A pandemia entre povos tradicionais: racismo institucional e apagão epidemiológico, por Marcius V. Coutinho

O presente texto busca pensar sobre possíveis causas e consequências da incidência descontrolada da pandemia nos Territórios Tradicionais.

Povos indígenas ergueram barreiras sanitárias e tiveram de conviver com a covid-19 e as invasões territoriais, que não cessaram. Foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá

A pandemia do coronavírus entre povos e comunidades tradicionais: racismo institucional e apagão epidemiológico

por Marcius Vinicius Coutinho

Segundo dados consolidados até o dia 30 de setembro de 2020 pelo “Observatório da Covid-19 nos Quilombos”[2], parceria entre a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Instituto Socioambiental (ISA), foram confirmados 4.598 casos de Covid-19, mais 1.219 pacientes monitorados e 166 óbitos de quilombolas. A metodologia adotada consiste na coleta de dados de modo autônomo nos Estados onde a CONAQ tem representação. O Observatório alerta para a subnotificação de casos, pois as secretarias de saúde não informam quando os óbitos e pacientes são quilombolas.

A “Emergência Indígena” – frente composta de movimentos indígenas[3] para o enfrentamento do coronavírus monitora diariamente os casos e formula estratégias de ação nos territórios. Até o dia 2 de outubro, foram 34.608 pacientes confirmados, com 836 óbitos e 158 povos[4] afetados. A metodologia de coleta e análise dos dados[5] foi feita pelo “Comitê Nacional pela Vida e Memória dos Povos Indígenas” que complementa os dados coletados nas organizações de base com aqueles gerados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI).

Ao examinar os efeitos da pandemia sobre os Povos e Comunidades Tradicionais deve-se atentar que Povos Indígenas e Comunidades Quilombolas são apenas dois dos 29 segmentos[6] listados no Decreto Nº 8.750 de 2016[7], que instituiu o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Os sujeitos destas identidades políticas formam uma população estimada em 25 milhões de pessoas que ocupam aproximadamente um quarto do território brasileiro.

O presente texto busca pensar sobre possíveis causas e consequências da incidência descontrolada da pandemia nos Territórios Tradicionais. Pretende-se também demarcar o terreno da análise, no intuito de dar visibilidade aos desafios desta população em face da renúncia do Governo Federal em atuar ou criar as condições para que a dinâmica da doença seja amplamente conhecida e seus impactos na categoria sejam eficazmente reduzidos.

Certo senso comum tende a reduzir equivocadamente a categoria Povos e Comunidades Tradicionais, às Comunidades Remanescentes de Quilombos e Povos Indígenas. Essa redução ou invisibilização também reflete os diferentes tempos de organização internas e de assunção das suas identidades políticas, bem como denota a ausência de dispositivos legais que garantam direito aos seus territórios[8] e acesso às políticas públicas, mormente as de saúde. Embora a Constituição Federal assegure expressamente o direito dos Povos Indígenas (arts. 231 e 232) e das Comunidades Quilombolas (art. 68 do ADCT), nos demais segmentos, em que pese o teor dos arts. 215 e 216, o reconhecimento de seus direitos territoriais encontra-se desarticuladamente distribuído em diversos instrumentos legais (ALMEIDA, 2008; SHANKLAND et al, 2016).

O Decreto nº 6.040 de 2007 criou a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, que resulta da luta política pelo reconhecimento do Estado da sociodiversidade desses grupos, tal como previsto pela Constituição Federal. Apesar de representar importante avanço, regulamentando espaço institucionalizado para formulação e fiscalização de políticas públicas, a política em questão não construiu a descentralização necessária para que os poderes municipais incorporassem seus princípios e objetivos. Dessa forma, coube ao Governo Federal concentrar a tarefa de construir com a categoria ações e programas que incidissem nos Territórios Tradicionais na perspectiva de superar as vulnerabilidades e garantir a participação cidadã com valorização de seus complexos culturais a partir das questões raciais, laborais, étnicas, geracionais, de gênero, religiosas e ancestrais.

A execução da Política Nacional nos eixos estruturantes de saúde, educação, geração de renda e acesso aos territórios era coordenada primeiramente pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, e a partir de 2016, pelo CNPCT.  Os desafios da categoria no acesso à políticas públicas aumentaram desde o golpe parlamentar de 2016, o que exige destacar no período três eventos que cumulativamente concorrem para a grave situação de vulnerabilidade da categoria, potencializada pela pandemia do coronavírus.

O primeiro deles veio com a promulgação da Emenda Constitucional Nº 95, que condicionou o montante das despesas primárias do orçamento público, incluindo as de saúde, à variação inflacionária do ano anterior. O segundo evento foi a criação, em 2019, da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (SEAF). Subordinado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), este órgão incorporou parte das competências do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), outrora responsável por políticas públicas importantes para a categoria. Vale mencionar que o titular da SEAF, responsável pela regularização fundiária de terras tradicionalmente ocupadas por diversos segmentos, trata-se de histórica liderança ruralista, cujos interesses e valores se opõem frontalmente aos da categoria que tem em seus Territórios Tradicionais elementos fundamentais para sua reprodução material, social, simbólica e cultural.

O terceiro e recente evento trata dos 16 vetos presidenciais ao PL Nº 1.142, gerador da Lei Nº 14.021, de julho de 2020, que criou o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 para indígenas e demais Povos e Comunidades Tradicionais. Parte dos vetos está relacionada ao acesso universal à água potável, à distribuição de material de higiene e de desinfecção de superfícies, à oferta emergencial de leitos de UTI, à aquisição de aparelhos de ventilação mecânica e à obrigatoriedade do SUS em registrar e notificar raça ou cor dos pacientes de Covid-19.

Em termos práticos, estes e os demais vetos promovem um “apagão” sanitário e epidemiológico sobre a dinâmica de transmissão do coronavírus, evidenciando uma das faces do racismo institucional brasileiro, que lança os Povos e Comunidades Tradicionais à sua própria sorte. Não existem dados disponíveis sobre a incidência da doença na categoria e, por seu turno, em seus territórios. Assim, cada segmento vem tentando, ao seu modo, como assinalado no início do texto, enfrentar a pandemia, através de campanhas de arrecadação, redes para monitoramento de casos e de solidariedade para distribuição de cestas básicas, água potável e material de higiene.

De tal maneira, o termo “genocídio” usado por representantes de diversos segmentos e vocalizado por atores do mundo político e jurídico adquire força explicativa para a situação da pandemia na categoria quando se tem conhecimento das mortes provocadas pela Covid-19. Uma das possíveis formas de garantir direito à vida e à saúde do grupo seria dotar o CNPCT de recursos para o mapeamento da dinâmica do coronavírus nos territórios. Assim, o Conselho poderia liderar a formulação e a execução de planos de contingência, de modo a levar atenção primária de saúde aos diversos segmentos, considerando a gravidade deste momento para a população em geral e em especial para os grupos sociais mais vulneráveis.

Marcius Vinicius Coutinho – doutorando em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (NEPAC/IFCH/UNICAMP).

NOTAS:

  1. Agradeço à Claudia Regina Sala de Pinho e Kátia Favilla pela leitura e sugestões ao texto.
  2. Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/, acessado em 01 de outubro de 2020.
  3. A frente é formada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), Conselho do Povo Terena, Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE), Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), Grande Assembleia do Povo Guarani Kaiowá (ATY GUASU) e Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).
  4. Disponível em: http://emergenciaindigena.apib.info/dados_covid19/, acesso em 2 de outubro de 2020.
  5. As fontes dos dados do Comitê são: organizações indígenas de base da APIB, Frentes de enfrentamento ao Covid-19 no Brasil que colaboram com a APIB, SESAI, Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde e Ministério Público Federal.
  6. Os 29 segmentos que integram o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais são povos indígenas; comunidades quilombolas; povos e comunidades de terreiro/povos e comunidades de matriz africana; povos (roma) ciganos; pescadores artesanais; extrativistas; extrativistas costeiros e marinhos; caiçaras; faxinalenses; benzedeiros; ilhéus; raizeiros; geraizeiros; caatingueiros; vazanteiros; veredeiros; apanhadores de flores sempre vivas; pantaneiros; morroquianos; povo pomerano; catadores de mangaba; quebradeiras de coco babaçu; retireiros do Araguaia; comunidades de fundos e fechos de pasto; ribeirinhos; cipozeiros; andirobeiros; caboclos; e juventude de povos e comunidades tradicionais.
  7. Cumpre destacar que os segmentos listados no Decreto não representam a totalidade de identidades de povos e comunidades tradicionais que assim se definem. Tal disposição reflete decisão política por representatividade em um limitado espaço de participação no interior do aparato estatal.
  8. Cf. II Plano Nacional de Reforma Agrária de 2004, disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/pp/a_pdfdht/plano_nac_reforma_agraria_2.pdf, acesso em 7 de agosto de 2020.

REFERÊNCIAS:

– ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008.

– SHANKLAND, Alex et al. ‘Traditional Peoples’ and the Struggle for Inclusive Land Governance in Brazil. Institute of Development Studies, 2016.

Do portal da Anpocs: https://anpocs.com/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2472-boletim-a-questao-etnico-racial-em-tempos-de-crise-n-29

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