Projeto do governo para atrair médicos gera críticas que atiram para todos os lados

Jornal GGN – As críticas da classe médica e de entidades do setor ao programa Mais Médicos, do governo federal, são tantas, que chegam a divergir. Para o Congresso, que fez 548 emendas ao projeto, e para os profissionais brasileiros, um dos pontos mais polêmicos é a possibilidade de se importar profissionais formados no exterior sem a necessidade de revalidação do diploma, desde que aceitem trabalhar em regiões onde há carência desses profissionais. O outro é a obrigatoriedade de os estudantes de medicina que começarem o curso a partir de 2015 terem de trabalhar dois anos no SUS para conseguir o diploma. Há consenso quanto à percepção de que a população brasileira necessita de melhor qualidade no serviço de saúde. Até aí, eles se entendem. Mas quando o assunto são as estratégias de como chegar lá, as opiniões são tão divergentes que lembram a escalação da seleção pela torcida nacional. 

Em relação à retirada da avaliação – o Revalida (Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos) – para atuação de médicos estrangeiros no Brasil, o Ministério da Saúde argumenta que o exame daria aos médicos imigrantes permissão para atuar em qualquer parte do país – podendo, inclusive, escolher entre o setor público e o privado –, o que significaria mais concorrência para os brasileiros. Para o Ministério da Saúde, ao estipular essa regra para o preenchimento de vagas, o governo condicionaria os profissionais estrangeiros a ocupar aquelas que estão ociosas em regiões carentes.

Na visão da estudante do quarto ano de medicina da USP (Universidade de São Paulo), Ana Carolina Aguiar Kuhne, é importante que quem que se dispuser a trabalhar no território brasileiro conheça as peculiaridades de cada região, o que só pode ser avaliado no Revalida. “É importante que o profissional esteja apto a atuar no Brasil, e esse exame atesta isso”, explica.

Ana Maria Costa, presidente do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), diz que a medida é favorável, com ressalvas. “Existe uma emergência crônica no Brasil, a falta de profissionais de saúde, que nunca tinha sido assumida com a coragem que o governo assumiu”. E sugere que “essa medida não deveria valer somente para médicos, mas deveria ser estendida a outros profissionais da saúde”. Ana Maria salienta que a estratégia do governo de contratar por meio de bolsas federais é perigosa por diversas razões, como o caráter de emergência na fragilidade do SUS (Sistema Único de Saúde) e o financiamento crônico dos estados e municípios. “Esse sistema de contratação centralizada corre o risco de criar falsas demandas”, alerta. Ana Maria lembra que já houve denúncias de que os médicos do município se demitiam para se candidatar ao programa federal. “O governo tem que tomar atitude para que esse tipo de situação não ocorra”.

Já para Roberto d’Ávila, presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), o problema é outro: a retirada do exame de revalidação do diploma para os médicos imigrantes é um equívoco do governo. “O que o povo clamou nas ruas foi por qualidade, assistência padrão Fifa, hospitais padrão Fifa e, é claro, que devem querer não só médicos, mas profissionais da saúde no padrão Fifa, e isso passa por uma avaliação de competência”, critica. “Se o próprio governo tem medo de submeter esses médicos estrangeiros ao Revalida é porque sabe que esses médicos não têm a qualidade de que os brasileiros necessitam.”

Embora tenha feito ressalvas às medidas do governo, Ana Maria explica que o país não conta com a quantidade necessária de profissionais para atender à elevada demanda da população. “Nossa formação é mais direcionada ao mercado privado e não ao SUS. O remédio é importar, e essa medida já foi adotada em muitos países”, comenta. Ao comentar  a decisão do governo de só importar médicos de países com índice de médicos para cada grupo de mil habitantes superior ao brasileiro, a presidente do Cebes diz que a decisão “não aprofundará a desigualdade de outros países”.

Falta de infraestrutura

A presidente do Cebes afirma que, apesar dos elogios feitos ao programa Mais Médicos, não se deve deixar de propor medidas que melhorem a estrutura dos SUS. “Precisamos de salários definitivos para os profissionais da atenção básica pública, compromisso com a gestão do SUS e compromisso dos estados com relação à saúde para o desenvolvimento nacional”, aponta, reconhecendo que “esse ainda não é caminho para a cura total do sistema”.Para ela, é preciso melhorar as condições de trabalho, pois médico sem equipe, por exemplo, só na consulta. “O governo precisa correr atrás para ampliar a infraestrutura que temos hoje. Estamos na época de resolver o que é intolerável no sistema de saúde; é preciso que haja mudança nesse panorama”, salienta. Ana Maria explica que desde o início do governo Collor os recursos destinados à saúde são insuficientes. “Esse é um problema de 25 anos de governo. Os recursos precisam ser investidos no povo, que é o grande patrimônio do Brasil”.

Para o presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), a medida não irá resolver a escassez de médicos nos confins do país. “O que falta para o Brasil são ações estruturantes de fixação de médicos no interior e de investimentos em saúde pública”, ressalta. Para ele, o governo perdeu uma grande oportunidade “de anunciar os 10% do PIB para a saúde e uma carreira de estado (para os profissionais da saúde)”, disse. “As medidas anunciadas foram paliativas, midiáticas e eleitoreiras”, vaticina.

A reivindicação por uma carreira de estado pelo Conselho prevê mobilidade – atuação de profissionais em regiões do interior por tempo determinado – boas condições de trabalho, remuneração adequada e educação continuada. Eles utilizam como exemplo a carreira de juiz que é condicionada a permanecer em um local por tempo determinado. Entretanto, ainda não há  um formato definitivo do conselho criado nesse sentido.
 

O SUSto

Outra medida instituída pelo Mais Médicos é que os estudantes de medicina de faculdades públicas e privadas terão que atender, durante dois anos, pacientes nos serviços de urgência e de emergência em hospitais públicos e postos de saúde para obter o diploma. A exigência valerá só para quem ingressar nos cursos a partir de 2015. Hoje, após seis anos de estudos, os médicos se formam como clínicos gerais e podem fazer, no mínimo, mais dois anos de residência. Com a mudança, a duração do curso sobe para oito anos. Os dois anos a mais valerão como residência em Atenção Básica. Nesse período, os alunos vão receber bolsa-auxílio do governo.

A medida foi criticada pelas entidades médicas. O CFM, por exemplo, disse que vai recorrer à Justiça contra o que classificou de “exploração da mão de obra”.  “O posicionamento de trabalhar de graça, para nós, é uma violência porque países sérios dão infraestrutura e carreira; já países autoritários obrigam a trabalhar de graça, e é lamentável que nós tenhamos que passar por essa situação”, reclama d’Ávila. “Vamos trabalhar para tentar derrubar a Medida Provisória no Congresso e, em último caso, no Judiciário. Nós já estamos com o nosso jurídico trabalhando para levantar quais são as ilegalidades e inconstitucionalidades, e esperamos que o Congresso saiba corrigir esses erros.” Já para a estudante Ana Carolina, a medida precisa ser observada com cautela porque, ao mesmo tempo em que o profissional terá as responsabilidades de um médico, não será reconhecido como tal pela falta do registro até o fim dos dois anos de atendimento.

Diagnósticos

Em uma entrevista recente ao jornal O Estado de São Paulo, o cardiologista Adib Jatene disse que o que se espera de um médico é que saiba diagnosticar sem precisar de tecnologia. Sobre essa opinião do médico, a presidente do Cebes, diz que isso implicaria formar médicos de verdade, que saibam ouvir, diagnosticar, informar, para resolver, de fato, o problema das pessoas. “Existe, ai, também, um paradigma cultural que deve ser quebrado, no qual a própria população acredita, que o bom médico é aquele que chega e pede uma enxurrada de exames”, analisa. E observa que esse parâmetro é um grande equívoco, “isso distrai o sentido da própria medicina. O exame ajuda, claro, mas existe o abuso de determinadas práticas”.

Ela aponta que mais de 90% dos exames são negativos, ou seja, poderiam ser diagnosticados de outras formas. “Antes de ser um médico que use tecnologia, esse médico deve saber quando pedir, e fazê-lo da forma mais racional possível”, adverte. “Uma boa conversa e um exame físico poderiam solucionar muitos diagnósticos. Precisamos de profissionais capazes de escutar e associar os exames, realizando um bom diagnóstico.”

Ao fazer uma avaliação do semestre que cursa, Ana Carolina aponta que os professores de seu curso a ensinam a valorizar 90% o histórico do paciente, e os outros 10%, nos exames que servirão para confirmar os diagnósticos.

Para a presidente do Cebes, existem vários motivos que levam o médico a não escolher o interior como lugar para viver, e a maioria deles passa pela questão da qualidade de vida. “Nesse sentido, existem vários fatores que desestimulam o profissional. O país sempre voltou as costas para o interior. As grandes cidades sempre foram onde acontecem as coisas”, aponta. “Os programas que existem voltados à interiorização têm pouco sucesso quando estimulam o visitante a criar vínculos afetivos com as cidades no interior”, ressalta. Ana Maria acrescenta que também é importante pensar no ensino de medicina em cidades pequenas, o que possibilitaria um estilo de vida diferente ao das grandes cidades.

O programa

Com o objetivo de atender à demanda crescente de médicos principalmente no interior do país e de melhorar a qualidade dos serviços de saúde oferecidos à população, o governo federal lançou em 8 de julho o programa Mais Médicos, para  ampliar a quantidade de profissionais em regiões carentes. A iniciativa foi assinada como Medida Provisória pela presidente Dilma Rousseff e regulamentada por portaria conjunta dos ministérios da Saúde e da Educação. O programa prevê bolsa federal de R$ 10 mil a médicos que atuarão na atenção básica da rede pública de saúde, sob a supervisão de universidades.

Como estratégia montada para selecionar e levar os médicos para essas regiões, serão lançados três editais: um para atração de médicos; outro para adesão dos municípios que desejam recebê-los; e um terceiro para selecionar as instituições supervisoras. Só poderão participar estrangeiros que tenham se formado em faculdades de Medicina com tempo de formação equivalente ao das universidades brasileiras, que tenham sólidos conhecimentos em Língua Portuguesa, autorização para livre exercício da Medicina em seu país de origem e que venham de países onde a proporção de médicos para cada mil habitantes seja superior à brasileira, que, atualmente é de 1,8 médico/mil.

Segundo o Ministério da Saúde, o programa não tem o objetivo de privilegiar médicos de outros países. As vagas só serão preenchidas por estrangeiros, caso não haja brasileiros que se disponham a ocupá-las. Àqueles que aceitarem, a prioridade será para os que fizeram faculdade no exterior.

Visando o aperfeiçoamento e o amadurecimento do programa Mais Médicos, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, anunciou na terça-feira (16 de julho) a criação de uma comissão formada por 11 diretores de faculdades federais de medicina e coordenadores de cursos.

Atuação Estrangeira

Para que os profissionais estrangeiros comecem a atuar em território brasileiro professores, universitários irão analisar a qualidade de sua formação profissional. Assim que chegarem ao Brasil, os médicos de fora terão de participar de um módulo especial de treinamento e avaliação, com duração de três semanas, em uma universidade pública federal participante do programa. Se for aprovado, o profissional estará apto a começar a trabalhar em um dos municípios designados pelo programa.

Por um período de três anos, os médicos do programa vão atuar exclusivamente na chamada Atenção Básica – atenção essencial à saúde baseada em tecnologia e métodos práticos – e apenas nos postos de saúde a que forem designados. Durante esse período, contarão com supervisão de médicos brasileiros e orientação de instituições públicas de ensino e terão de cumprir uma jornada de trabalho de 40 horas semanais. A manutenção do visto e do registro temporário dependem do cumprimento dessas regras. Todos os profissionais vindos de outros países cursarão especialização em Atenção Básica e serão acompanhados por uma instituição de ensino.

Pacto pela Saúde

Lançado pela presidente Dilma em reunião com governadores e prefeitos de capitais em 24 de junho, o Pacto pela Saúde prevê a expansão e a aceleração de investimentos por mais e melhores hospitais e unidades de saúde, e por mais médicos, totalizando R$ 15 bilhões até 2014. Deste montante, R$ 7,4 bilhões já estão contratados para construção, reforma e ampliação de 818 hospitais, 601 Unidades de Pronto Atendimento (UPAs 24h) e de 15.977 unidades básicas. Os outros R$ 5,5 bilhões serão usados na construção, reforma e ampliação de unidades básicas e UPAs, além de R$ 2 bilhões para 14 hospitais universitários. 

Redação

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