Rogério Cezar de Cerqueira Leite: Mais médicos, menos falácias

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Folha

Opinião

Rogério Cezar de Cerqueira Leite

Mais médicos, menos falácias

Um contrato como o que Cuba assinou com o Brasil serve para garantir a sobrevivência de centenas de milhares de indivíduos daquele país

O eminente jurista Ives Gandra acusa Cuba e o Brasil de serem responsáveis pela condição que classifica como de escravatura do contrato que rege o programa do governo federal Mais Médicos (“O neoescravagismo cubano”, 17/2).

Sua argumentação exclusivamente burocrática ignora as condições em que Cuba se encontra. Para entendermos a realidade daquele país, comecemos por uma analogia.

Quando um país é ameaçado, o seu governo atribui a um grupo de cidadãos, voluntária ou compulsoriamente, a missão de defendê-lo. Essa é uma prática universal.

Com frequência, os salários desses soldados são insignificantes. Não obstante, se qualquer um se recusar a servir seu país, será considerado um criminoso.

Há mais de 50 anos, os Estados Unidos impuseram drásticas sanções econômicas contra Cuba, resultando na extrema pobreza daquele povo. Sua principal fonte de renda de então, a indústria de açúcar, perdeu competitividade e hoje está em frangalhos.

Para sobreviver e assegurar insumos vitais, tais como remédios, certos alimentos, combustíveis etc., conta Cuba quase que exclusivamente com a exportação de tabaco (charutos), rum e, intermitentemente, dos serviços prestados pelos seus médicos no exterior.

Podemos imaginar o quanto de renúncia do povo de um país pobre como Cuba significa custear a formação desses médicos.

Um contrato como esse que Cuba assinou com o Brasil não serve apenas para reduzir a miséria das famílias dos participantes do programa Mais Médicos, mas antes de tudo serve para garantir a sobrevivência de centenas de milhares de indivíduos daquele país.

Pergunto àqueles que argumentarem que os recursos provenientes do programa Mais Médicos vão para o bolso dos “opressores”, baseados exclusivamente em hipóteses, sem evidências concretas, se sua atitude não poderia ser enquadrada naquilo que os juristas chamam de difamação.

Se meia dúzia de médicos cubanos oportunistas se valeu desse subterfúgio para se refastelar nas praias da rica Miami, às custas de um programa ignóbil da potência americana, não deveríamos enaltecê-la, mas deplorá-la, pois apenas 1 em 1.000 traiu o seu compromisso com o Brasil e com o seu povo.

Quantos na sua própria família e em seu país vão sofrer por causa da fuga de cada inadimplente?

Apoiar esses poucos infensos não é apenas uma falta de percepção da questão social envolvida, mas é, antes de tudo, falta de humanidade.

Reduzir a questão do Mais Médicos a uma infringência burocrática ou, pior ainda, a um conflito partidário ou ideológico –o que certamente não é o caso do jurista– é uma indignidade.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 82, físico, é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. Nossos pesos pesados estão

    Nossos pesos pesados estão envelhecendo. Tanto no jornalismo como na academia. Para a falta de médicos e engenheiros no País, me pergundo sempre: O que andamos formando nesses últimos tempos? Mas tenho receio da resposta. Cuba é criminalizada por fornecer médicos. Nós, por não os possuirmos. Mas temos desses outros pelos quais estamos pagando um preço caro. Nas duas pontas. Será que Cuba tem algum médico ruralista, desses que não exercem a medicina e disseminam o rancor?

  2. Quem sabe na Suécia…

    O que há de errado em pagar aos médicos cubanos menos de 10% do que percebem seus colegas de outras nacionalidades, inclusive os brasileiros, quando a maioria de nossos professores recebem ainda menos do que isso?

    Talvez na Suécia estejam certos de falar em escravagismo, mas no Brasil… Acho mesmo que este senhor talvez esteja certo, temos de nos preocupar com as mazelas cubanas em nome do humanitarismo ao invés de olharmos para o próprio umbigo.

  3. não é da UDR

    bem se vê que o autor do texto em tela é físico e não mais um dos milhares de drs coxinhas ruralistas que temos em nossa pátria.

    Alvíssaras!

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