“Racismo não se supera apenas com a educação”

O texto abaixo é produto da minha exposição no Seminário “Negro Plural”, organizado pelo Instituto Luiz Gama e a CUT (Central Única dos Trabalhadores) em 29 de novembro, no SESC/Vila Mariana. O tema da mesa era racismo e educação com foco na lei 10639 e as cotas raciais nas universidades.

Dennis Oliveira*

Há uma tendência forte no movimento anti-racista de considerar que a superação do racismo se dá pela educação. Não é a toa que duas bandeiras fortes do movimento atual referem-se á educação: a Lei 10639 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação ao instituir a temática da história da África e da cultura afrobrasileira nos conteúdos curriculares do ensino básico e a implementação das cotas raciais nos processos seletivos das universidades públicas.

Eu procuro entender o problema do racismo pelo viés do marxismo. Uma das ideias mais interessantes do pensamento marxista é que os homens estabelecem relações concretas uns com os outros com base na produção material. O racismo no Brasil origina-se do fato do capitalismo por aqui ter se construído com base na acumulação primitiva de riquezas obtida pelo modo de produção chamado pelo pensador Jacob Gorender, de escravismo colonial. O “escravismo colonial” foi muito bem conceituado por Gorender – ele sustentou o mercantilismo na Europa durante muito tempo, possibilitou em certo momento, recursos para inversão em modos de produção mais avançados e, após a proibição do tráfico de escravos em 1850 (lei Eusébio de Queiroz), os recursos que eram destinados ao tráfico foram direcionados para investimentos em sistemas produtivos, possibilitando aí, a transição negociada do escravismo colonial para o capitalismo.

Reforço esta ideia da “transição” – não houve ruptura com a ordem anterior e sim uma transição. A classe dominante brasileira é descendente dos escravocratas. Por isto, elementos construídos nas relações sociais do escravismo se transfiguram para o capitalismo. A “tolerância opressiva” de que fala Darcy Ribeiro – tolerar o outro para poder oprimi-lo – serviu como mecanismo legitimador da escravização e, atualmente, para a superexploração da mão de obra assalariada. Negros são tolerados desde que em seu “devido lugar”.

Por isto, o racismo no Brasil se manifesta em construção de lugares permitidos para brancos e negros. A escola, como instituição social, se manifesta como um espaço em que estas ideias se reproduzem. O sociólogo Pierre Bourdieu elaborou o conceito de “capital cultural” para definir as competências e habilidades exigidas e universalizadas pela instituição escola como mecanismos de violência simbólica, a medida que exige um “enquadramento” daqueles que desejam ser bem sucedidos neste espaço.

É com base nestas referências que entendo que a luta pela lei 10639 e pelas cotas são instrumentos que explicitam conflitos dentro da instituição educacional. A resistência à implementação ou mesmo a distorção dos mesmos se dá não por uma “deformação” ou “incompreensão” dos agentes envolvidos na instituição, mas sim porque uma concepção mais radical dos significados destas normas implica em questionar os sistemas de “violência simbólica” inseridos na instituição escolar.

É importante lembrar que a lei 10639 altera a LDB, portanto os conteúdos ali previstos não são “periféricos” mas tem o mesmo status de qualquer outro conteúdo obrigatório do currículo, como Português ou Matemática. E também que ele é obrigatório para todas as escolas do ensino básico, mesmo aquelas em que não há negros ou que atenda uma elite branca. Qual a importância desta reflexão? É que ela aponta que os conteúdos de História da África e cultura afrobrasileira passam a integrar o conjunto de competências e habilidades exigidas na instituição escolar, reposicionando a figura do africano e do afrodescendente da periferia para o centro simbólico.

No caso das cotas nas universidades, a presença de mais e mais negros e negras nas universidades conflita com as imagens estabelecidas de que os lugares negros são os subalternos – as periferias, os trabalhos precarizados, a exclusão. Transformando um espaço “monocromático” em “multicolorido”, conflita com as imagens simbólicas de lugares consolidados de negros e brancos.

Ora, a medida que se reposiciona estes lugares simbólicos de negros, há um deslocamento também da posição do que é ser branco. O ser branco se consolida como o lugar da “universalização” da condição humana (por isto, muitos brancos não se assumem como “grupo étnico” e se definem como “humanos”, “mestiços”, “misturados” e outras definições que apagam a ideia de ocuparem um lugar hegemônico construído pela subalternização de outro). A condição social do ser branco se configura a partir de “privilégios adquiridos racialmente” – como, por exemplo, contar sempre com a possibilidade de existir uma mulher negra pobre para ser explorada como trabalhadora doméstica ou ainda ser escolhido em uma seleção visual de trabalho em que concorre com uma pessoa negra – que se transfigura em um leque maior de oportunidades. A medida que a luta contra o racismo avança em todos os sentidos, estes privilégios vão sendo questionados e, por isto, a gritaria começa desmontando todo o discurso do mito da democracia racial brasileira.

Diante disto, o racismo não se resolve meramente com a educação, até porque a escola, como instituição social o reproduz. A luta pelas cotas e pela lei 10639 tem uma função importante de abrir frentes de embate dentro da instituição escolar, porém sem criar a ilusão de que a mera implantação resolverá o problema das relações étnicas no Brasil.

A escola é um espaço de conflitos – demonstrado, nitidamente, quando se ouve um professor da USP afirmar, em uma reunião, que “a implantação das cotas poderia aumentar a violência no campus.”

*Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e do Programa de Pós Graduação de Direitos Humanos da USP. Coordena o CELACC (Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação). Membro do Neinb (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro) e do Alterjor (Grupo de Pesquisa de Jornalismo Popular e Alternativo).

Compartilhado por Sandrah Guarai-Kaiowá.

Racismo não se supera apenas com a educação

Redação

3 Comentários

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  1. Lógico que não.
    Esta apenas é

    Lógico que não.

    Esta apenas é a forma mais eficaz.

     

    Depois, as universidades devem ser LIVRES para escolher seus métodos de acesso.

    É obvio que qualquer lei é um atentado a auto regulação das universidades.

    A independência das universidades da classe política é uma vitória da sociedade. Isso não deve ser jogado no lixo por esta ou aquela bandeira.

     

    Se o movimento precisa de Lei, é porque PERDEU!

    Eu faço votos de que O Movmento coloque gente mais competente para trabalhar. E  sim, vai ter que discutir com cada universidade o acesso. O nome disso é trabalho!

  2. RACISMO e capitalismo

               STEVE BIKO o jovem líder sulafricano assassinado em 1974 pela polícia do Aphartheid deixou consignado que “racismo e capitalismo” eram as duas faces da mesma moeda. Tal afirmação me anima a comentar o bom artigo do amigo prof. Dennis. Desde 1962, o inspirador de Biko, Nelson Mandela já cumpria a prisão perpétua do regime racista e continuou nos cárceres sulafricanos até 1991 e em discurso já como Presidente da República pós-aphartheid disse: “Ninguém nasce odiando o outro pela cor da pele. Eles foram ensinados pelo estado a odiar. Se aprenderam, são humanos. Nós podemos ensinar a amar.”

               A análise de Dennis trilha próximo dessas duas visões contemporâneas. A nossa visão do combate ao racismo e de ativistas anti-racistas coincide em grande parte. E a formulação de respostas também, exceto na questão da exemplaridade racial admitida por Dennis e que serve de fundamento aos defensores da equivocada políticas de cotas raciais estatais.

              De fato partimos da constatação que diferentemente dos EUA, Alemanha ou África do Sul onde nos anos 1900 o racismo se estabeleceu via estado com base nos conceitos da classificação racial dos humanos pela origem racial: o estado legitimou a classificação racial do séuclo 18 e 19 com adesão à ideologia do racismo.

            No Brasil, dizem todos os grandes estudiosos – Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Oracy Nogueira, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique e seu mestre Florestan, todos são unânimes: a base da exclusão de viés racista não se deu por uma profunda crença na classificação racial dos brasileiros cuja história nos impôs uma relativa tolerância com a miscigenação decorrente do encontro de três povos: nativos, brancos e africanos. O racismo e discriminações no Brasil se deu e continua sendo reproduzido pela exploração econômica e divisão do trabalho em que o emprego do escravo foi o mais intenso, mais duradouro e mais institucional que em qualquer outro local do mundo. Já nos anos 1960, com  ´Raça & Classe´, o saudoso professor Florestan já nos ensinava e demonstrava isso. O ex-escravo passou a ser a composição perene de um exército de reserva ameaçando aos demais trabalhadores, ocupando os postos de menor expressão, o trabalho mais árduo, os serviços sazonais e precários. Ocupavam as terras ´de pretos´ nas franjas da ocupação territorial. Viviam da economia de subsistência e moradias precárias. Sobreviviam. Ainda hoje, sobrevivem precarizados. Ainda não foram integralmente incorporados à ordem social e econômica do Brasil.

            Feita tal constatação histórica não se compreende no Brasil a incessante busca por lideranças raciais. As foundacion´s norte americanas tem investido centenas de milhões de dólares dentro dessa lógica de desenvolvimento separado – em razão de um perverso direito racial – e visou formar uma elite acadêmica, políticas, gestores públicos, ONGs que sustentam essa bandeira que é incompatível com a índole dos brasileiros: não temos pertencimentos raciais constata reiteradamente as pesquisas do IBGE e das universidades.

           Portanto, o que precisamos a edificação e consolidação de movimentos de promoção de direitos sociais, econômicos e direitos humanos que foram sempre negligenciados e os mais desfavorecidos foram os pretos e pardos, historicamente. E essa negligência ao contrário do que dizem as Foundacions e seus papers viciados, não se deu em razão da ´raça´, se deu em razão da história do escravismo intensivo. A superação da flagrante desigualdade entre brancos, pretos e pardos merece um tratamento especial do estado, porém, esse tratamento se dará no ambiente social e não em ambiente de embates raciais.

                “Os afro-brasileiros não eram excluidos em razão da origem racial” dizia Florestan. Eram discriminados e deixados para tráz por serem os descendentes de escravos que deixavam de ser peça indispensável do mercantilismo do século 19 para serem substituidos por massas de trabalhadores imigrantes aptos para a exploração do capitalismo do século 20. E essa substituição não recebeu do estado brasileiro nenhuma consideração quanto à humanidade de quem estava sendo deixado para trás. Nenhuma política pública foi pensada para que aquela imensa parcela – cerca de metade da população em 1900 – deixada sem casa, sem trabalho, sem terras e então, sem acesso aos novos postos de trabalho que foram reservados aos novos imigrantes que viriam substituir o sistema de produção capitalista.

               A primeira grande política pública de ação afirmativa favorável a essa parcela de brasileiros tem sido o programa Bolsa Família em que 80% dos beneficiários são pretos e pardos – cuja foto de Capa da VEJA em 2010 – apontava como sendo o elemento decisivo da eleição presidencial. O programa BF retirou 40 milhões da miséria, significa 32 milhões de pretos e pardos vivendo com um mínimo de dignidade. Sem dúvida o maior programa de Ação Afirtmativa jamais visto em qualquer outra época ou país.

               Há apenas uma pequena discordância com relação ao futuro e na forma de combate as discriminações raciais que precisam ser enfrentadas e combatidas: o combate às discriminações raciais, ou qualquer outra sexista, machista, homofóbica, passa passa também pela pedagogia estatal. Mas não pode se sustentar numa odiosa acolhida de direitos raciais como tem sido as políticas públicas de cotas raciais estatais. Dennys admite a exemplaridade racial como instrumento anti-racista e disso discordo radicalmente.

             E essa pedagogia estatal – aquela que destrói e se impõe a todas as outras pedagogias – segundo Montesquieu, não pode ser instrumento de legitimação de crenças raciais. Por isso, que as políticas públicas de segregação de direitos raciais – cotas raciais – tem sido um equívoco lamentável que produzirá efeitos colaterais não desejados. 

             O estado deve fazer um grande esforço com programas dentro da doutrina de Ações Afirmativas. E o programa social do BF que inclui, dignifica, mantém as crianças na escola e dá acesso a novas oportunidades aos jovens que forem concluindo o ensino fundamental e não precisou dizer nem praticar qualquer alusão à condição ´racial´ de seus milhões de beneficiários.

           No caso do acesso à universidade pública, bastam a reserva das vagas para as cotas sociais, pelo recorte de renda familiar, para que a juventude vocacionada, de qualquer cor ou origem, disputem com a dignidade de concorrem em exatas condições da mais absoluta igualdade: a igualdade de meios de competição.

           Não há na história nenhuma boa experiência de políticas públicas em bases raciais. Em todo o mundo as ações afirmativas tem sido empregadas e não significa – nem pode significar – o estado promover, induzir ou praticar a segregação de direitos raciais, pois para fazei-lo, se exige que legitime a ´raça´  juridica e legitimada pelo estado com a mesma classificação racial edificada pela nefasta ideologia no século 18 e que foi a mesma empregada onde o racismo fez políticas de estado, como na Alemanha, nos EUA e África do Sul.  

          Se no Brasil as exclusões e o próprio racismo se deram pelas razões econômicas, sociais, demográficas dadas no colonialismo e aprofundadas no capitalismo do século 20, questões estruturais referidas, não há razão alguma para que o estado vá buscar no conceito da classificação racial do século 18 – a matriz do racismo – para entender e alterar o exercício de direitos à igualdade humana, o bem maior de quem queira ser e praticar o anti-racismo.

           Por ações afirmativas sem o defeito perniciosa da segregação de direitos raciais.

  3. Apartheid
    Belo comentário de Militão, apenas gostaria de retificar as datas do assassinato de Steve Biko (setembro de 1977) e a prisão de Nelson Mandela (fevereiro de 1990).

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