Daiara Tukano: Nós nunca fomos colonizados!, por Luisa Barreto

O corpo indígena, desde sempre não reconhecido pelos Estados e pela história, resiste, e sua “desobediência é epistemológica”, disse Daiara

Daiara Tukano: Nós nunca fomos colonizados!

por Luisa Barreto

A artista, ativista, educadora e comunicadora, Daiara Tukano, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora da Rádio Yandê, primeira web-rádio indígena do Brasil esteve em 6 de outubro de 2019 no centro cultural Fórum Brasil e Casa de Candomblé Ilê Obá Sileké, em Berlim, para dar início ao ciclo de debates sobre anti-racismo e defesa da biodiversidade que acontecem durante o mês de outubro na capital da Alemanha.

“Nós temos uma relação diferente com o universo, não temos uma cultura de exploração. A natureza tem ciclos e ela não nos pertence; nós fazemos parte dela. Nós pertencemos a natureza” – Daiara Tukano

Isto que parece ser muito simples de entender, de que a natureza não nos pertence, mas, ao contrário, nós pertencemos a ela, não é uma sentença assim tão fácil. No entanto, o aumento da visibilidade das lideranças indígenas do Brasil, no Brasil e no mundo, mostra que estamos mais próximos de compreender o que significa, de fato, a não separação entre natureza e cultura.

Também podemos perceber isso nas manifestações globais para o clima, que a percepção sobre o esgotamento do regime capitalista de depredação da natureza e das relações humanas e que a chegada da cosmovisão indígena no ambiente acadêmico, como parte das discussões sobre o Antropoceno; na sociedade e na política, como descolonização do pensamento e ativismo, estão cada vez mais fortes.

Permanece no senso comum que “a história é contada pelos vencedores”, aprendemos na escola que o Brasil foi descoberto e não invadido, não nomeamos as coisas direito. Eles, os invasores de ontem e de hoje pensam que os índios foram ou serão vencidos, mas, nas palavras de Daiara: “ se estivéssemos sido vencidos, não estaríamos aqui, então, se existem povos indígenas no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, é porque nós não fomos colonizados. Estamos aqui até hoje”.

O corpo indígena, desde sempre não reconhecido pelos Estados e pela história, resiste, e sua “desobediência é epistemológica”, disse Daiara em outra ocasião, no Seminário de Antropologia Radical em que esteve em abril deste ano, em Londres[1]. A presença indígena de forma cada vez mais intensa na luta pelo clima e a aliança com movimentos como o Extinction Rebellion e o Fridays for Future é a culminação de um processo extenso de resistência que se inicia com a Confederação dos Tamoios (1555 a 1567), passando pela Guerra dos Aymorés (1555 a 1673), até o massacre dos Guarani Kaiowá, que dura de 1895 até os dias de hoje.

A resistência indígena começa com a invasão do Brasil e permanece até hoje, portanto, ela começa com um dos maiores massacres da história da humanidade, na Idade Média, primeiro século da colonização, quando 200 milhões de índios foram dizimados no continente americano e segue até hoje em todo Brasil.

“’Índio’ é uma palavra sarcástica, cínica. Os portugueses queriam ir para a Índia, por isso acabaram nos chamando de ‘índios’. A grande maioria não gosta dessa palavra ‘índio’, nós preferimos indígena ou nativo para falar dos nossos povos”.

Reavaliar a narrativa da história é também uma busca pelo sentido dos nomes que dizemos sem pensar e o entendimento, ainda que velado, de que “índio” é uma raça, diz Daiara. “Povos indígenas existem no mundo todo. Povos indígenas são civilizações antigas que têm memória, história, identidade, território, mas nós somos também contemporâneos”, completa Daiara: “não sou menos indígena porque uso óculos e celular, pensar isso é racismo”.

Não nos esqueçamos, que a imposição do português e do espanhol, assim como da religião e cultura católicas fazem parte do projeto de invasão territorial que definiu, no latim, que as terras aqui existentes eram nullius terram: “terra de ninguém”, explica Daiara. Este argumento faz parte da “tecnologia católica” de governo empreendida no primeiro século de colonização europeia e reside hoje na violação ao corpo e às terras indígenas pelos madeireiros, garimpeiros, ruralistas e traficantes de todo gênero, explica Daiara.

Além do extermínio de diversos troncos linguísticos das mais de mil nações indígenas existentes no continente americano, restando hoje, segundo registros oficiais, cerca de 274 línguas indígenas de 305 diferentes nações e uma população de 715.213 indígenas no Brasil, a topografia do terror que atinge o território, o patrimônio imaterial e o corpo indígena continuam em todo o país.

No início foi como no Game of Thrones, continua ela, os portugueses de um lado, espanhóis do outro, franceses e holandeses, manipulando os caciques para fazer com que os povos indígenas brigassem entre si e jogando todo tipo de arma química biológica, como os cobertores de sarampo que matavam uma aldeia inteira em uma semana.

“Esse tipo de guerra biológica continua acontecendo hoje. Os fazendeiros do agronegócio mandam aviões voarem por cima das aldeias, jogando agrotóxicos que, há anos atrás, na Guerra do Vietnã eram chamados de Agente Laranja. É o que eles continuam jogando nos Guarani Kaiowá”.

O massacre de Altamira, no Estado do Pará, para a construção da usina de Belo Monte e a morte do rio Doce em Mariana, Minas Gerais, terra de Aílton Krenak, outra grande liderança e intelectual indígena, são casos recentes, mas o plano de construção de novas usinas hidrelétricas, barragens e rodovias; as queimadas criminosas para produção de grãos e criação de gado, a mineração e garimpagem, em processo de execução na Amazônia mostram o que ainda está por vir.

Mas os povos indígenas sempre estiveram organizados e é por isso que, desde 1550, “no território onde vivemos tem floresta. Os indígenas são os guardiões da floresta e da biodiversidade do planeta”, diz ela.

Após lembrar da 15ª edição do Acampamento Terra Livre deste ano, realizado na capital federal, de 24 a 26 de abril, que reuniu cerca de quatro mil pessoas e 150 povos indígenas do Brasil, Daiara reafirmou que a resistência continua. Falou do cacique caiapó Raoni Metuktire, de 89 anos, que entrou oficialmente para a lista de concorrentes ao Nobel da Paz em 2020.

Além dele, diversas lideranças estão se tornando cada vez mais fortes como Joênia Wapichana, primeira mulher indígena eleita deputada federal pelo Estado de Roraima e Sônia Guajajara, que também esteve recentemente na capital alemã no festival Plataforma Berlin: a brave post-colonial world e que retornará em comitiva no fim do mês.

“Até 1979 os indígenas eram considerados incapazes, não podíamos votar, sair do país sem autorização e não tínhamos direito a propriedade privada”, diz Daiara. Após a reforma constitucional de 1988, no entanto, o Artigo 321 reconhece o direito a identidade indígena e define a obrigação do Estado de proteger as terras e populações indígenas. “Esta é uma cláusula pétrea, ou seja, é uma lei que não pode ser mudada, é um direito originário”.

Daiara concluiu sua fala convocando todos ao engajamento e alertando para a necessidade de proteger os povos indígenas de todo mundo, da Ásia, da África, da Europa e das Américas, esses 5% por cento da população, segundo a ONU. Esses 5 por cento diretamente implicados na preservação da vida e da biodiversidade do planeta.

[1] Disponível aqui: https://www.daiaratukano.com/post/daiara-tukano-existence-as-resistance-an-indigenous-perspective-from-brazil-23-april-2019?fbclid=IwAR0TCfbBPTaHyXlBXGf9sFvputda4Lw7txs-3SVs3h-LoW9Se49vLhbqFiA

 

Redação

2 Comentários

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  1. Que bom encontrar seu texto, Daiara!
    Vejo que são os 5% com a psique sã!
    A resistência que, se mantida, expõe continuamente a nu a psique demente.
    O objeto de desejo do colonizador atual, evangilizador, é a psique!
    Governamental, corpos e terras, sim.
    Ubiratã!

  2. Nossa queria muito saber o filtro adotado contra o consumismo!
    Legal seria ver os acadêmicos também fazerem o contrário: indiginizarem-se, ou como prefiro, naturalizarem-se.
    Para isso, o formado precisaria se desformar, além de se desformatar! Intercâmbio às avessas e que faria muito, muito bem à academia e ao mundo!
    Fica como proposta!

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