A Síndrome de Li-Fraumeni que leva ao câncer

Nesta semana há que se dar especial destaque para a matéria da Istoé que mostra uma realidade pouco comentada (ainda que em novembro de 2009 já tenha sido falado na Folha, com direito a entrevista com mulher que não quis se identificar): a de que as regiões Sul e Sudeste do País têm a maior concentração mundial de pessoas portadoras da Síndrome de Li-Fraumeni. Vale lembrar que a notícia Essa síndrome autossômica dominante causa uma alteração no gene TP53, responsável pela produção da proteína p53 e que combate a formação de células cancerosas no corpo.

Com isso, os portadores de tal gene alterado acabam por terem elevadas em até 90% a chance de terem tumores, bem como tumores em muitos lugares do corpo. Por que assusta a ocorrência de tal gene nas regiões Sul e Sudeste? Pelo fato de a razão estar em 1 a cada 330 pessoas, quando nos EUA tal proporção é de 1 em cada 5 mil. Imagine-se aí algo mais ou menos parecido com certas doenças com ocorrência muito relacionada a um lugar, como a anemia falciforme e a talassemia, por exemplo.

Os cânceres em questão costumam ocorrer em idade jovem (menos de 45 anos) e alguns chamam de “maldição hereditária”, justamente por acometer muitas gerações sem que alguém soubesse o que ocorria para isso. Seria interessante que algum colega dos estados afetados pudesse falar do impacto que a Li-Fraumeni gerou em muitas cidades, ainda mais pensando no impacto que têm múltiplas mortes em uma mesma família em uma cidade pequena, por exemplo.

Pelo que os cientistas estudaram, a localização de casos da síndrome no Sul e no Sudeste segue o padrão dos caminhos dos tropeiros e descobriu-se que todas as pessoas afetadas têm um ancestral em comum que passou por essas bandas no século XVIII e deixou descendentes. Lembremos que nem sempre podemos levar a ferro e fogo a história de que só uma pessoa possa ser capaz de gerar tamanho número de descendentes portadores de uma mesma característica. Pode ter acontecido de irmãos portadores de tal característica serem tropeiros na mesma época e, portanto, ter havido mais de uma pessoa espalhando tal gene.

Temos de também levar em conta que no século XVIII a população brasileira era muito menor do que hoje, bem como as cidades e vilarejos eram muito mais isolados entre si. Portanto, havia um número menor de pessoas disponíveis para casamento e em muitos lugares os habitantes eram parentes entre si em algum grau, o que progressivamente foi aumentando o número de indivíduos com o tal gene até o tal ponto da média de 1 a cada 330 habitantes. Tal característica é conhecida por efeito fundador, que é um gargalo genético em que a diversidade genética vai sendo perdida com o passar dos anos por causa do isolamento geográfico e subsequente aumento de endogamia (exemplo simples: casamento entre primos), aumentando a expressão de certos genes em relação a outros. Outro exemplo de consequências de efeito fundador no Brasil vem ocorrendo nas comunidades remanescentes de quilombos, que vêm lidando com uma série de doenças genéticas. No exterior, exemplos disso também existem em comunidades amish.

No caso do Sul e do Sudeste e a tal relação com a Li-Fraumeni, imagine-se aqui também o tal lance de ser doença ligada a gene dominante, o que por si só facilita a maior expressão de tal característica. Em havendo mais gente e mais lugares com o tal gene se expressando, também há maior espaço geográfico. E com o consequente aumento da população por diversos fatores, já dá para imaginar o grau que tomou a coisa.

Portanto, o lance de sempre é para que as pessoas com múltiplos casos de câncer na família, bem como pessoas que tiveram cânceres em diferentes lugares do corpo, e que porventura tenham raízes nas regiões citadas para que verifiquem a ocorrência da TP53 alterado. Caso tenha o gene em questão, além dos cuidados preventivos com a saúde, sempre fazer aconselhamento genético caso pense em ter filhos.

E lá vai a notícia para que o pessoal fique ainda mais informado a respeito:

Mais vulneráveis ao câncer Estudos do Brasil e do Exterior revelam que as regiões Sul e Sudeste do País apresentam a maior concentração mundial de portadores de uma síndrome que eleva em até 90% a chance de uma pessoa desenvolver tumores Mônica Tarantino

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UMA FAMÍLIA CORAJOSA
A família de Andréa Domingues da Silva, 29 anos (na foto, de vestido),
possui vários portadores da síndrome que deixa as pessoas mais propensas ao câncer.
Após 24 integrantes se submeterem ao teste que identifica o problema,
três irmãos, a mãe, um tio e uma prima descobriram-se portadores da mesma alteração genética
que deixou Andréa com as defesas abertas para a doença.
Aos 7 anos, ela tirou um tumor da glândula suprarrenal e perdeu um rim.
Depois, extraiu um tumor do pulmão e agora faz monitoramento de nódulos pulmonares.
Ciente do que representa ter a mutação, a família fala sem reservas sobre o risco
de câncer e está disposta a contribuir para o entendimento da doença.
“Isso ajuda a saber o que aconteceu com a Andréa, que lutou e venceu o câncer,
e com outros parentes”, diz a mãe, Angelina, 57 anos. O tio Benedito, 69 anos (de camisa azul),
também é portador da síndrome e acaba de fazer um check-up. “É melhor saber das coisas”,
diz ele, que tem sob monitoramento um nódulo de tireoide e perdeu um neto
de três anos com tumor cerebral. Adilson, irmão de Andréa, 30 anos, aguarda o resultado
do teste da filha, Pietra, de 8 meses, para saber se a criança tem a alteração genética.
“Importante é que podemos nos prevenir”, diz. Adriane, 25 anos (ao lado de Adilson), tem a síndrome,
mas nunca desenvolveu câncer. Os cuidados regulares dessa família contra
o câncer exigem persistência. Para os Silva, é necessário percorrer 400 quilômetros de Turvolândia,
em Minas Gerais, onde a maioria reside, até São Paulo para fazer consulta médica.

A estudante Mayara Oliveira tem 14 anos. Desde os 7, luta contra tumores que insistem em aparecer. A mineira Andrea Domingues da Silva, 29 anos, é outra que não desiste. Fez duas grandes operações para retirar tumores e se submete a exames a cada quatro meses para monitorar nódulos nos pulmões. Além de serem brasileiras de fibra, o que mais elas têm em comum? Ambas são portadoras de uma enfermidade conhecida como síndrome de Li-Fraumeni. A principal característica da doença é deixar o portador muito mais vulnerável ao desenvolvimento do câncer: ela eleva em até 90% a chance de o indivíduo manifestar vários tumores ao longo da vida.

Até hoje, essa síndrome era considerada uma doença rara. Mas pesquisas realizadas por cientistas brasileiros com apoio de pesquisadores franceses estão revelando que, aqui no País, sua incidência não é baixa. “Uma a cada 330 pessoas nascidas nas regiões Sul e Sudeste do País é portadora”, afirma a médica Maria Isabel Achatz, diretora do Departamento de Oncogenética do Hospital do Câncer A. C. Camargo, em São Paulo, e líder dos estudos sobre a doença no País. É a maior concentração de casos de Li-Fraumeni no mundo. Para se ter ideia de quanto a taxa brasileira é elevada, nos Estados Unidos, por exemplo, a enfermidade acomete uma a cada cinco mil pessoas.

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PREVENÇÃO
Hainaut, da OMS, estuda a melhor forma de
preparar os médicos para identificar a síndrome

A descoberta é extremamente preocupante. Ela significa que milhares de brasileiros estão sob risco de desenvolver muitos e diversos tumores, e desde cedo. Afinal, uma das marcas da síndrome é deixar os indivíduos mais expostos ao câncer já na infância. Isso acontece porque os portadores não contam com uma proteção natural contra a doença apresentada pelas outras pessoas: a proteína p53, também chamada de guardiã do código genético. Sua função é reparar os danos sofridos diariamente pelo DNA contido nas células. Dessa maneira, ajuda a evitar que células com o código genético incorreto se multipliquem, e de forma desordenada, gerando o câncer. O problema é que, nos indivíduos com a síndrome, o gene responsável pela fabricação da p53, o TP53, possui alterações que o impedem de funcionar corretamente e, portanto, de mandar produzir a proteína protetora. “Por causa disso, as células que sofrem mutações escapam do controle, se reproduzem e vão formando tumores”, explica Maria Isabel.

Os cientistas estão em busca da resposta para a alta incidência da doença por aqui. A explicação encontrada é que o gene com a mutação, que dá origem à síndrome, foi disseminado por um tropeiro português que circulou pelas regiões Sul e Sudeste no século XVIII. Porém, tão importante quanto comprovar esse achado é criar mecanismos para vencer os desafios que o grande número de casos traz para o País. “É uma questão de saúde pública”, disse à ISTOÉ o cientista Pierre Hainaut, chefe da Divisão de Mecanismos Moleculares da International Agency for Research on Cancer, órgão da Organização Mundial da Saúde (OMS), na França. Ele é parceiro de Maria Isabel na pesquisa.

De fato, diante de tantas pessoas tão suscetíveis ao câncer, é preciso adotar algumas medidas importantes na rede pública de saúde. Uma delas é garantir o acesso ao exame que identifica a mutação genética e assegurar, aos seus portadores, a realização dos testes necessários para prevenir e detectar precocemente os tumores. Atualmente, as famílias nas quais há casos são acompanhadas em programas especiais de pesquisa, como o realizado no hospital A. C. Camargo, em São Paulo. No Paraná, bebês identificados com a mutação serão monitorados até os 15 anos. “Mas o acompanhamento dos portadores deve se prolongar por toda a vida”, diz José Roberto Goldim, professor de bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “E também é fundamental examinar e acompanhar seus familiares.”

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VIGILÂNCIA CONSTANTE
Os dois filhos da comerciante Selma Gromboni, de Jaú (SP), têm a síndrome.
Mayara, 14 anos, enfrentou o primeiro tumor aos 7. Era do tipo linfoma e foi logo retirado.
Três anos depois, surgiram sarcomas na escápula e na coxa. Os médicos de Jaú acharam
o caso incomum e encaminharam a garota para o hospital A. C. Camargo, na capital paulista,
onde ela foi identificada como portadora da Li-Fraumeni. Em 2008, foi retirado mais um tumor
da coxa e há quatro meses nova cirurgia extraiu tumores no ombro e sob o braço.
”Minha filha diz que, se vier mais um nódulo, ela tira e pronto. Mayara é autoconfiante
e dá exemplo ao irmão”, diz Selma. Marcelo, 20 anos, está tratando um glioblastoma,
tumor situado em área inoperável do cérebro. O pai deles, Carlos, faleceu em 2005
com vários tumores, mas a hipótese de ter a síndrome não foi levantada.
Selma diz que o fato de muitos médicos não conhecerem a doença atrapalha.
“Isso ajudaria muito no tratamento de jovens como os meus filhos.”

Até o momento, no entanto, o SUS não oferece todos os exames necessários à prevenção em portadores que não apresentam sintomas. Além disso, há carência de geneticistas. “Poucos hospitais de referência da rede pública possuem oncogeneticistas para orientar a população sobre essa e outras alterações genéticas”, diz Fernando Vargas, coordenador do programa de aconselhamento genético do Instituto Nacional do Câncer, o Inca.

Atualmente, os pesquisadores do Inca discutem o que deve ser feito em termos populacionais e reavaliam os casos por eles atendidos para encontrar portadores da doença. Outra iniciativa está sendo preparada pela OMS. “Estamos desenvolvendo no Brasil um modelo educacional para informar a população e capacitar os médicos, que precisam aprender a reconhecer os sinais da síndrome”, disse Pierre Hainaut. “Pretendemos usar esse modelo em outras partes do mundo.” O médico Paulo Hoff, diretor clínico do Instituto de Câncer de São Paulo, concorda com o especialista francês. “A grande necessidade no Brasil é preparar os médicos para ficarem atentos, localizando as famílias de risco. A orientação do que fazer, e como se prevenir, deve ser feita caso a caso”, diz o oncologista.

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PRÁTICA
A oncogeneticista Maria Isabel lidera os estudos no
País e orienta portadores atendidos no Hospital A. C. Camargo
 

Lá fora, a alta incidência da síndrome no Brasil está chamando a atenção de instituições internacionais de renome – afinal, antes dos estudos brasileiros, eram conhecidos apenas 280 portadores da síndrome em todo o mundo. No Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, o NIH, por exemplo, a informação sobre a situação por aqui motiva a reorientação das pesquisas. “Estamos retomando o estudo de doenças raras, como essa síndrome”, disse à ISTOÉ Joseph Fraumeni, um dos pesquisadores que descreveram a doença, em 1969 (o outro foi Frederick Li), e hoje diretor da área de epidemiologia do câncer e genética do NIH. Na semana passada, o instituto liberou US$ 100 mil para estudos que serão feitos pelo próprio Fraumeni em colaboração com a cientista Maria Isabel. “É um caminho para o avanço no estudo das causas moleculares do câncer”, completa ele.

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Luis Nassif

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