A influência do ensino médico na saúde pública

Enviado por Demarchi

Da Carta Capital

Ensino médico é problema de saúde pública?

As escolas de Medicina não formam clínicos gerais capazes de oferecer atendimento básico, mas o Conselho Federal faz vista grossa.

Por Ricardo Palacios

Os testes padronizados fazem parte de nossa vida. Provas como vestibulares, Enem, exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), provas de proficiência em idiomas, concursos públicos, entre outras, pautam nossa vida, decidem o futuro de muitos de nós na vida cotidiana.

A padronização do teste implica em que todos os avaliados estão em condições semelhantes no momento do exame: perguntas semelhantes, mesmo tempo, examinadores com critérios harmonizados. As condições materiais de realização e qualificação da prova parecem justas por virtude da padronização. Pouco importa se essas condições padrão constituem uma limitação para quem é avaliado: por não estar em boas condições de saúde no dia da prova ou ficar particularmente nervoso nesse tipo de ambiente, por exemplo. Um candidato reprovado que estava com um forte resfriado em um teste no dia do exame poderia ser aprovado em outro dia, ou uma pessoa que tenha dificuldades em prestar testes pode demonstrar grandes habilidades e conhecimentos no seu dia a dia.

A história dos testes padronizados começou no século 7 com os Exames Imperiais para selecionar os Mandarins que governavam as províncias em nome do imperador da China. Os britânicos no meio da Revolução Industrial adotam a ideia para selecionar seus quadros burocráticos. Logo, a sociedade ocidental em sua totalidade incorpora os testes padronizados como forma de avaliação de mérito. Em princípio, os testes foram desenhados como classificatórios para selecionar os mais meritórios, o melhor entre os candidatos a serem selecionados como os vestibulares, mas também foram utilizadas para avaliar um mérito mínimo, aptidão para exercer uma tarefa ou função como o exame da OAB.

A justiça nas condições aparentes do teste padronizado também não leva em consideração a igualdade de oportunidades na aquisição de conhecimentos ou habilidades dos candidatos. Quem estudou direito numa faculdade que há anos não aprova nenhum estudante no exame da OAB terá menos oportunidades de ser bem sucedido na prova. Para esses estudantes, a prova não é equitativa porque o conhecimento exigido não foi oferecido de forma apropriada. Mesmo assim, muitas dessas faculdades continuam abertas.

Mas só teremos um exame padronizado se for definido antes qual será o padrão: a balança que determina o mérito dos avaliados. O mérito medido pelo teste padronizado não é relacionado com criatividade, capacidade de adaptação ou outras características associadas ao sucesso no mundo real; o mérito avaliado no teste padronizado é simplesmente o grau de ajuste com um padrão estabelecido. Por exemplo, ser aprovado no exame da OAB não indica que um advogado é brilhante e conduzirá os casos com habilidade e perícia, apenas garante que tem um nível de conhecimento que supera o mínimo aceitável para o que se espera de um advogado.

Assim chegamos a um ponto crítico dos testes padronizados: quem estabelece o padrão. As pessoas que estabelecem o padrão moldam o que querem dos candidatos e, portanto, o processo de formação desses candidatos. A criação de um padrão pode ser uma forma em que um grupo no poder legitima um processo de exclusão, como discuti em texto anterior sobre o vestibular da USP. Mas também pode ser um mecanismo social para garantir uma acreditação mínima para o exercício de uma função especializada, como o Exame da OAB. O impacto do teste padronizado, entretanto, depende das consequências reais do seu resultado, que fazem evidente o poder de quem estabelece o padrão. Assim, só entram na USP os que forem classificados pelo vestibular ou só vão advogar os que aprovarem o exame da OAB.

O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), em cumprimento de sua missão de promover a qualidade dos cuidados médicos para a população, realiza testes padronizados para avaliar os formandos de escolas médicas desde 2005. A partir de 2012, tornou os testes obrigatórios para quem quiser se registrar para exercer a Medicina no estado de São Paulo. A reprovação em 2012 e 2013, anos do teste obrigatório, foi de 54,5% e 59,2%, respectivamente entre os egressos das escolas médicas do estado (a íntegra os resultados). Esses resultados não incluem os poucos formandos (menos de 5%) que boicotaram o exame. Menos de quatro de cada dez médicos avaliados acertaram perguntas sobre diagnóstico de tuberculose, pneumonia em crianças ou manejo de hipertensão.

O que significam esses resultados? Que há uma dissociação entre a educação recebida pelos alunos de Medicina em São Paulo e o tipo ideal de médico proposto pelo Cremesp. O ensino médico atual em São Paulo não leva à formação de um clínico geral capaz de oferecer um bom atendimento básico à população, como espera o Cremesp. Não acredito que os quase três mil formandos reprovados nesses exames são um bando de estudantes que não se esforçam o suficiente, como alguns dizem dos que não são aprovados no exame da OAB. É provável que a maior parte desses egressos não tiveram a oportunidade de adquirir os conhecimentos e habilidades que são esperados conforme o padrão avaliado. Não dá para encarar o problema como um fracasso de muitos indivíduos. Há um sistema que está falhando em seu propósito de ensinar e que deve ser corrigido.

Mas essa prova traz uma situação inusitada em relação a testes padronizados: o exame do Cremesp é um exame sem poder. Nada acontece com os resultados.

O Cremesp é obrigado a dar o registro a todos aqueles reprovados porque não há uma lei que o impeça. Os resultados de cada faculdade não são revelados publicamente e terminam em discussões a porta fechada sem consequências aparentes. Ainda mais, o Conselho Federal de Medicina (CFM) continua a se opor à realização deste tipo de exame em nível nacional e o projeto de lei que autorizaria somente os aprovados a exercer a profissão continua murchando no Congresso. Contraste evidente com o clamor do CFM por examinar aos egressos de Medicina formados no exterior. Para os pacientes é irrelevante se o médico estudou no Brasil ou no exterior. O CFM precisaria avaliar a formação de todos os médicos que exercem a Medicina no país como acontece nos Estados Unidos, Canadá, França ou Reino Unido. Mesmo diante da evidência fornecida pelo Cremesp, o CFM se recusa a diagnosticar e tratar os graves problemas da formação médica em nível nacional. Preocupa-se, com justiça, da qualidade dos futuros formandos das novas escolas médicas propostas pelo governo federal, mas faz vista grossa para a qualidade dos médicos que estão saindo hoje das faculdades em todo o país.

Não adianta criar para a Medicina um exame análogo ao da OAB que deixa ano trás ano bacharéis em Direito errantes sem poder exercer a advocacia. E que ainda cria a perversão de “cursinhos” remediais para passar na OAB, evidenciando que o problema é a falta de faculdades que ofereçam a oportunidade de aprendizado a seus alunos. Precisamos que a educação médica, seja em universidade pública ou particular, atenda as expectativas da sociedade de formar clínicos gerais que se ajustem a um padrão mínimo para permitir o exercício médico. O exame aos formandos de Medicina não pode ser instituído como ferramenta para penalizar estudantes, deve ser indicador e garantia para a população de que as escolas de Medicina estão cumprindo com sua função social. A formação médica não pode virar o fracasso coletivo que hoje viraram o conjunto de escolas de direito com índices de reprovação que se repetem ano trás ano. O Brasil precisa de mais e melhores médicos a cada dia. Não podemos aceitar que o Cremesp continue obrigado a conceder o registro aos médicos reprovados no exame de São Paulo sem que nada seja feito e que permaneçamos ignorantes sobre a qualidade dos formandos das outras 26 unidades da federação. O ensino médico do Brasil está virando um problema de saúde pública.

*Ricardo Palacios é médico, formado no exterior com o diploma devidamente revalidado no Brasil, brasileiro naturalizado, foi consultor temporário para projetos de pesquisa da Organização Mundial da Saúde e agora estuda Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. As opiniões expressadas neste artigo não representam a posição de instituição alguma.

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