Dengue: ‘surto anunciado’ e população suscetível – análise de Rivaldo Venâncio

Infelizmente, a ausência de políticas públicas se perpetua há séculos. Temos uma configuração nas regiões metropolitanas do Brasil que poderíamos chamar de um verdadeiro apartheid social.

do CEE Fiocruz

Dengue: ‘surto anunciado’ e população suscetível – análise de Rivaldo Venâncio

por Daiane Batista

O Ministério da Saúde alertou no início de janeiro de 2020 para possibilidade de um surto de dengue em algumas regiões do país, a partir de março. O comunicado chama atenção para existência de um sorotipo novo do vírus – o sorotipo 2 – que há dez anos não circulava no Brasil. Apesar do alerta, enfrentar o surto anunciado ainda está longe de ser um empreendimento bem-sucedido. O médico infectologista Rivaldo Venâncio, pesquisador associado do CEE-Fiocruz, explica que, para que ocorra um surto ou uma epidemia de dengue são necessárias três condições: um sorotipo circulante do vírus da doença; uma população suscetível a esse vírus circulante; e um transmissor, nesse caso, o mosquito Aedes aegypti. Rivaldo analisa essas condições, nesta entrevista ao blog.

Existem quatro sorotipos do vírus da dengue, e o sistema imunológico do corpo humano defende-se de apenas da variação infectante, explica. “Ou seja, quem contraiu dengue tipo 1 só pode ter novamente a doença se esta for causada pelo tipo 2, 3 ou 4, pois a infecção pelo tipo 1 estimulou o organismo a produzir anticorpos contra este sorotipo 1”.

O sorotipo 2, que ameaça a população, circulou intensamente em 2019 em estados como Minas Gerais e São Paulo e em algumas localidades da região Centro-Oeste, em Goiás e Mato Grosso do Sul. Agora pode se estender para locais nos quais não havia circulado antes. “No caso do Sudeste, temos Rio de Janeiro e Espírito Santo com grandes potenciais de ocorrência e em nove estados da região Nordeste onde o vírus circulou muito pouco. Existe, portanto, uma população suscetível e sem anticorpos contra esse tipo do vírus, nesses 11 estados”, analisa.

Infelizmente, a ausência de políticas públicas se perpetua há séculos. Temos uma configuração nas regiões metropolitanas do Brasil que poderíamos chamar de um verdadeiro apartheid social, fruto de 500 anos de uma política econômica excludente, feita para beneficiar pequenas parcelas da população

Na avaliação do infectologista, a reincidência do vírus no país se dá, principalmente, devido a fatores ligados à atividade humana como a produção de lixo urbano, cuja coleta e descarte são feitos de forma precária, sobretudo nas regiões metropolitanas. O lixo poderá conter objetos que acumulem água da chuva, por exemplo, tornando-se focos de proliferação do mosquito Aedes. Soma-se a isso o fornecimento irregular da água para o consumo doméstico que continua um problema crônico em boa parte das regiões metropolitanas. A tendência da população é armazenar a água, quando está disponível, para o consumo nos dias em que estiver faltando; muitas vezes, esse armazenamento é feito de forma improvisada, sem que os reservatórios sejam adequadamente vedados, tornando-se potenciais focos de proliferação do mosquito transmissor. “Isso é uma bofetada na cara da população. No Rio de Janeiro, por exemplo, em pleno século XXI, estamos há um mês com água de aspecto ruim [ver aqui], sem efetivamente nenhuma resposta [das autoridades]”, observa. “Essa situação é desconfortante, tanto do ponto de vista tecnológico, quanto do ponto de vista de saúde pública”. As condições macroambientais, como as chuvas em abundância, o calor em elevada intensidade, completam o quadro favorável à  transmissão do vírus da dengue.

Rivaldo explica, ainda, que a violência urbana e o desemprego, também, têm contribuído para esse quadro, no que diz respeito à proliferação do mosquito Aedes aegypti. “Sabemos que a violência que vivenciamos em algumas regiões metropolitanas do país têm dificultado o trabalho das secretarias municipais de Saúde nas suas ações de controle do mosquito em várias comunidades”, avalia. Já o desemprego, que alcança parcela elevada da população, explica, mantém mais pessoas no ambiente doméstico, suscetíveis ao mosquito, podendo ser infectadas e alimentar a cadeia de transmissão do vírus.

“Infelizmente, a ausência de políticas públicas se perpetua há séculos. Temos uma configuração nas regiões metropolitanas do Brasil que poderíamos chamar de um verdadeiro apartheid social, fruto de 500 anos de uma política econômica excludente, feita para beneficiar pequenas parcelas da população”, destaca.

Do ponto de vista do enfrentamento ao mosquito, Rivaldo aponta a tecnologia superada disponível. “Estamos utilizando há cerca de 120 anos a mesma técnica de controle do Aedes aegypti, que foi exitosa no início do século passado com Oswaldo Cruz, e depois com Clementino Fraga Filho, mas que, hoje, não oferece resposta para as dificuldades e complexidade do espaço urbano que vivenciamos”.

Para Rivaldo, a escolha está dada: “Ou olhamos para este espaço urbano com um olhar generoso e solidário e resolvemos esses problemas estruturais, ou continuaremos enfrentando epidemias de dengue, Zika e Chikungunya”, conclui.

Redação

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