A entrevista de Oliver Sacks que virou documentário e transformou uma vida

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Oliver Sacks com óculos de mergulho
 
Jornal GGN – “Eu não posso fingir que eu não tenho medo. Mas o meu principal sentimento é só um: de gratidão. Eu tenho amado e tenho sido amado; Eu tenho ganhado muito e tenho dado algo em troca; Eu tenho lido, e viajado, e pensado, e escrito”. O trecho é do impactante artigo do neurologista Oliver Sacks, anunciando no The New York Times, em fevereiro de 2015, que morreria em breve de um câncer intratável.
 
A história do neurologista mais famoso do mundo, que lidava com pessoas com doenças e síndromes congênitas incuráveis, comoveu os países. Mas meses antes de sua morte, a jornalista Mônica Vasconcelos da BBC Brasil, sem saber o que passaria com o médico, o entrevistou.
 
A conversa de mais de uma hora virou um documentário, “My Sight and Learning to Swim” (Perdendo a Visão e Aprendendo a Nadar), produzido por Mônica e transmitido pela BBC este mês. Junto com ele, um relato reproduzido abaixo.
Da BBC Brasil
 

O neurologista britânico Oliver Sacks, o “Poeta da Medicina”, segundo o jornal The New York Times, morreu em Nova York, de câncer, em agosto de 2015, aos 82 anos de idade.

Sacks ficou conhecido no mundo por seus vários bestsellers, entre eles, O Homem Que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu, Um Antropólogo em Marte e Tempo de Despertar (estrelado em versão para o cinema por Robert De Niro e Robin Williams).

Em novembro de 2014, poucos meses antes de ser diagnosticado com câncer em fase terminal, Oliver Sacks foi entrevistado pela repórter da BBC Brasil Mônica Vasconcelos.

A entrevista está incluída no documentário apresentado por Mônica Losing My Sight and Learning to Swim (Perdendo a Visão e Aprendendo a Nadar, em tradução livre), que será transmitido para o mundo, em inglês, pelo BBC World Service, no dia 16 de outubro.

No depoimento a seguir, a repórter conta como foi seu encontro com Oliver Sacks – e as lições que aprendeu com ele.

Por que você está aqui? – perguntou-me Oliver Sacks, um pouco confuso.

Minha entrevista com o neurologista e escritor britânico Oliver Sacks teve um começo um pouco tenso. Ela aconteceu em novembro de 2014, no lindo apartamento onde ele vivia, em Nova York, com grandes janelas que se abriam para uma praça.

Como jornalista, minha missão era capturar a maneira única como Sacks via a diversidade da vida humana. E tentar mostrar como, ao ser confrontado com pessoas às voltas com doenças ou síndromes congênitas incuráveis, esse médico respondia de um jeito diferente.

Sim, ele percebia os enormes desafios que seus pacientes enfrentavam. Mas também se maravilhava com a inventividade, a variedade de respostas que nós, humanos, criamos quando certas portas, por uma razão ou outra, se fecham para nós.

Parece pouca coisa mas, ao descrever as experiências dos pacientes por esse prisma, Sacks ia, aos poucos, mudando a forma como nós, leitores, pensávamos as chamadas “deficiências”. Vendo por aquele ângulo, não havia mais vítimas ou figuras de pena.

A Mônica jornalista queria, então, levar aos quatro cantos do mundo, por meio de um documentário de rádio do BBC World Service, o pensamento libertador desse médico.

Mas secretamente, uma outra Mônica naquela sala queria dizer a Oliver Sacks que ele tinha feito uma diferença enorme na vida dela.

Monica Vasconcelos

Repórter da BBC Brasil lembra o encontro com o escritor Oliver Sacks em Nova York, em 2014

Deficiência Visual

Eu tenho uma distrofia degenerativa na retina chamada Retinose Pigmentar. Isso quer dizer que as células fotossensíveis na minha retina estão, aos poucos, morrendo. Não existe cura e não sei onde isso vai parar – mas minha visão já está bem ruim. E é possível que eu fique cega.

Pouco depois de ouvir esse diagnóstico, há uns 18 anos, uma pessoa colocou um livro na minha mão. Era A Ilha dos Daltônicos, de Oliver Sacks.

Esse foi o meu primeiro contato com o “olhar” do neurologista. E desde então, sigo pela vida com a voz sã e encorajadora desse homem no meu ouvido.

Sacks não entendeu, à primeira vista, por que a entrevistadora estava contando a história da família, do irmão que também tinha Retinose, do pai que sofria para aceitar a deficiência visual dos filhos.

Mas a atmosfera mudou – e a conversa passou a fluir – quando eu expliquei o efeito que A Ilha dos Daltônicos tinha tido na minha vida.

Pescaria Noturna

Agora com um sorriso na voz, Sacks começou a falar sobre o livro.

A Ilha dos Daltônicos relata uma visita de Oliver Sacks a uma ilha remota no Pacífico – Pingelap – onde grande parte da população tem uma síndrome congênita que afeta seus olhos chamada Acromatopsia. Como eu, esses ilhéus têm extrema sensibilidade à luz . Outra característica da síndrome é o daltonismo – ou seja, não conseguem ver cores.

“Eles usam chapéus para proteger os olhos da luminosidade, mas à noite se transformam. São os pescadores noturnos de Pingelap. Toda a pesca na ilha fica a cargo dessa cultura particular de deficientes – mas de certa forma, eficientes – com visão alterada”, disse Sacks.

O grupo de “eficientes” também dominava uma técnica particular de bordado, lembrou Sacks.

“Para olhos normais, em condições normais de luminosidade, seus bordados e sua arte parecem massas de cor caóticas e sem signiticado. Mas quando a noite cai e todos nós deixamos de ver por meio dos cones (células fotossensíveis que usamos para enxergar durante o dia), usando apenas os bastonetes (células fotossensíveis que usamos para enxergar à noite), você pode ver lindos padrões e imagens em termos de luminosidade e brilho.”

Oliver Sacks

Oliver Sacks ficou conhecido internacionalmente por seus vários bestsellers.

Deficiência ou eficiência?

“Cheguei (à ilha) todo arrogante, pensando, ‘eu tenho visão normal, consigo ver todas as cores, coitada dessa gente’. Mas me via conversando com meia dúzia de pessoas para quem (o coitado) era eu. Eles achavam que eu estava sendo ofuscado por essa coisa superficial que eu chamava de ‘cor’, algo provavelmente sem importância. E enquanto isso, eu deixava de perceber a real essência visual do mundo: luminosidade, textura, profundidade etc.”

Enquanto Sacks recordava suas descobertas na ilha Pingelap, eu ia sentindo a força libertadora daquele pensamento, a mesma que sentira ao ler seu livro, tantos anos atrás.

“Seu livro foi uma revelação para mim”, eu disse.

“Se você me permite perguntar, como é sua visão? Como você descreveria seu mundo visual?”

Experiência compartilhada

Quando descrevi minhas estratégias para viver com cada vez menos visão, descobri, surpresa, que Oliver Sacks conhecia meus “truques”. Cego em um olho por conta de um tumor e parcialmente surdo devido à idade, agora era ele quem me contava suas experiências.

Ele também andava no lado da rua onde havia sombra. E se assustava quando, de repente, uma pessoa surgia no seu reduzido campo de visão.

“Sou cego em um olho e tenho catarata e outros problemas no outro olho. A catarata gera uma névoa luminosa que provoca uma cegueira parcial, então eu evito luzes fortes no meu olho, embora precise de boa iluminação naquilo que estou olhando.”

A névoa luminosa também me acompanhava em dias ensolarados… mas em um aspecto minha estratégia se diferenciava da dele: eu me recusava – e ainda me recuso – a usar uma bengala branca, um símbolo da deficiência visual.

“Sou bem vaidosa”, confessei. “Além disso, quando estou em áreas cobertas, protegidas da luz, me sinto mais confortável. As pessoas oferecem ajuda e não quero que fiquem constrangidas. Acho difícil administrar esse símbolo da cegueira.”

Falei também de um sonho que tenho: possuir uma bengala que seja linda, um verdadeiro objeto de desejo.

“Eu gostaria de convidar um designer incrível para criar bengalas maravilhosas, objetos bonitos que eu teria prazer em ter comigo e que também me ajudariam a andar por aí.”

Oliver Sacks me escutava em silêncio. De repente, se levantou e disse: “Me aguarde um momento”.

Meio sem entender, fiquei ali naquela sala imensa, com paredes forradas de livros, um piano ao canto, a mesa de trabalho de Sacks ao meu lado.

Bengalas e Calçadeiras

Quando o médico voltou, ouvi um barulhinho de madeira batendo em madeira. Não acreditei. “São as suas bengalas?”, perguntei, rindo.

Ele também ria. “Você é jovem e bonita. Não sou nenhum dos dois e não acho que seja vaidoso. Uso bengala sem orgulho ou vergonha porque tenho dificuldade em me equilibrar. Tenho uma coleção grande, mas aqui estão quatro delas.”

Mais uma vantagem de não se enxergar bem, pensei… todo mundo fica jovem e bonito. Ou quem sabe beleza ganhe novos significados?

O fato é, eu estava adorando aquele encontro. Me apaixonei pela irreverência e espírito lúdico do meu entrevistado.

Sacks me entregou sua bengala favorita, de cor laranja forte, cheia de elásticos coloridos no punho.

“(Os elásticos) dão firmeza para as mãos e também permitem que eu coloque a bengala contra a parede sem que ela caia. Mas o principal é, tornam essa a minha bengala – não uma bengala qualquer.”

Agradeci muito pelo privilégio de conhecer as bengalas de Oliver Sacks. Ainda rindo, ele disse: “Isso porque você ainda não conhece minha coleção de calçadeiras”.

árvores no outono no Central Park, em Nova York

Oliver Sacks gostava de admirar as árvores no outono dourado em Nova York.

Seu jeito de nadar

Também falamos do lado mais difícil. Há anos, venho aprendendo a ver o mundo de um jeito diferente e na maior parte do tempo me acho uma pessoa de sorte. Mas não consigo transferir minha vivência interior para o outro, em particular, para as pessoas queridas. Sei que a minha perda de visão afeta minha família, em particular, meu pai.

Como expressar a riqueza da minha experiência de vida? Como falar da Mônica que minha vivência particular vai aos poucos moldando? Como explicar que, sim, eu não escolheria perder a visão. Mas, se essa porta se fecha, que portas estão se abrindo para mim?

Perguntei a Oliver Sacks o que ele diria a uma mãe cujo filho perdeu a visão por alguma razão.

A resposta me comoveu.

“Meu pai nadou até os 94 anos e eu nado todos os dias. Adoro estar embaixo d’água. (Quando nado), não me sinto cego, surdo, manco e com 81 anos. Só sinto o prazer de nadar. Temos de encontrar nosso jeito de nadar, aquilo que nos vem mais naturalmente e com alegria. Para cada pessoa, existe um equivalente ao nadar.”

Para mim, no entanto, o momento mais poético do meu encontro com Oliver Sacks não foi capturado pelo microfone da BBC. Após a entrevista, ele me chamou para perto da janela e perguntou: “Você consegue ver as cores das árvores na praça?”

Bem, na verdade, eu não conseguia. Mas vejo as árvores agora, na minha lembrança, recriadas pelas palavras dele e vistas pelos olhos amorosos do homem que, durante anos, admirou os outonos dourados naquela praça em Nova York.

capa do livro

O escritor lançou sua autobiografia três meses antes de morrer, em 2015.

Despedida

Em uma hora de conversa, Sacks falou de muita coisa. Ele continuava ativo, escrevendo e viajando, mas o ritmo era mais lento. Esse era o lado bom de envelhecer, explicou:

“De certa forma, fico contente por estar com 80 anos, porque (a idade) traz um sentimento paradoxal de liberdade e lazer. As urgências de antes já não me oprimem.”

Refletindo sobre as possíveis “vantagens” de se perder um olho, o escritor falou de pintura e do pintor Rembrandt:

“Hoje, vivo em um mundo totalmente plano, vejo superfícies sobrepostas umas sobre as outras em vez de objetos dispostos em profundidade. Isso significa que vejo o mundo como se fosse uma fotografia, ou uma fotografia em movimento. Acho que isso aumentou um certo prazer estético e admiração por pinturas.”

“Aliás, já foi sugerido que Rembrandt e outros artistas talvez tivessem apenas um olho porque os olhos são tão divergentes que não poderiam ter sido usados simultaneamente.”

Em fevereiro de 2015, em artigo publicado no New York Times, Oliver Sacks anunciou que tinha sido diagnosticado com um câncer terminal. Sua autobiografia,On the Move: A Life, foi lançada em maio. O escritor morreu três meses depois.

Losing My Sight and Learning to Swim será transmitido pelo Serviço Mundial da BBC em inglês no dia 19 de outubro às 21h, horário do Brasil, e pode ser ouvido pelo site. O programa também ficará disponível para ouvir on demand ou para ser baixado como podcast.

 

Da BBC Brasil

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

2 Comentários

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  1. Ele tambem tinha cegueira

    Ele tambem tinha cegueira facial e uma vez quase esbarrou em um barbudo entrando em um banheiro;  ele disse “desculpe me” e descobriu que o homem barbudo era ele em um espelho(!).

    Um homem admiravel em todos os sentidos!

  2. Bom saber,

    “Tempo de Despertar”, um dos melhores filmes que já assisti, mas não sabia que tinha base numa obra literária, que provavelmente é ainda melhor! Vou procurar ler. 

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