Drauzio Varella aborda um dos maiores alvos de discriminação

Acreditem, no final deste texto vou falar (bem) do Dr. Dráuzio Varella, por causa de sua coluna de ontem na Folha de São Paulo, também reproduzida em blogs.

Para um assunto como este, nada trivial, eu começaria perguntando: alguém aí já ouviu dizer, ou já imaginou, que em qualquer processo de fabricação em série, mesmo numa fábrica de automóveis bastante sofisticada, NENHUM produto é – rigorosamente – igual a outro de mesmo modelo, apesar de terem saído do mesmo processo de produção?

Nem estou me referindo a “defeitos” – que em verdade são diferenças tão significativas que acabam chamando a atenção de alguém.

Especialistas de controle de qualidade já sabem há muito tempo que um produto, mesmo oriundo de um rigoroso processo de produção certificado, nunca é idêntico a outro, ainda que se o compare com o que acabou de sair da mesma linha de produção. Embora nanométrica, alguma diferença pode ser encontrada.

(Um parêntese curioso: nosso cérebro é mais treinado para procurar semelhanças do que para detectar diferenças.)

Agora imagine a zorra que é impor identidade a produtos saídos de unidades fabris diferentes. A Coca-Cola, por exemplo, sua a camisa para estabelecer severos controles de uniformização, para que um consumidor de seu líquido fabricado em Manaus sinta o mesmo gosto quando consome o produto oriundo da fábrica no Rio de Janeiro.

Pois, então, e quanto à “produção” de seres vivos?

Para começo de conversa, aquilo que chamamos de “natureza” tem como meta não a uniformização, mas a diversidade – ou seja, seu “diretor” sorri feliz a cada vez que o “produto” sai diferente do anterior. Para complicar ainda mais, o doido que inventou este processo resolveu fabricar não só produtos, mas também concomitantemente “fábricas”, de modo que um só produto (ou um par, convenientemente aparelhado) esteja apto a assumir o papel de “fábrica” num processo compulsivo de reprodução, às vezes produzindo até “sem querer”.

Falemos de humanos.

Quando alguém te disser que cada ser humano é único e, portanto, irrepetível, pode acreditar. Até porque, como vimos, a rigor TUDO é único, irrepetível.

No entanto, certos procedimentos nossos, instintivos, teimam em detectar assemelhações, e isto parece fazer parte de um processo cultural que (ao que tudo indica) visava nos agrupar para nos defendermos (o “diferente” de nós é mau, pareciam dizer nossos reflexos (instintos?), enquanto não nos educamos para perceber as coisas de outras maneiras).

Isto de sacar de imediato que somente o semelhante é “bom” acabou por produzir forçações de barras contra os diferentes. Exemplos disso estão nas bíblias, em muitos movimentos totalitaristas, e em nós.

Enquadramos um humano (pelos sinais que “supostamente” detectamos) na categoria de “homem”, se tem pelo menos o pênis, ou na categoria de “mulher”, se tem ao menos a vagina. Religião, educação, cultura, todo o acervo humano se baseou na evidenciação puramente visual da existência do órgão sexual para enquadrar o sujeito dentro de uma dessas duas categorias, impositivamente. Quando crianças, em verdade é praticamente forçosa nossa identificação com o pai, ou com a mãe (homem ou mulher). A moral e a ética se apropriaram dessas validações para criar regras, nem sempre “naturais”.

Comandada pela natureza, a biologia esperneia contra tais enquadramentos, seja pela via propriamente anatômica, produzindo humanos sem pênis ou sem vagina, ou um sujeito com os dois órgãos, e redesenhos outros. (Em maternidades de grandes centros há mais relatos de ocorrências desses fenômenos). A natureza age também por outros meios, fazendo com que alguém que porte uma vagina tenha ganas de se “sentir” homem, ou alguém, mesmo com pênis, se “veja” mulher. Além de outras causas, hormônios produzidos a mais ou a menos pelo próprio sujeito podem levar naturalmente a isto. Em suma, há fortes comandos genéticos envolvidos no dia-a-dia do fabrico de humanos – não obstante as influências do meio físico onde vivem os “fabricantes”, e as forças familiares e culturais que participam dessa construção.

Cada humano é diferente de outro, e o órgão entre as pernas é apenas um dos muitos lugares onde as diferenças se manifestam.

O artigo do Dr. Drauzio Varella é contundente ao chamar a atenção para um dos alvos de maior discriminação no Brasil. Categórico, ele põe o dedo na ferida ao afirmar logo de início, que “de todas as discriminações sociais, a mais pérfida é a dirigida contra os travestis.”

Eu o li na página E8 da Ilustrada de ontem. Vocês podem ler lá ou em blogs.

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Da Folha

Homens que são mulheres

DRAUZIO VARELLA

A saúde pública não pode continuar dando as costas para essa minoria de homens

DE TODAS as discriminações sociais, a mais pérfida é a dirigida contra os travestis.

Se fosse possível juntar os preconceitos manifestados contra negros, índios, pobres, homossexuais, garotas de programa, mendigos, gordos, anões, judeus, muçulmanos, orientais e outras minorias que a imaginação mais tacanha fosse capaz de repudiar, a somatória não resvalaria os pés do desprezo virulento que a sociedade manifesta pelos travestis.

Quem são esses jovens travestidos de mulheres fatais, que expõem o corpo com ousadia nas esquinas da noite e na beira das estradas?

Apesar da diversidade que os distingue, todos têm em comum a origem: são filhos das camadas mais pobres da população.
A homossexualidade é tão velha quanto a humanidade, sempre existiu uma minoria de homens e mulheres homossexuais em qualquer classe social; caracteristicamente, no entanto, travestis só aparecem nas famílias humildes.

Na infância, foram meninos com jeito afeminado que, se tivessem nascido entre gente culta e com posses, poderiam ser profissionais liberais, artistas plásticos, empresários, costureiros, atores de sucesso. Mas, como tiveram o infortúnio de vir ao mundo no meio da pobreza e da ignorância, experimentaram toda a sorte de abusos: foram xingados nas ruas, ridicularizados na escola, violentados pelos mais velhos, ouviram cochichos e zombarias por onde passaram, apanharam de pais e irmãos envergonhados.

Em ambiente tão hostil poucos conseguem concluir os estudos elementares. Na adolescência, com a autoestima rebaixada, despreparados intelectualmente, saem atrás de trabalho. Quem dá emprego para homossexual pobre?
Se para os mais ricos com diploma universitário não é fácil, imagine para eles. O máximo que conseguem é lugar de cozinheiro em botequim, varredor de salão de beleza na periferia ou atividade semelhante sem carteira assinada.
Vivendo nessa condição, o menino aprende com os parceiros de sina que bastará hormônio feminino, maquiagem para esconder a barba, uma saia mínima com bustiê, sapato alto e um bom ponto na avenida para ganhar numa noite mais do que o salário do mês.
Uma vez na rua, todo travesti é considerado marginal perigoso, sem nenhuma chance de provar o contrário. Pode ser preso a qualquer momento, agredido ou assassinado por algum psicopata, que nenhum transeunte moverá um dedo em sua defesa. “Alguma ele deve ter feito para merecer”, pensam todos.

Levado para a delegacia irá parar numa cadeia masculina. Como conseguem sobreviver de sainha e bustiê em celas com 20 ou 30 homens, numa situação em que o mais empedernido machão corre perigo, é para mim um dos mistérios da vida no cárcere, talvez o maior deles.

A condição de saúde dos travestis é precária. Não existe um serviço de saúde com endocrinologistas para orientá-los a respeito dos hormônios femininos que tomam por conta própria.

Muitos injetam silicone na face, nas nádegas, nas coxas, mas sem dinheiro para adquirir o de uso médico, fazem-no com silicone industrial comprado em casa de materiais de construção, injetado por pessoas despreparadas, sem qualquer cuidado de higiene. Com o tempo, esse silicone impróprio escorre entre as fibras musculares dando origem a inflamações dolorosas, desfigurantes, difíceis de debelar.

Ainda os portadores do vírus da Aids encontram algum apoio e assistência médica nos centros especializados, locais em que os funcionários estão mais preparados para aceitar a diversidade sexual. Nos hospitais gerais, entretanto, poucos conseguem passar da portaria, barrados pelo preconceito generalizado, praga que não poupa médicos, enfermeiras e pessoal administrativo.

Os hospitais públicos deveriam ser obrigados a criar pelo menos um posto de atendimento especializado nos problemas médicos mais comuns entre os travestis. Um local em que pudessem ser acolhidos com respeito, para receber orientações sobre uso e complicações de hormônios femininos e silicone industrial, prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis e práticas de sexo seguro.

A saúde pública não pode continuar dando as costas para essa minoria de homens, só porque eles decidiram adotar a identidade feminina, direito de qualquer um. Quem somos nós para condená-los?

Que autoritarismo preconceituoso é esse que lhes nega acesso à assistência médica, direito mínimo garantido pela Constituição até para o criminoso mais sanguinário?

Luis Nassif

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