Alguns esclarecimentos sobre a pandemia e o rastreamento de contatos, por Ricardo Knudsen

A decisão genocida de testar só paciente graves, tomada pelo MS, não permitiu identificar e isolar os transmissores pré-sintomáticos, assintomáticos ou com sintomas leves.

Alguns esclarecimentos sobre a pandemia e o rastreamento de contatos

por Ricardo Knudsen

Respondendo à sua questão sobre “…testagem e rastreamento de contatos em um país de dimensões continentais”. Creio que as dificuldades não são maiores do que em países como Alemanha, Espanha, Itália, Reino Unido, Coréia do Sul etc. O rastreamento é sempre organizado por unidades menores, tipicamente cidades, províncias, estados. Países com dimensões continentais teriam a vantagem de uma coordenação central e das distâncias funcionarem como barreiras naturais, permitindo isolar regiões e limitar a propagação. Foi o que ocorreu em Wuhan, mas não ocorreu em SP.

Não há razão para um estado infranacional brasileiro ou estadunidense se comportar muito diversamente da Alemanha, Espanha ou Coréia do Sul, caso se apliquem as mesmas políticas de isolamento e rastreamento. Veja que populações, áreas, densidade demográfica urbana, são comparáveis. Os estados infranacionais têm administração autônoma e recursos de Saúde que são geridos localmente.

Os argumentos de pobreza ou de ausência de insumos para testagem também não se justificam. África do Sul, Tunísia, Tailândia e Argentina, países com PIB per capita similares ou inferiores ao nosso, foram atingidos pela pandemia na mesma época de São Paulo (que foi o epicentro no Brasil). Todos faziam, na 6ª semana após 5 mortes (início de contagem em meu artigo), mais de 10 testes/caso positivo. Tailândia, mais de 100 Testes/Caso, Tunísia = 43 Testes/Caso, África do Sul = 28 Testes/Caso. São Paulo fazia (ainda faz!) apenas cerca de 3 Testes/Caso. Nesses países, o número de mortes por milhão é uma fração do de SP. Se havia recursos e insumos de testagem para esses países, por que não havia para o Brasil?

Sobre pobreza e custos da pandemia, veja que nas figuras 8 e 9 e nas tabelas 4 e 5 do meu artigo mostra-se que as despesas totais caem quando se aumenta o número de Testes/Caso. Como rastreamento e isolamento de infectados reduzem o número de casos, caem os custos de internação, que são muito superiores ao de testagem.

Não é difícil entender porque o rastreamento de contatos reduz custos, em comparação com testar só doentes graves: um teste PCR custa cerca de US$ 50, uma internação custa em média US$ 4.000. Com 3 Testes/Caso, sem fazer rastreamento, estimei (ver artigo) cerca de 500 internações por milhão de habitantes em SP (na 6ª semana). Com 12 Testes/Caso, a Argentina teria cerca de 50 internações por milhão de habitantes na mesma época, 10% de SP. Com 28 Testes/Caso, a África do Sul teria 25 internações por milhão. Com 100 Testes/Caso, a Tailândia teria…4 hospitalizações por milhão de habitantes. Testando 30 vezes mais, a Tailândia teria tido 100 vezes menos hospitalizações do que SP. Isso está explicado no artigo (4.2 – Some Economic aspects of 3T and DIT strategies).

Voltando à questão: por que não havia insumos para testes e por que nunca fizemos rastreamento de contatos? Foram decisões técnicas, conceituais, erradas de Mandetta, Gabbardo, Uip, Germann e companhia. Em meados de março, a OMS já recomendava fortemente o rastreamento de contatos e testagem de todos os suspeitos. Mostro a seguir algumas das respostas de nossas “brilhantes” autoridades de saúde, publicadas na imprensa:

1 – “Mandetta critica recomendação da OMS sobre realização de testes”, estadão Conteúdo, (18/03/20)  https://www.istoedinheiro.com.br/mandetta-critica-recomendacao-da-oms-sobre-realizacao-de-testes/

“”A Organização Mundial da Saúde (OMS), no senhor presidente da organização, Tedros (Adhanom Ghebreyesus), ele coloca que todo o planeta deve fazer o teste em 100% das pessoas. Primeiro, isso do ponto de vista sanitário é um grande desperdício de recursos preciosos para as nações”, disse (Mandetta).”

“Em locais com transmissão comunitária da doença, quando já não é possível apontar quem infectou quem, o governo tem adotado a estratégia de priorizar testes de pacientes mais graves.”

Mandetta ridiculariza o rastreamento de contatos, como sendo testar 100% das pessoas, o que é falso, e como um desperdício de recursos. A decisão genocida de testar só paciente graves, tomada pelo MS, não permitiu identificar e isolar os transmissores pré-sintomáticos, assintomáticos ou com sintomas leves. Com isso, a pandemia se propagou exponencialmente.

2 – “Rede pública de SP vai aplicar testes de coronavírus apenas em pacientes internados, diz governo”, G! (14/03/20). https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/03/14/rede-publica-de-sp-vai-aplicar-testes-de-coronavirus-apenas-em-pacientes-internados-diz-governo.ghtml

“Nós vamos deixar de fazer exames para aqueles pacientes não internados. Só faremos exames nos pacientes internados, nos pacientes em clínica sentinela e pacientes de pesquisa. Isto é dar bom gasto ao dinheiro público”, disse David Uip.

Dar bom gasto ao dinheiro público! Trocaram testes de 50 dólares por internações de 4 mil dólares!  O dano maior, naturalmente, são as vidas perdidas.

3 –  “Coronavírus: Brasil fará mais testes que a Coreia do Sul, diz ministério”, BOL (09/04/20).  https://www.bol.uol.com.br/noticias/2020/04/09/coronavirus-brasil-ja-fez-mais-testes-que-a-coreia-do-sul-diz-ministerio.htm

“Segundo o secretário-executivo João Gabbardo dos Reis, a expectativa é de que o país faça mais testes do que a Coreia do Sul, que fez 450 mil até então. “Tudo que se diz da Coreia é que ela testou, testou, testou. A Coreia testou 450 mil pessoas. A Coreia que é o grande exemplo mundial não fez 500 mil testes até agora. Nós vamos fazer muito mais”.”

Ou Gabbardo nada entende de epidemias e rastreamento de contatos, ou simplesmente enganava a opinião pública. A Coréia fez 450 mil testes nas primeiras semanas da pandemia. Fazia até 18 mil testes por dia no início de março (a capacidade de SP na época era de 1 mil testes/dia), rastreando contatos e fazendo 40 Testes/Caso. Com isso, estancaram a epidemia com cerca de 10 mil casos, e mesmo hoje, tem menos de 300 mortes totais – cerca de 6 mortes/milhão de habitantes. No Brasil já estamos em 286 mortes/milhão, 60 mil mortes totais.

Gabbardo omitiu/mentiu, não informando que, com a política de testar só doentes graves, atingiríamos o número total de testes da Coréia quando tivéssemos centenas de milhares de casos (lembrar que com testagem baixa, o número de casos é subestimado em até 10 x) e muitos milhares de mortos.

Em 16/06/2020, o governo de SP informou que o estado havia feito 602 mil testes (somando rede privada e pública), para um total de 181.460 casos confirmados e 10,8 mil mortos. Eram 13,7 testes por 1.000 habitantes, mas apenas 3,3 Testes/Caso. Na mesma data, a Coréia do Sul havia feito 1,1 milhão de testes, tinha 12 mil casos e 276 mortos. Eram 21,2 testes por 1.000 habitantes, apenas 50% maior do que SP, mas 90 Testes/Caso, quase 30 vezes maior do que SP, resultado do rastreamento de contatos.

(“São Paulo ultrapassa 600 mil testes de coronavirus e mira triplicar checagem”. Portal do Governo do Estado de São Paulo (16/06/2020). https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/sao-paulo-ultrapassa-600-mil-testes-de-coronavirus-e-mira-triplicar-checagem-2/ ).

Em SP, já são 340 mortos por milhão, e mal chegamos ao pico. As estatísticas mostram que o número de mortos no pico é tipicamente multiplicado por 3 até o “fim” da epidemia, o que significa que poderíamos chegar a 750 mortos/milhão. Isso para países que fizeram lockdown e implantaram rastreamento de contatos na reabertura. SP e o resto do Brasil não fizeram isso, portanto não me surpreenderia se ultrapassarmos em muito os mil mortos/milhão.

Trump e seu staff usaram a mesma argumentação enganadora de Gabbardo em uma conferência de imprensa, em 11/05/20, como segue :

“THE PRESIDENT:  We’re here today to provide an update on the unprecedented testing capacity developed by the United States — the most advanced and robust testing system anywhere in the world, by far.  This afternoon, I’ll also announce new steps that we’re taking to make tests even more widely available.”…

“No other country in the world comes close to the total numbers.  Again, as the President has said, today we will top over 9 million tests.  And if you look at per capita — everyone talks about South Korea being the standard — today, we will have done more than twice the per capita rate of testing that was accomplished in South Korea.  No matter how you look at it, America is leading the world in testing.”

https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/remarks-president-trump-press-briefing-covid-19-testing/

Como meu artigo explica, uma alta taxa de testes per capita pode indicar simplesmente uma epidemia fora de controle, com uma explosão de casos (o estado de NY chegou a mais de 1.200 casos por milhão de habitantes) e a consequente explosão de testes só para diagnosticar os pacientes internados.

A eficácia em reduzir casos e mortes se relaciona com testes por caso, não testes per capita. Em 11/05/20, os USA tinham 240 mortos por milhão de habitantes, a Coréia do Sul tinha 5 mortos por milhão. A Coréia do Sul tinha feito 87 Testes/Caso, os USA apenas 11 Testes/Caso, após um início de testagem muito mais baixo (cerca de 7 testes/caso). Na mesma data, os USA faziam 28 testes por 1.000 habitantes, e a Coréia podia dar-se ao luxo de fazer “apenas” 13 testes por 1.000 hab., pois o número de novos casos era baixíssimo. O governo dos USA corria atrás de conter um desastre epidemiológico, dada a sua negligência, ao passo que a Coréia vivia um período de relativa normalidade, com poucos novos casos e mortes.

2 Comentários

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  1. O Brasil tem um sistema de vigilância epidemiológica de abrangência nacional, implantado desde 1976, uma das medidas tomadas após o fiasco da epidemia de meningite dos anos 1970.
    O que vem sendo chamado de “rastreamento de contatos” é uma prática rotineira dos serviços de vigilância epidemiológica para o controle das doenças de notificação compulsória no país. Isso é feito de rotina diante da ocorrência de tuberculose, hanseníase, meningite, sarampo, etc.
    A existência do programa de saúde da família, e dos seus agentes comunitários de saúde amplia a capacidade de realização da atividade de busca ativa de casos, ou rastreamento de contatos.
    Houve sim uma decisão equivocada, de privilegiar o investimento em ações de alta complexidade, em detrimento da ação da atenção primária e da vigilância epidemiológica, com as consequências que estamos verificando agora.

  2. Existe um erro crasso de avaliação. Não estamos discutindo com gente,estamos discutindo com negociantes que só pensam em números e percentuais.
    Para se ter uma ideia,desde o começo do ano até agora,morreram no mundo, segundo o site worldometer,cerca de 30 milhões de pessoas das mais diversas causas,covid19 inclusa.
    Oras,na cabeça dessa gente a covid matou até agora cerca de 500 mil pessoas,ou seja,menos de 2% do total.
    Para efeito de comparação,no mesmo site,podemos constatar que nesse mesmo período morreram quase 850 mil pessoas de fome no mundo,quase o dobro da covid 19.
    Com essa gente que não se sensibiliza com a fome, dá para imaginar qualquer discussão sobre testagem ou não de pessoas? Essa gente pode ter solução para tudo,e até tem,mas eles somente entendem a linguagem do cifrão.Sem essa linguagem são uns completos analfabetos.

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