A distribuição desigual de médicos

Da CartaCapital

Desigualdade na escassez

Adib D. Jatene

1 de março de 2011 às 13:00h

Dados do Conselho Federal de Medicina mostram que possuímos no País 340 mil médicos, o que para uma população de 190 milhões representa 1,78 médicos para cada mil habitantes, número insuficiente quando comparado com os 2,6 nos Estados Unidos, 3 na Argentina, 3,2 na Europa Ocidental, 3,8 em Portugal e 6,6 por mil habitantes em Cuba.

A necessidade de apenas um por mil habitantes é anterior aos anos 60, quando dois terços da população viviam no campo. A conclusão é que faltam médicos, deixando largas parcelas da população de baixa renda com acesso limitado a esse profissional. Essa deficiência é agravada pela distribuição dos médicos no território nacional. Mais da metade encontra-se nas capitais, enquanto nessas cidades vive apenas 20% da população. Isso pode levar à conclusão de que, nas capitais, o número de médicos é suficiente. Quando se verifica que Vitória possui um médico para 127 habitantes (7,8/mil), Recife tem um médico para 213 habitantes (4,7/mil), Porto Alegre um médico para 180 habitantes (5,5/mil), São Paulo um médico para 312 habitantes (3,2/mil), a conclusão de que as capitais estão bem atendidas parece correta.

OcorOcorre que a concentração de médicos acompanha, aproximadamente, a distribuição dos hospitais. E quando analisamos, por exemplo, na capital de São Paulo a disponibilidade de leitos hospitalares salta à vista a desigualdade da distribuição. Em 1999, fizemos um levantamento juntamente com Vivaldo Luconti, da Fundação Seade. A cidade de São Paulo, à época com 10 milhões de habitantes, estava dividida em 96 distritos.

Nos 25 distritos da área mais rica e mais antiga da cidade, onde moravam 1,8 milhão de pessoas, existiam 13 leitos por mil habitantes. Assinala-se que 3/1.000 é número considerado adequado. Nos outros 71 distritos, onde viviam 8,2 milhões de habitantes, existia 0,6 leito para cada mil habitantes. E em 39 distritos desse total, com 4 milhões de habitantes, não existia nenhum leito, zero. Esse panorama encontra-se em praticamente todas as grandes cidades e áreas metropolitanas no País.

Ficam, por isso, grandes parcelas da população, mesmo nas capitais, sem o acesso a médico. Se a isto associarmos municípios de áreas mais carentes ou longínquas, onde não existem médicos, fica claro que alguma coisa deve ser feita.
Desde 1996, decidiu-se aumentar o número de cursos médicos. De, aproximadamente, 9 mil vagas, hoje ultrapassamos 15 mil e o número de faculdades, que era de 82, ampliou-se para 180. Entretanto, isso não foi acompanhado de melhora da distribuição de médicos, pois eles não estão sendo preparados para cuidar da população, mas para disputar vagas em residência médica.

Embora tenha aumentado o número de vagas para residência, de um lado, ela não comporta todos os formados e, de outro, serve mais para encaminhá-los às especialidades médicas, que se concentram nos grandes hospitais, e não para cuidar da população carente, sem a utilização da moderna tecnologia, agravando, em vez de minorar, a desproporção da distribuição. Por outro lado, alunos que pagam mensalidades superiores a 3 mil reais, chegando a 6 mil reais, não se disporiam a trabalhar em áreas carentes. O Hospital Santa Marcelina, em São Paulo, ofereceu 16 vagas para residência em Saúde da Família. Apareceu apenas um candidato.

Desde 1995, o País implanta o programa de Saúde da Família, que já recrutou mais de 250 mil agentes comunitários e compôs cerca de 30 mil equipes de Saúde da Família, existindo em 93% dos municípios brasileiros, cobrindo mais de 85 milhões de habitantes. O programa precisa ser duplicado e, se hoje há dificuldade para aliciar médicos, trabalhando em regime de tempo integral junto à população, seria impossível cobrir a nossa necessidade, mantendo o esquema que temos hoje.

É preciso que os quase 16 mil médicos graduados por ano sejam preparados para atender a população sem necessidade de usar a alta tecnologia, reservada aos casos mais complexos e, esses médicos, incorporados no seio da população. A prática dos últimos 20 anos tem demonstrado que a estratégia que utilizamos não conseguirá mudar a situação, pois na verdade estimulam a especialização, que agrava a concentração.

É preciso inovar e nesse campo significa propor medidas para corrigir, em prazo relativamente curto, o problema da distribuição dos médicos.
Essa inovação passa pelo ensino médico, que não pode ser entendido como um negócio ou fonte de prestígio para entidades ou municípios, mas como a maneira de criar profissionais que venham resolver problemas que exijam uma resposta capaz de minorar os problemas da população.

Como todos os estados têm faculdades de medicina, alguns até com excesso de vagas, talvez fosse o momento de se criarem estágios de um ou dois anos no estado no qual se graduaram, prestando serviço no programa de Saúde da Família, como pré-requisito para residência médica. Dessa forma, os que terminarem o curso médico, em vez de se prepararem para prestar concurso para residência, se preparem para atender às situações mais frequentes que afetam a população. Isso significaria, em dois anos, poder criar mais de 30 mil equipes de Saúde da Família, cobrindo o déficit de acesso da população.

Simultaneamente, criar ambulatórios de especialidades ou unidades de pronto-atendimento, para dar cobertura aos médicos de família e permitir que eles tenham acesso a leitos hospitalares o mais próximo possível da residência de seus pacientes.

Programa dessa magnitude exige um aporte de recursos, que, se não for mobilizado, impede que se fale em prioridade para a saúde.

Desde 1980, os profissionais de saúde apontam caminhos. Até hoje, embora convivendo com autoridades dos três níveis que sempre proclamaram prioridade para a saúde, o problema, apesar de conquistar algumas vitórias, deixa muito a desejar. E isso porque saúde nunca foi prioridade.

*Adib Jatene é médico e ex-ministro da Saúde nos governos Collor (1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-1996). 

Luis Nassif

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