Nem pastor, nem geneticista

Do iBahia

Nem pastor, nem geneticista: é a cultura caralho!

Leandro Colling

Depois de ser provocado por colegas, resolvi entrar na discussão sobre o “embate” entre o pastor Silas Malafaia e o geneticista Eli Vieira. Desta vez, tudo teve início por causa de uma entrevista de Malafaia à Marília Gabriela, na qual ele defendeu que não existe um componente genético para determinar a homossexualidade e que, por isso, a orientação sexual homossexual seria um comportamento. Esse “raciocínio” é usado pelo pastor para justificar a sua homofobia pois, para ele, se se trata de um comportamento, ele pode e deve ser modificado e/ou curado.

Em resposta, o geneticista produziu um vídeo bem intencionado, no qual apresenta alguns estudos que comprovariam a tese que “existe sim uma contribuição dos genes na orientação sexual homossexual”. Vejam que ele fala em “contribuição” e não em determinação, lembra que o ambiente e a cultura também devem ser levados em consideração, mas ainda assim ele tem o objetivo de defender a genética como uma área com “a verdade” sobre as nossas sexualidades. Sabemos muito bem que isso não vem de hoje, não é? Ou será que é preciso lembrar o que a dita ciência já produziu de “verdades” sobre os homossexuais, negros, judeos e tantos outros “diferentes”?

Imediatamente, dezenas de militantes e pesquisadores (pasmem, inclusive antropólogos!!!) passaram a distribuir o vídeo de Eli Vieira nas redes sociais, a grande maioria deles elogiando os seus argumentos e dizendo que o estudioso teria conseguido destruir todos os argumentos de Malafaia. Pois vou defender posições que diferem tanto do geneticista quanto de Malafaia (sobre os “argumentos” do último já escrevi outros textos aqui no blog – vejam, por exemplo,  Desconstruindo o livro de cabeceira dos fundamentalistas religiosos – emhttp://www.ibahia.com/a/blogs/sexualidade/2012/08/30/desconstruindo-as-ideias-do-livro-de-cabeceira-dos-fundamentalistas-religiosos/).

Inclusive terei que retomar alguns trechos do meu texto anterior porque, especialmente depois do lançamento do livro A estratégia, motivador da produção daquele texto, o discurso e as ações dos fundamentalistas se repetem de forma muito bem organizada. Ou seja, estamos vendo se articular e proliferar uma política anti-homossexuais no Brasil, com a complacência de nossas autoridades.

Mas aqui a proposta é discutir: afinal, existe um componente genético que determina a orientação sexual homossexual? Para o geneticista, ainda que ele, às vezes, relativize um pouco o seu argumento, algumas pesquisas já poderiam apontar que sim, que questões genéticas podem explicar o que torna alguém com orientação sexual homossexual.  Pois eu chamo a atenção para as relativizações que estão na fala do próprio geneticista e, em especial, nos textos sobre as pesquisas que ele mesmo cita.

Um dos textos citados pelo geneticista é Genetic and Environmental Influences on Sexual Orientation (disponível emhttp://genepi.qimr.edu.au/contents/p/staff/NGMHandbookBehGen_Chapter19.pdf.) Esse texto faz uma síntese de dezenas de estudos que tentaram encontrar componentes genéticos para explicar a orientação sexual das pessoas. Segundo os autores, o método mais utilizado foi o de estudo com gêmeos. Sobre essas pesquisas, os próprios autores apontam que é necessário pesquisar mais porque, por exemplo, muitas vezes foram escolhidos apenas gêmeos que viveram juntos ao longo das suas vidas (e os que têm a mesma carga genética e viveram em espaços culturais diferentes?), além das amostras ainda serem discutíveis.

Ao final do texto, eles dizem: “Durante as últimas duas décadas, acumulou-se um crescente corpo de evidências sugerindo que os fatores genéticos e familiares afetam tanto a orientação sexual masculina e feminina. A evidência genética é substancialmente mais forte para o sexo masculino do que para orientação sexual feminina”. Ou seja, além de estarem apenas “sugerindo” e não concluindo de forma determinante, existe aí mais um problema de pesquisa: por que a genética poderia explicar a orientação sexual homossexual dos homens e não a das mulheres?

Ainda sobre as pesquisas com gêmeos, elas apontariam que, quanto mais similaridade genética existir entre eles, se um deles for gay existe maior probabilidade de que o outro também o será. Mas isso não ocorre em 100% dos casos pesquisados e, além disso, qual foi o número de pessoas pesquisadas? Isso permite concluir sobre a orientação sexual tanto dos gêmeos do mundo todo quanto dos não-gêmeos? Uma notícia sobre a pesquisa com gêmeos, que encontrei na internet, também alerta: “Mas a pesquisa não é definitiva, já que outros cientistas observaram que o número de homossexuais participantes no estudo foi baixo, e que os resultados relacionados à orientação sexual estariam distorcidos”. Leiam em http://hypescience.com/novo-estudo-sugere-que-as-pessoas-ja-nascem-gays/

Outra das pesquisas que o geneticista cita foi publicada no texto PET and MRI show differences in cerebral asymmetry and functional connectivity between homo- and heterosexual subjects e pode ser lida no sitehttp://www.pnas.org/content/105/27/9403.full. Os pesquisadores teriam encontrado muita similaridade entre o cérebro de mulheres heterossexuais e de homens homossexuais. Mas sabem quantas pessoas participaram dessa pesquisa? Noventa pessoas, 25 homens heterossexuais, 25 mulheres heterossexuais, 20 homens homossexuais e 20 mulheres homossexuais.

Por causa desse pequeno universo pesquisado, o próprio texto dos autores do estudo diz: “Essas observações nos motivam a realizar pesquisas mais amplas com grupos de estudo maiores e a buscar uma melhor compreensão da neurobiologia à homossexualidade.” Ou seja, os próprios autores do estudo não usam os seus dados para dizer que a genética determina a orientação sexual homossexual, mas que mais estudos precisam ser realizados. Além disso, muitos outros questionamentos podem ser feitos sobre essa tal pesquisa, mas o que eu aponto aqui já basta para o propósito deste texto.

Outra pesquisa, citada apenas vagamente pelo geneticista, apontaria que os homens homossexuais teriam maior capacidade de identificar o cheiro de outros homens. Ora, esse “estudo” chega a ser tolo, risível. Qual é o homem gay adulto que não consegue identificar qual é o cheiro de um homem? Isso se aprende rapidinho! Outra tolice é querer comparar a prática sexual dos animais com a dos humanos. Por favor, sexualidade existe apenas em humanos, que vivem em cultura! Os animais são dominados por instintos!

Enfim, sou obrigado a repetir o que já escrevi no outro texto: “os estudiosos da sexualidade ainda não chegaram a um consenso sobre se existe ou não algum componente genético que interfira ou gere a orientação sexual homossexual. Mas isso jamais pode ser uma razão para defender a patologização, a violência e o ódio para com os LGBT. Os/as estudiosos/as não possuem respostas “genéticas” para a homossexualidade, mas oferecem muitas outras respostas sobre como as pessoas, ao longo de suas vidas, passam a ter determinada orientação sexual e determinada identidade de gênero.

Centenas de estudos, via de regra ignorados pela mídia, apontam que existem diversas orientações sexuais e identidades de gênero com as quais uma pessoa pode vir a se identificar. Nesse processo de identificação não existe apenas um fator ou ator social que influencia as pessoas. Trata-se de um complexo processo de identificação. Portanto, qualquer orientação ou identidade é legítima. A heterossexualidade é tão legítima quanto a homossexualidade, a bissexualidade ou a travestilidade. Todas são formas de vivenciar as múltiplas sexualidades e os gêneros.

Por isso, se a pergunta é qual a causa da homossexualidade, deveríamos nos perguntar também, como já fazia Freud, quais as causas da heterossexualidade. Assim como não existe consenso sobre a existência de um “gene gay”, também não existe um “gene heterossexual” e nem por isso os heterossexuais devem deixar de ser respeitados.”

Teria muitas outras coisas para comentar, mas não posso deixar de destacar algumas:

  1. Essa entrevista do Malafaia com Marília Gabriela e o vídeo do geneticista encobrem uma outra questão fundamental: por que a sociedade e os ditos cientistas querem tanto saber sobre o origem da homossexualidade e não querem saber da origem da heterossexualidade? Qual são os objetivos dessas pesquisas que tentam encontrar um gene gay? Para curar a homossexualidade? Se, por acaso, a ciência chegar a encontrar os componentes genéticos que geram a orientação sexual homossexual, com esse movimento fundamentalista que avança no Brasil e no mundo, vocês têm dúvida de que eles não financiariam a possibilidade de que homossexuais não pudessem mais ser gerados? Então, alô militantes LGBT, vejam que grande tiro no pé, hipoteticamente, vocês podem estar cometendo ao se filiar a esses argumentos!
  2. O que nós precisamos é de argumentos que se diferenciam dos fundamentalistas e não que eles nos pautem em suas falas que apenas produzem ódio. No fundo, tanto Malafaia quanto o geneticista querem defender que existe um padrão de “normalidade” sobre as orientações sexuais. Malafaia diz que a heterossexualidade é normal e o geneticista diz que a homossexualidade também é normal, uma vez possui algum componente genético. Enquanto isso, nós temos evidências suficientes para mostrar o quanto a sociedade em geral, e os fundamentalistas em particular, defendem com unhas e dentes uma “pedagogia da heterossexualidade”, como diz a nossa querida Guacira Lopes Louro em seus textos. Escrevi sobre isso em Por que a heterossexualidade não é natural?, disponível emhttp://www.ibahia.com/a/blogs/sexualidade/2012/07/18/por-que-a-heterossexualidade-nao-e-natural/
  3. Além disso, esse “debate” joga novamente para o escanteio toda a discussão sobre a produção das identidades. Até quando vamos reduzir a sexualidade, seja ela a homossexualidade ou a heterossexualidade, à prática sexual entre as pessoas e/ou à “biologia”? Nós sabemos muito bem que a prática sexual é uma questão importante (para os fundamentalistas apenas se for para a reprodução), mas que as nossas sexualidades e nossos gêneros são compostos por diversos outros fatores. A imensidão e riqueza desses outros fatores ficam obscurecidos nesses debates que envolvem as chamadas “ciências duras”, como a genética e a neurociência. O que precisamos é discutir Direitos Humanos, porque determinadas pessoas têm mais direitos e outras não. Por que determinadas pessoas são mais respeitadas, podem continuar vivendo, e outras podem continuar sendo assassinadas aos milhares a cada ano por causa das suas orientações sexuais e identidades de gênero dissidentes?

Para finalizar: não tenho dúvidas de que os estudos da cultura e das humanidades (em sentido bem amplo, incluindo as subjetividades, a sociologia, a antropologia etc) são muito mais ricos em nos oferecer respostas sobre as nossas sexualidades, sejam elas dissidentes ou não, e de como devemos trabalhar para que todos e todas sejam respeitados e respeitadas.

E mais, a procura de uma resposta sobre a origem dos nossos desejos não pode jamais impedir o que mais importa: que todos possamos desejar de formas múltiplas, diversas, com o respeito que merecemos.

Como disse o nosso querido Edward MacRae, em um dos seus textos antigos que republicamos no livro que organizei pela Editora Federal da Bahia, chamado Stonewall 40 + o que no Brasil? (aliás outro livro solenemente ignorado pela mídia e grande parte da militância LGBT, disponível na íntegra emhttps://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/2260/3/Stonewall%2040_cult9_RI.pdf), fazendo referência a Oscar Wilde: “A naturalidade é uma pose tão difícil de se manter”.

Um close para Malafaia, sem perdão.

Luis Nassif

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