Os perigos de transformar a Bíblia em código civil

Do iG

Carlos Tufvesson: “Transformar a Bíblia em código civil é perigoso”

Estilista, gay assumido e responsável pela Coordenadoria da Diversidade Sexual no Rio de Janeiro fala sobre crimes de ódio, saudade das passarelas e direitos civis dos homossexuais

Filho de estilista, o carioca  Carlos Tufvesson nasceu em um estúdio de costura. Cresceu no meio da moda, fez carreira de sucesso com a grife que levava seu nome, desfilou nas principais semanas de moda nacionais, mas um belo dia fechou o seu ateliê para atender a um outro chamado: defender os direitos humanos, mais especificamente os dos homossexuais.

Faz dois anos e quatro meses, desde a criação do órgão, que ele assumiu a Coordenadoria da Diversidade Sexual no Rio de Janeiro. Reconhece que já fez muito – organizou campanhas contra o preconceito, assinou decretos a favor dos direitos civis e humanos e se tornou exemplo de conduta para outros municípios que queiram montar projetos similares ao da prefeitura carioca -, mas sabe que ainda há muito a ser feito.

“Estou preocupado com o aumento de crimes de ódio contra os homossexuais. Quando é divulgado um dado que indica que morre um homossexual a cada 23 horas, há pessoas que minimizam estes crimes dizendo coisas como: ‘Ao mesmo tempo em que morre um homossexual, morrem não sei quantos héteros.’ Essa não é a questão. Os homossexuais morrem por crimes de ódio, pelo fato exclusivo de serem homossexuais. Crimes assim são condenados pela ONU e por todos os tribunais internacionais”, desabafa.

Quando é divulgado um dado que indica que morre um homossexual a cada 23 horas, há pessoas que dizem: ‘Ao mesmo tempo em que morre um homossexual, morrem não sei quantos héteros.’ Essa não é a questão. Os homossexuais morrem por crimes de ódio, pelo fato exclusivo de serem homossexuais.”

A Coordenadoria da Diversidade Sexual foi criada em janeiro de 2011 pela prefeitura do Rio de Janeiro, sob comando do prefeito Eduardo Paes. “Quando o Paes me chamou para assumir este cargo, quase enfartei. Era uma luta minha que o Estado tivesse uma coordenadoria, mas nunca imaginei assumi-la. Pensei em ficar alguns meses e depois entregá-la para alguém. Mas quando vi que em poucos meses tínhamos realizado tanto, percebi que estava fazendo direito. Não podia abrir mão de salvar a vida de muitas pessoas.”

Na Coordenadoria, Tufvesson colocou em prática planos pelos quais já lutava havia 17 anos como ativista da causa gay. “Entrei na militância por não aceitar o fato de ter 112 direitos negados por não me chamar Carla, e sim Carlos”, disse ele em entrevista antiga. Agora,  campanhas e decretos depois, ele pode dizer que o número foi reduzido para 80. “Mas temos que zerá-lo”, diz ele agora.

“IA FALAR O QUÊ? QUE É MEU ETERNO AMIGO?”

Casado há 17 anos com o arquiteto André Piva , Tufvesson afirma que falar abertamente sobre sua sexualidade nunca foi uma escolha política. “Ia falar o quê? Que é meu eterno amigo? Não vou pagar esse mico. E acho que seria um desrespeito com meu relacionamento. Não poderia esconder a não ser que fosse algo errado. Não vejo nenhum problema no amor.”

AgNews/Alex Palarea e Roberto Filho

Tufvesson beija o marido, o arquiteto André Piva, durante o lançamento da campanha “Rio Sem Preconceito”, em maio deste ano

O casal realizou uma cerimônia em 2011, no Museu de Arte Moderna no Rio, para celebrar a união. No entanto, na ocasião, a Justiça negou o direito ao casamento civil. “Sou casado, manifestado publicamente. Não de direito porque o juiz me proibiu. Mas quero muito que isso aconteça. Ninguém quer casar por uma questão de status, muito menos para colocar véu. Quero que, se eu for atropelado, meu marido possa ficar comigo no quarto. Hoje, ele só poderia me ver no horário de visita”.

Ninguém quer casar por uma questão de status, muito menos para colocar véu. Quero que, se eu for atropelado, meu marido possa ficar comigo no quarto. Hoje, ele só poderia me ver no horário de visita.”

Positivo, mas não obrigatório. É assim que Tufvesson vê esse boom de revelações sobre a sexualidade entre os famosos, como Daniela Mercury e Jodie Foster. “Acho importante, mas não posso cobrar de ninguém que se assuma enquanto vivermos em uma sociedade em que homossexuais são mortos e as pessoas são preconceituosas a ponto de prejudicar a vida profissional. Por exemplo, se um ator se assumir, ele perde papéis importantes. Teve o caso de um atleta que foi fotografado na The Week (boate gay carioca) e, no dia seguinte, perdeu o contrato com uma grande multinacional. É triste”.

Isabela Kassow

Carreira politica?: “Não! Não quero. Cada pessoa tem uma vocação e eu me encontrei no executivo”

Até o dia 17 de maio de 1990, a homossexualidade era catalogada como doença pela Organização Mundial da Saúde. A partir de 2004, a data em que a homossexualidade saiu da lista de patologias foi escolhida por movimentos de defesa aos direitos LGBTs como marco simbólico para ações de combate à homofobia em mais de 70 países.

E foi exatamente nesta data, 21 anos depois, que Carlos Tufvesson decidiu exercer publicamente sua vocação para desenvolver ações de inclusão e proteção à cidadania daqueles que, por conta de sua orientação sexual, expressão ou identidade de gênero, vêem seus direitos e garantias fundamentais violados.

Com tanta paixão pela causa, muitas pessoas incentivam Tufvesson a seguir uma carreira politica. “É bom que você me pergunte isso, para eu responder de uma vez por todas: Não! Não quero. Cada pessoa tem uma vocação e eu me encontrei no executivo. Quando saí da Coordenadoria para ser candidato a vereador, em 2012, fui de uma infelicidade profunda. Não sou eu”.

LIBERDADE RELIGIOSA VERSUS DIREITOS CIVIS

Tufvesson bate forte nos políticos que se posicionam publicamente intolerantes aos homossexuais, que falam em “cura gay” e quetais. “Não tem como dissociar o aumento da violência das manifestações desses parlamentares. Cada vez que uma pessoa pública ou  alguém que se proclama líder religioso prega o ódio, imediatamente temos um assassinato. Estou assustado com o tanto que a intolerância e o fundamentalismo religioso estão influenciando as decisões de políticas públicas no nosso país.”

Veja vídeo de Carlos Tufvesson na campanha “Rio Sem Preconceito” 2013

Para ele, há confusão na separação entre o Estado e a Igreja. “Algumas pessoas estão usando a liberdade religiosa como forma de incitar o ódio contra as minorias. Querem pegar algo que existe na Bíblia, que foi escrita há dois mil anos, e transformar em código civil. Isso é triste e perigoso. Se for assim, ninguém poderia comer carne de porco, porque a religião judaica não permite. Nós teríamos que nos ajoelhar para Meca, ao meio dia, por lei. Alguns se sentem em uma casta superior apenas pela sua religião e acham que seus modos devem ser impostos em toda a sociedade. Esta foi a razão de todas as guerras da história. Desde as Cruzadas ate o Nazismo”, explica o estilista.

Tufvesson acredita que este pensamento é uma falta de respeito com a própria Bíblia. “Parece que eles estão sofismando com o livro sagrado. Não se pode fazer isso. Tem de ter respeito, como eu tenho. Minha avó era filha de Maria, zeladora do Sagrado Coração de Jesus e me deu uma medalha que foi dada por Madre Teresa de Calcutá. Para discutir religião, tem de entender, estudar e respeitar.”

SAUDADE DA PASSARELA

A incursão na política pública não fez Tufvesson esquecer completamente da linha e da tesoura. Afinal, a moda está no sangue. Filho de Glorinha Pires Rebello , que nos anos 80 comandou a marca Maison D´Elas, ele estudou moda na Itália, nos anos 90 entrou para a alta costura, nos 2000 lançou sua primeira coleção de prêt-a-porter e desfilou até 2010 nas principais semanas de moda brasileiras. “A moda é minha vida. Entro no Fashion Rio e me emociono. Sinto o cheiro da passarela e me bate saudade. Mas estou tendo essa oportunidade no governo, e estou muito feliz. Trabalho muito mais, é desgastante. Mas estou salvando vidas”, diz.

A moda é minha vida. Sinto o cheiro da passarela e me bate saudade. Mas estou tendo essa oportunidade no governo, e estou muito feliz. Trabalho muito mais, é desgastante. Mas estou salvando vidas.”

Tufvesson tem o sonho de unir as duas paixões: “Queria muito fazer um Desfile Sem Preconceito, onde eu juntaria minha paixão pela moda e o trabalho da coordenadoria. Estou planejando fazer algo nesse sentido, mas ainda não posso falar o que será”, desconversa ele, que ainda tem planos de fazer uma nova campanha de prevenção à Aids e organizar o Prêmio Rio Sem Preconceito para homenagear as pessoas que ajudam a causa.

Veja vídeo de Cissa Guimarães na campanha “Rio Sem Preconceito” 2013

 

Para ele, a campanha Rio Sem Preconceito, que idealizou e para a qual fez comerciais e shows, com adesão de artistas como Caetano Veloso , Preta Gil e Ney Matogrosso , é algo que devia ser feito em nível nacional. “Acho importante ter um Brasil Sem Preconceito. Mas, enquanto isto, toda coordenadoria que quiser pode baixar o programa no site e apenas mudar o nome da cidade. Se um dia sairmos daqui, sei que fizemos o trabalho da melhor forma e torço para que continuem dedicando ao projeto tanta paixão e amor quanto eu dedico.”

Veja vídeo de Dira Paes na campanha “Rio Sem Preconceito” 2013

Luis Nassif

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