O poste e os ecos da escravidão, por José de Souza Martins

Tatiane Correia
Repórter do GGN desde 2019. Graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), MBA em Derivativos e Informações Econômico-Financeiras pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Com passagens pela revista Executivos Financeiros e Agência Dinheiro Vivo.
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‘Eu, não, meu senhor’, por José de Souza Martins
De “O Estado de São Paulo”
 
 
Menino preso a poste no Rio descende de homens livres, mas a chibata continua lá: dentro da alma
 
 
Era de noite. Foi no Flamengo. Trinta marmanjos chegaram em 15 motos. Os quatro adolescentes caminhavam para Copacabana, “para tomar um banho de mar”. “Era (um) fortão e tinha um magrinho. O magrinho já chegou jogando a moto em cima. Vou matar! Vou matar os quatro!” A moto e a enturmação fizeram o magrinho ficar fortão e valente. O magrinho foi acusando: “Bando de ladrão, fica roubando bicicleta dos outros”. Três dos garotos conseguiram fugir. O menino de 15 anos, não. Nenhum deles estava de bicicleta.
 
Desde quando seus antepassados foram trazidos da África, empilhados em navios negreiros, para serem vendidos no Valongo depois de estirados na praia para destravar o corpo, o menino negro sabe quem manda e quem obedece. O tronco e a chibata no lombo de seus antepassados surraram também sua memória e lhe ensinaram as lições que sobrevivem 125 anos depois da liberdade sem conteúdo da Lei Áurea. A lei que libertou os brancos do fardo da escravidão antieconômica. Mais de um século depois, o menino ainda sabe como é que se fala até mesmo com moleque que herdou os mimos da casa-grande: “Eu não, meu senhor, todo mundo aqui é trabalhador”, defendeu-se.
 
Esse menino descende de homens livres há mais de um século. Mas a chibata ficou lá dentro da alma, ferindo, dobrando, humilhando, criando desconfiança, ensinando artimanhas de quilombo para sobreviver. Esse “meu senhor” diz tudo, fala alto, grita na consciência dos que a tem. Esse “meu senhor” desdiz a liberdade, desmente a Lei Áurea, nos leva de volta aos tempos da senzala, do tronco e do pelourinho. Esse “meu senhor” expressa uma liberdade não emancipadora, que não integrou o negro senão nas funções subalternas de uma escravidão dissimulada, mas não na ressocialização para a liberdade e para a cidadania. Quem acusa o menino não sabe que a sociedade não pode colher o fruto que não semeou.
 
No dia 13 de maio de 1888 não libertamos ninguém. Continuamos todos escravos da escravidão que não acaba, da moral retorcida que nos legou, da consciência cindida que nos faz crer que somos uma coisa sendo outra. No mundo novo da liberdade abstrata de um contrato fictício não podemos nos encontrar porque não encontramos o outro, não podemos ser livres porque não nos libertamos no outro, não podemos ter direitos de que os outros carecem.
 
O menino levou uma surra de capacetes. “Bateu, bateu”, disse ele a uma repórter. Desmaiou. Foi ferido a faca na orelha. Com uma trava de bicicleta, foi amarrado pelo pescoço num poste. Coisa de gente muito valente, coisa de macho: 30 homens contra um menino franzino. E na Câmara dos Deputados houve quem se orgulhasse disso. Confessou um deputado mais inclinado ao justiçamento do que à Justiça: “Praticou um ato corajoso quem deu uma surra nesse vagabundo, porque os moradores estão cansados de serem roubados e assaltados por essa gentalha”. Isto é, gentinha, populacho, ralé. O mesmo tratamento que tinha vigência antes da lei do 13 de Maio, quando o escravo era considerado coisa, semovente, mercadoria, um ser abaixo da condição humana. Mero animal de trabalho, com a diferença de que das azêmolas diferia porque falava, gemia, chorava, sabia.
 
A Lei Áurea trouxe implícita a igualdade jurídica do negro liberto, coisa que não ficou muito clara na Constituição de 1891, que condicionou a cidadania ao ter propriedade e ao ser alfabetizado, não ser mendigo, não ser mulher, não ser praça de pré. A igualdade do 13 de Maio era, portanto, uma igualdade relativa. Porém, quem não é igual não pode ser livre. O deputado que agora, no próprio Parlamento, se congratula com os agressores do menino negro, revoga a Lei Áurea, restaura a inferioridade social do cativo e dos filhos e herdeiros do cativeiro. Traz de volta o feitor.
 
O Estado brasileiro, de que o deputado é membro e privilegiado beneficiário, é um Estado omisso, descumpridor das próprias leis que inventa e promulga. A delinquência juvenil é fruto dessa omissão e do desamparo que engendra e alimenta. Mas fruto, também, da pseudocidadania dos atiradores de pedra e dos linchadores, dos que reclamam direitos, omitindo-se quanto aos deveres correspondentes. No próprio caso ocorrido no Flamengo, alguns boyzinhos de 14 que foram presos e já estão soltos declararam que patrulham “o Aterro em busca de potenciais autores de delitos”. O caso do menino deixa claro que os “potenciais autores de delitos” têm cor e raça. O vigilantismo reacionário ergue uma muralha de terror para criar um território fechado e excludente, só deles. Uma pátria particular, impatriótica.
 
O menino foi libertado pelos bombeiros que o socorreram. Tiveram que usar maçarico para cortar o cabo de aço que lhe atava o pescoço ao poste. Foi levado para o hospital. De lá fugiu e foi espontaneamente se apresentar na casa abrigo da prefeitura do Rio. Os agressores louvados pelo deputado não se apresentaram em lugar nenhum. Fugiram. Por aí se vê que ao menos o menino tem recuperação.
Tatiane Correia

Repórter do GGN desde 2019. Graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), MBA em Derivativos e Informações Econômico-Financeiras pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Com passagens pela revista Executivos Financeiros e Agência Dinheiro Vivo.

5 Comentários

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  1. Por que aconteceu isso, profº Martins ?

    Sim, o que não falta hoje, a conturbar o quadro político são os que reclamam direitos, omitindo-se quanto aos deveres correspondentes. Acertou na mosca, o hábil professor; este sim um sociólogo, cuja opinião, raramente temos o privilégio de ouvir. Mas, Martins poderia vincular esse ato escravocrata com a tentativa frustada de Lula, que tentando regatar minimamente a sociedade das agruaras do regime escravocrata, insistiu em nomear um negro para cargo alto do Judiciário, mas errou, e indicou um capitão-do-mato, quando queria indicar um quilombola. Por que aconteceu isso, profº Martins ?

    1. Uma hipótese:

      Seria, grosso modo, porque  os diversos funis para a ascesção sócio-profissional para os negros, e especiaficamente para esta carreira, Direito, supõem, ainda mais que as outras, adesões continuas à causa do opositor para realizar suas promessas ? O Direito é branco ?  ou o Direito é branco e é elitista ?

  2. ESCRAVIDÃO INFINDA

    Esta no desigual,pois continua havendo o cidadão de segunda categoria. Como eliminar isso?

    De imediato,impossivel,pois os governo não investem em educação integral de qualidade,

    como nossos vizinhos da America do Norte(México,Canada e EUA),onde até os 16 anos a educação é gratuita e integral.

    Aqui,investimos fora do país em ditaduras que escravizam seu povo e ficam com seus salarios,

    negociados como mercadorias de troca e quando criticados vem o velho discurso de esquerda burra.

     

  3. O cativeiro está em toda parte

    Prezado Martins que dizer do seu texto? Essencial, imperdível, maravilhoso? Tudo isto, mas principlamente o grito de revolta preso na garganta de todos nós.

  4. Parabéns, professor,

    Parabéns, professor, pesquisar e humanista J. de S. Martins.

    O senhor nos apresenta com seus textos e livros um país cru e um Estado (anti?!!!) democrático falido (?) cujo passado ainda está aí batendo em nossas portas, aos olhos, mas muitos negam ou fazem vista grossa. 

     

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