Por que Pilatos entrou no credo cristão?

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Sugerido por Aldo Cardoso

Por que Pilatos entrou no credo cristão?

Do Blog Teologia e Liturgia e Culto Cristão

“Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco
Vamos por aí eu e meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós, olha aí”
(Paulo César Pinheiro)

Não há qualquer dúvida, Pilatos entrou no Credo porque representava o tipo de justiçamento, o massacre de um inocente, que pedia a multidão concentrada num ponto estratégico da cidade. Jesus não foi linchado, porque só um julgamento exemplar satisfaria as autoridades governamentais. Mas a centralidade do texto é a ressurreição do Senhor (João 20,1-18), apesar da fúria da multidão. O modo e o momento não são importantes, talvez. A não ser que recorramos aos antecedentes da semana: outra multidão, a de Ramos, aclamaria a esperança de profundas transformações na sociedade,  negando apoio ao jogo político dos tiranos.

Há alguma ênfase, da parte dessas multidões, na participação solidária com os despoderados e marginalizados; cidadãos sem vez e sem voz; combatentes do imperialismo econômico próprio dos dominadores de todos os tempos? Há interesse na xenofobia, no racismo, na exclusão social e negação de direitos humanos e cidadania igualitária, ou as multidões pretendem a condenação de quem propõe combater  e reverter a tirania existente? Da primeira, só temos a frase: “Hosanas, seja bem-vindo aquele que vem em nome do Senhor”. Da segunda, votando pela condenação do Justo: “Crucifica-o!”.

Estavam envolvidas, as duas, na luta dos trabalhadores, artesãos, pastores, diaristas, comerciantes, assalariados, ceifadores, safristas: “Eis que o salário que sonegastes dos trabalhadores que ceifaram vossos campos alcançam os ouvidos do Senhor” (Tiago 5,4). Sem terras, trabalhadores, gemem, enquanto sujeitos aos senhores da economia agrícola e pecuária desse tempo. O mendigo come com os cães, disputando um lugar próximo da mesa do rico (Lucas 16,16 ss); chicaneiros, cobradores comissionados (sistema bancário), extorquem a população constantemente sujeita a empréstimos, impostos, juros, injustificáveis (Lucas 19,8; 3,14); juízes mandam confiscar bens de famílias emprobrecidas que não podem pagar o que o Estado cobra (Hebreus 10,34). A população sofre boicote econômico, obrigada a racionamento de produtos essenciais, quando a autoridade imperial manda impedir que pais de família “não comprem e não vendam”, a não ser o que o Estado permite (Apocalipse 13,17). Enquanto isso, a atividade religiosa, sob abusos apoiados em regulamentos religiosos, escorcha os fiéis, obrigando-os ao dízimo compulsório, pela ameaça de exclusão e anatemização. Intérpretes da bíblia, escribas, são acusados de “devorar os lares das viúvas e fazer longas orações consagratórias das ofertas compulsórias” (Marcos 12,40).

É preciso citar nomes, personagens da elite abastada, se eles são tão conhecidos quanto o são personagens do Congresso, nos dias de hoje, envolvidos com a opressão de trabalhadores e do próprio povo? Em poucas palavras não se pode contar uma história, como as relatadas pelos profetas bíblicos ao longo de 1.000 anos de monarquias corruptas em Israel, e de dominações imperialistas que chegam à Judéia dos herodianos no tempo de Jesus e dos apóstolos do NT. A tragédia do povo bíblico não se conta em dois parágrafos.

Uma sociedade que se diverte vendo ou lendo histórias de assassinatos pode até chorar sobre os corpos dos inocentes executados pelos poderes políticos – como nas procissões piedosas na Semana da Paixão, ou nas comemorações de 21 de abril –, mas festeja em manifestações contra governantes que ameaçam seus privilégios e exclusivismos, enquanto aprova a execução de insurgentes. Ou exige autoritariamente a ação de tiranos sobre o povo. Não se pode estranhar que tais acontecimentos realizem sua catarse. Sob informações mal educadas, grotescas, estimulando o ódio, suscitando suspeita sobre interesses das camadas mais elevadas, é difícil negar que, de fato, como sociedades, abraçam o culto do poder irresponsável, convocando ditaduras para atendê-las.

A consulta feita à multidão, no julgamento de Jesus, foi uma demonstração aberta do que há de pior nos porões da história, onde empilhamos fatos históricos degradantes, como a tortura e o assassinato clandestino de insurgentes. O enforcamento público e esquartejamento de Tiradentes não nos são estranhos. Compreenderíamos algo que nos ligaria à “Marcha da Família” que serviu para legitimar um Golpe de Estado, em 1964. Gente na rua nem sempre é sinônimo de “democracia”, ou vontade popular. Mussolini marchou com 40 mil pessoas em Roma, na chamada marcha violenta. Neo-nazistas marcharam nas ruas de Kiev, ano passado. A Ku Klux Klan marchou em Washington. Não basta ter gente na rua para se dizer que temos uma manifestação democrática, como lembrou meu amigo R.César Barreto Jr.

Uma condenação política à morte, difere muito da morte biológica das criaturas da natureza. Ou seja, a morte compõe o lugar do mistério que se quer desvendar mas não se consegue. É uma espécie de buraco negro no espaço da existência humana, lugar onde a angústia de ser humano e finito é apaziguada de uma vez por todas. A angústia – quando se pergunta: “morrer por quê”? –, conforme Heidegger é, dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquilo que pode reconduzir alguém ao encontro de sua totalidade, sua plenitude. Através da morte em favor de outros; morte por uma causa de alto valor humanitário. Quando oculta-se a necessidade de renovação, como sociedade, enquanto esse alguém ressuscitaria solidária e incessantemente a vida digna, a liberdade, juntamente com o coletivo a seu redor.

O texto bíblico escapa à descrição, e vai além. Por quê? Certamente porque a Ressurreição é um ato de fé, como a esperança que transcende à compreensão humana. A sensibilidade ao acontecimento da ressurreição e seus significados deve ser tudo que importa, na narrativa evangélica joanina: o Ressuscitado se apresenta corporalmente, de modo gradual, entre seus discípulos. Há sinais no sepulcro, agora vazio: lençóis abandonados, o sudário deixado de lado — a morte foi deixada para trás. Há pessoas portadoras de mensagens, enquanto a descrição da cena vai crescendo, impactando; enquanto se chama mais atenção para o acontecimento extraordinário da Ressurreição do Senhor. Cristo come com os discípulos, e com eles bebe o vinho da comunhão (eucharistia).

O ritmo aponta o progresso da fé na ressurreição: Jesus foi identificado, sua voz é reconhecida enquanto sua figura é seguramente visível. Em seu corpo estão as marcas da Paixão, os sofrimentos da tortura que o levaram à morte são visíveis em seu corpo. Jesus verdadeiramente ressuscitou, é a afirmação inquestionável do evangelista: um fundamento novo é introduzido na fé: qualquer homem ou mulher, mesmo quando submetido à morte, ressuscita com a confiança na justiça de Deus.

Falando da ressurreição do Senhor, falaremos também da intervenção de Deus na história dos sofredores – que estiveram ausentes nas manifestações ruidosas e espetaculares, recentes, nas grandes cidades brasileiras –, vítimas dos pecados das estruturas de poder; vítimas dos próprios pecados, conivência e omissão. Pecados da sociedade opressora que sustenta a injustiça e quer vê-la prevalecer. Os sacrificados na sociedade excludente, aquela em manifestações insistentes busca de cidadania privilegiada, diferenciada, nostálgica quanto às desigualdades admitidas em regimes autoritários, desde a história recente da nação. Todas as ressurreições do corpo: econômicas, políticas, sociais, além da ressurreição do próprio ser, passam a ser possíveis, sob o prisma da Ressurreição do Senhor.

Derval Dasilio

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. Inteligente matéria sobre

    Inteligente matéria sobre assunto muito pouco ventilado, a não ser em círculos bem restritos de teólogos!

    Quero dizer desde já que não tenho a pretenção de ser um teólogo, mas vejo que Jesus Cristo foi crucificado por quatro pecados básicos (os vértices do Santo Lenho):

    – O pecado dos doutores da Lei que ignoraram todos os sinais providos no Velho Testamento e não quiseram reconhecer o Messias. Pecado de fé.

    – O pecado do povo judeu quando rejeitou o Reino de Deus em troca (a Pedra Angular que os construtores desprezaram) do reino terrestre a ser libertado do jugo romano. A entrada triunfante de Jesus em Jerusalém no domingo e cinco dias depois o início de Seu Calvário, ilustram bem o fato.

    – O pecado contra a Lei cometido pelos Sumo Sacerdotes ao julgarem um inocente como culpado, mesmo sabendo disto. Estes completam o triângulo de cima, os pecados de espírito.

    – Finalmente, como sustentáculo do Madeiro ao solo, um pecado de corpo: o ato covarde de Pilatos que encaminha para a morte em cruz um inocente, sabendo disto, por medo de uma revolta do povo judeu ao não ser atendido em sua reivindicação, e de suas consequências  políticas (encadeamento histórico) em Roma.

    Quero desde já reiterar que não pretendo, de forma alguma, colocar uma culpa histórica (E quem seria eu para isso?) no povo judeu pelos fatos acima. Estou convencido que tais fatos ocorreriam em qualquer outro povo, desde que houvesse as semelhanças históricas.

  2. Muito bom texto

    Sou fã de Jesus Cristo ! Sou de esquerda. Minha opção é pelos pobres ! Ainda bem que em breve todos nós vamos morrer e assim a justiça será feita !

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