Subsídios ao debate sobre a violência

Por Ricardo B.

Re: Tragédia de Realengo: uma análise lúcida de nossos tempos

Nassif, o texto é longo, mas vale a pena a leitura. É uma nota lançada em resposta a questões sobre as ameaças a alunos da UnB, mas com referência à tragédia de Realengo e que ajuda no entendimento do problema.

NOTA DO GRUPO PERSONNA

Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Criminalidade, “Perversão” e “Psicopatia” do Laboratório de Psicopatologia, Psicanálise e Linguagem

do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília

SOBRE INTOLERÂNCIA, VIOLÊNCIA E “PSICOPATIA”

As pessoas têm nos procurado, insistentemente, para que nos pronunciemos sobre como os cidadãos que ameaçavam (ou ameaçam) atacar alunos na UnB poderiam ser classificados. Pensamos que, para além das questões jurídicas, legais e morais inerentes ao caso, como profissionais que estudam e pesquisam a área, não temos outra resposta inicial possível, a não ser: eles são seres humanos com ideias destoantes do padrão apregoado como sendo o vigente e aceitável. Dizemos “apregoado”, pois todo ser humano carrega traços de agressividade e de intolerância dentro de si, mas boa parte os nega veementemente. Os suspeitos, que estão na “ordem do dia das fantasias denegatórias dos normais”, os assumiram em grande escala. Porém, o senso comum (e lamentavelmente também muitos cientistas e acadêmicos) insiste em dicotomizar, cartesianamente, a sociedade em normais ou anormais; sãos e doentes; bons e maus. Durante algum tempo lemos os textos postados no sítio “Silvio Koerich” e ouvimos indignações, críticas e denúncias de alunos e funcionários chocados com o teor de tais mensagens. Para nosso espanto, após a prisão dos supostos autores, temos ouvido frases idênticas às dos acusados. Pessoas que foram ameaçadas pelos supostos suspeitos, repetem as ideias dos mesmos: “têm que morrer, apanharem até ficarem aleijados, tomara que sejam estuprados até a morte”. Há diversos blogs, inclusive com a configuração similar ao deles, pregando o extermínio desses suspeitos. Portanto, não há como classificá-los sem considerar que existe profunda semelhança entre o comportamento deles e o da sociedade que os (r)odeia. As pessoas só se permitem exercer essa violência quando encontram um motivo socialmente aceitável, ao contrário deles. Entretanto, defendem a violência contra eles, pois, num raciocínio infantil, “foram eles que começaram”. René Girard em seu livro “Aquele por quem o escândalo vem” diz: para escapar à responsabilidade da violência, pensamos nós, basta renunciar à iniciativa dela. Mas esta iniciativa nunca é tomada por ninguém. Até os seres mais violentos sempre creem reagir a uma violência que vem de outra pessoa”.

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   Para a Psicologia Crítica, tratam-se de seres humanos que encontraram na violência a única forma de serem “ouvidos, considerados” e, pasmem, “respeitados”. As ciências envidam esforços para criar escalas de medição de comportamentos e emoções que classifiquem e expliquem (mais que compreendam), formando uma barreira de segurança entre os “tidos” normais e os “claramente” anormais. Mas um dos grandes problemas é definir, em termos exatos, os itens que compõem tais escalas: o que é AFETO, RAIVA, MEDO, INTOLERÂNCIA… E como quantificar ou mesmo qualificar o NORMAL ou ADEQUADO? Precisamos lançar um olhar para além dos rótulos e classificações fáceis ou estereotipadas, considerando nossos semelhantes como um TODO. E ouvir DELES o que lhes causa sofrimento (ou como nós, enquanto seres humanos lhes causamos sofrimentos), sem juízo valorativo e circunscrito de que “isso é certo ou errado” (eximidas aqui as responsabilidades legais que regem nossa relações sociais, por certo). Agrupar características de personalidade é algo que a ciência vem fazendo há décadas, sem muito sucesso ou eficácia. Além disso, a maioria dos seres humanos recorrem a um mecanismo de defesa clássico chamado PROJEÇÃO para identificarem, apenas fora de si, aquilo que não conseguem perceber e/ou aceitar em si mesmos (quantas vezes já nos perguntamos porque qualquer coisa que tem o título PSICOPATIA causa tanto fascínio e “vende como água” por autores e pseudo profissionais e cientistas que repetem (pré)conceitos estabelecidos há séculos?). A prisão de suspeitos de violência faz com que de certa forma nossa atenção se volte para a agressividade do outro e a nossa, passe despercebida. Poucos cientistas e profissionais “psi” se debruçam sobre esse tema de forma crítica e atualizada. Muitos vivem repetindo verdadeiros “mantras” e “dogmas” professados no século XVIII, por absoluta falta de novos caminhos e estudos na área. A aversão não é apenas do senso comum, mas está presente, também, na comunidade científica e acadêmica que prefere preencher uma lista de alguns sintomas possíveis pretendendo que isso dê conta de toda a subjetividade de um ser humano. Mas a resposta para O QUE FAZER DEPOIS infelizmente ainda permanece em aberto.

Seria leviandade e uma colossal falta de ética pretender falar de uma pessoa que não conhecemos e nem tivemos acesso por tempo suficiente para conhecê-la em profundidade. Como já dissemos, no comportamento de QUALQUER UM DE NÓS é possível encontrar traços de violência, agressividade, intolerância, perversidade, maldade e a(i)moralidade. O que nos diferencia é o grau com que isso ocorre e com que frequência esses comportamentos chegam ao conhecimento dos demais sendo pelos outros avaliada. Pesquisas indicam que visitantes de sites deste tipo, mais do que simplesmente repulsa, sentem curiosidade e têm certa dose de prazer antes de autocensurarem seu comportamento ou de seus autores. Então, como afirmar que apenas seus autores possuem “desvios de personalidade” sem conhecê-los pessoalmente? O mais importante, a nosso ver, é que eles tentam comunicar algo (e diga-se de passagem, com muita “ênfase” TIREI DESESPERO). E a sociedade parece (e persiste em) continuar a não ouvi-los. Há apenas a preocupação de classificar, julgar e excluir. Pensamos que só a compreensão do que “está por trás” das mensagens violentas pode nos levar à capacidade de lidar com fatos e pessoas assim.

Os “psicopatas” agem como todas as pessoas que sentem raiva, desejo de vingança e rejeição mas não possuem os “freios morais e sociais” que o restante da sociedade costumam utilizar. Outra coisa é que as pessoas consideradas “normais” encontram justificativas socialmente mais aceitáveis para exercer comportamentos violentos e com isso deixam de receber tal rótulo. Existem alguns (pre)conceitos que, felizmente, começam a ser superados: “todo psicopata” mente, manipula, não sente empatia e são impulsivos. Entretanto, a maioria de nós – em certa medida – possui tais traços e estes, muitas vezes, não são encontrados em pessoas cujos comportamentos podem ser similares ao que chamamos de um “psicopata”. O senso comum tem chamado de “psicopata” qualquer pessoa que comete atos que ela reprova fortemente e que não consegue ou não quer entender.

Mente doente, doença mental? Em termos clínico-psicológicos, o termo “doença” pode ser considerado tudo o que causa sofrimento (a si ou a terceiros). Ou seja, em certa medida, todos nós, temos ou causamos sofrimentos. E eles são causados por dificuldades emocionais, relacionais e sociais. Isso é aplicável a qualquer pessoa, em diversas fases de sua vida. Atualmente, seria difícil alguém conseguir passar por um especialista sem receber um diagnóstico ou receita médica, tamanha a profusão das classificações existentes. Ademais, nossa sociedade sempre procura se eximir de qualquer contribuição para manifestações assim. Preferem crer que apenas desequilíbrios químico-cerebrais são responsáveis por este tipo de conduta. Entretanto, ao observarmos as histórias de vida de tais pessoas, encontramos inúmeras manifestações de maus tratos, desqualificações e humilhações perpetradas por suas famílias, amigos e pela sociedade como um todo, que, ao ver o resultado de sua intolerância para com eles, exclui-os negando qualquer participação nesta construção.

Todos somos suscetíveis a comportamentos fora do padrão. Há contextos desfavoráveis onde certas pessoas não encontram alternativas “a não ser…”. Ao nos vermos sem perspectivas, todos lançamos mão do comportamento possível (de acordo com as circunstâncias e com nossos recursos pessoais). Nem sempre a sociedade concorda com eles. O comportamento de revidar a violência proposta no sítio de “nossos suspeitos atuais” só gerará mais violência por parte deles o que, em seguida, geraria novas represálias e assim por diante. É o cenário que está sendo (co)construído. Ou seja: de que lado está o problema? Suscetíveis são todos aqueles que são agredidos e não encontram outra forma de elaborar isso. Se é o que criticamos nos autores do sítio, como podemos fazer o mesmo? René Girard aponta o mimetismo da violência: ou seja: copiamos esses comportamentos.

Para lidar com uma pessoa assim um bom começo é exercer a máxima: “faça aos outros aquilo que gostaria que fizessem a você”; isso seria, sem dúvida, um bom começo. Critica-se a forma de expressão do sitio, por exemplo, mas ela parece ser o único comportamento que também se encontra para lidar com eles: patologizar, classificar, ameaçar, ser intolerante e segregar. Parece existir uma aversão profunda a um olhar mais humanista: o de conhecê-los, ouvi-los e tentar compreendê-los, minimamente que seja. Cabe-nos refletir: “quantas e quais pessoas cabem em nossa noção de direitos iguais para TODOS?”

Que tratamento pode ser dado a pessoas assim? Compreensão, interesse, estudo, escuta, respeito. São as únicas respostas a serem dadas por nós neste momento. Se alguém utiliza a linguagem da violência, talvez seja necessário apresentar-lhe outra. A sociedade sempre se justifica dizendo que é difícil que alguém aja pacificamente quando esta pessoa é alvo de preconceito, ameaças, ofensas. O mesmo se aplica às pessoas com estas características. Para lidar com tais situações é preciso pesquisar, estudar e compreender e isso não é possível fazendo uso de (pre)conceitos e discriminações secularmente estabelecidas. Estudar a violência não quer dizer concordar com ela e sim estar disposto a entender os motivos que a fazem assim se manifestar.

Muitos questionam sobre recuperação. A maioria, na verdade, está falando apenas do retorno a um comportamento socialmente aceitável e controlável. Poucos se interessam em pensar como o sofrimento dessas pessoas foi construído, por nós mesmos, ou por representantes de nossa humanidade. Basta que se comportem adequadamente. Precisaríamos falar de uma profunda mudança social e não apenas da mudança de um ou mais indivíduos. Os problemas de comportamento só existem se alguém é afetado por eles que, maioria das vezes, colabora em maior ou menor grau para que eles ocorram (direta ou indiretamente). Nossa sociedade apregoa e glorifica valores narcisistas e individualistas, incitando-nos, por exemplo, a assistirmos filmes com dezenas de cenas de assassinatos brutais, produzindo videogames de ataques violentos para nossas crianças, comercializando armas, além de assistirmos massacres persistentes de países inteiros em nome de “nossa necessidade – capitalista – de segurança”. Convoca-nos a sermos “touros reprodutores”, e que as mulheres sejam meros corpos feitos para o prazer. Impele-nos a ter sempre mais poder e dinheiro e a sermos reconhecidos a qualquer custo para sermos bem sucedidos. Quando passamos do limite (que em geral não fica claro qual é), esta mesma sociedade nos segrega e nos chama de “frios, insensíveis, perversos ou psicopatas”. Todos estes “rótulos” são produzidos numa relação bidirecional dentro das famílias humanas, ou seja, da própria sociedade e, portanto, dentro da nossa humanidade possível. Nada fora de nossa condição possível. Somos a civilização da pressa, do diagnóstico rápido, da pílula mágica, da solução instantânea, do “ter mais que ser”. Temos sofrido muito com isso. E feito diversas pessoas sofrerem.

Não é suficiente diagnosticar como uma forma de discriminar as perturbações de um sistema que, no caso do homem, é basicamente, simbólico. Ninguém olha desde um ponto “zero”, e sempre o faz em perspectiva, como já nos dizia o “enlouquecido” Nietzsche.

Precisamos escutar o outro, antes de tudo. E escutar sempre suscita a pergunta sobre a hermenêutica enquanto pressuposto da interpretação.

Este niilismo que prega a desvalorização e a morte do sentido, a ausência de finalidade e de resposta ao “por que” e ao “como”, apaga as diferenças, anula os modos estruturais, destrói os níveis constitutivos e termina por diluir toda noção de significação possível para tantas diferenças humanas.

Não nos interessam conceitos e diagnósticos do tipo “psicopatia” ou “perversão” e outros que não levem em consideração, na dimensão do humano construído pela nossa linguagem e por nossas próprias ações, o que de fato fizemos para ser o que se é.

Com certeza que não defendemos nem moral nem legalmente quaisquer tipos de violências ou intolerâncias, de discursos ou de práticas, sejam dos “tidos como psicopatas ou perversos” sejam dos “tidos como normais”, seja ela mínima ou máxima.

Estudos internacionais, recentes e críticos, com os quais concordamos como forma de exercitarmos o respeito a todas as diferenças possíveis, afirmam que as pesquisas científicas sugerem que a “assim denominada psicopatia” é um “transtorno de personalidade” que é amplamente mal compreendido, tendendo a ser usado como um rótulo para pessoas de quem não gostamos, não conseguimos entender ou que as construímos, especialmente no discurso e na linguagem, como demônios. Continuando assim, perpetramos as mesmas intolerâncias e violências que “tanto abominamos” quando queremos defender “o nosso contra o outro ameaçador”. Há sempre que se pensar criticamente que “homens maus fazem o que homens bons desejam”, posto que ambos foram construídos pela nossa humanidade possível.

 

Brasília/DF., 31 de março de 2012. 

Prof. Dr. Ileno Izídio da Costa

Doutoranda Elisa Walleska Krüger A. Costa

Coordenadores do Grupo Personna

Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília

Luis Nassif

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