seus doadores.  Ao contrário de uma empresa privada, uma fundação legítima é obrigatoriamente comandada e supervisionada por um Conselho de Curadores comprometidos com seus objetivos e sem interesse financeiro na mesma; tem suas atividades limitadas por leis específicas; e está sujeita a uma análise minuciosa de suas contas por fiscais e procuradores especializados. 

Deve-se frisar que as “fundações de apoio” que pululam nas universidades públicas não são fundações legítimas, e não se prestam para este fim.  De modo geral, elas são controladas por pessoas que tem interesse pessoal nas suas atividades; por exemplo, docentes que recebem recursos de pesquisa, bolsas ou complementações salariais da fundação, ou que usufruem de vantagens políticas na universidade por terem controle da mesma.  Muitas dessas entidades existem num limbo legal e só sobrevivem por condescendência dos procuradores.  Muitas não possuem capital filantrópico, e são apenas instrumentos que as universidades usam para contornar as leis da gestão pública.  Suas contas (ao contrário das contas da universidade) não são públicas.  De modo geral, elas não oferecem nenhuma garantia de que dinheiro doado a elas será bem utilizado.

Portanto, para os filantropos que querem ajudar uma universidade e ter garantias de que sua doação será bem utilizada, a melhor opção é constituir uma fundação legítima, independente da universidade, com curadores isentos e de confiança.  Usar uma empresa privada para esse fim significa ignorar um século de progresso legal, e re-inventar o machado de pedra.

Redação

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