Pesquisa propõe reflexão sobre quem serão os autistas de amanhã

Em artigo, professora do Instituto de Psicologia da USP revisa o modo como o autismo foi visto historicamente e investiga as possibilidades para o futuro

Como mostra o artigo, há arquivos antigos que mostram que talvez muitas crianças já portavam no passado o que chamamos hoje de autismo – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

do Jornal da USP

Pesquisa propõe reflexão sobre quem serão os autistas de amanhã

por Margareth Artur, do Portal de Revistas da USP

O que não se conhece, rotula-se e, na maioria das vezes, com inverdades. O preconceito está, assim, estabelecido. No caso de males físicos, as pessoas se afastam – medo de contágio, medo do desconhecido, medo da doença, medo “do que vão falar”. Nem todo mundo sabe o que vem a ser o autismo, por exemplo. Por quê? As informações chegam cortadas, inventadas, deturpadas, filtradas. No passado, mais especificamente no século 19, o olhar médico não podia ainda diferenciar crianças portadoras de distúrbios mentais das crianças que já estavam, provavelmente, desenvolvendo aquilo que hoje chamamos de autismo. Naquela época, autismo era confundido com problemas de retardamento ou idiotia. O artigo publicado na revista Estilos da Clínica pela professora da USP Maria Cristina Machado Kupfer vale-se da história dos autistas do passado para poder investigar “sobre quem serão os autistas de amanhã”.

A pesquisa mostra que antigos arquivos revelaram que talvez muitas crianças já portavam o que chamamos hoje de autismo. É possível que as mesmas tenham sido desprezadas ou abandonadas pelos pais, pois os autistas não costumam responder diretamente às perguntas a elas dirigidas. Hoje, essas crianças são ensinadas na escola por métodos que priorizam o comportamento, e “perdem a chance de viver na escola a verdade de sua experiência, uma experiência peculiar e única. Perdem a chance de aprender a se dizer”. A autora lamenta o fato: “neles o sujeito freudiano não estará, em consonância com a supressão do sujeito no mundo contemporâneo”; isto quer dizer que a chance de a criança ser ouvida como sujeito é mínima. O artigo mostra que o sujeito, como o entendemos, “corre o risco de ser suprimido; o sujeito corre, o risco, sim, de vida”.

A autora argumenta, nessa defesa, que não é a psicanálise, mas o psicanalista que precisa romper seu casulo, pois não se pode negligenciar o sujeito, “base do psiquismo e da vida em sociedade”. Segundo a autora, romper o casulo é defender as políticas públicas, tanto concedendo aos autistas a “chance de dizer-se” quanto fornecer instrumentos de resistência à anulação do sujeito no mundo moderno. É preciso defender sempre a “dignidade de uma pessoa, para quem seu bem mais precioso é seu desejo e o sujeito que nela habita”. “Em um debate de ideias, a psicanálise sempre adotará a posição de ser contrária a todo discurso que suprime a função do sujeito”. Nesse contexto, a autora ressalta a importância de sair do casulo para conversar com gestores de políticas públicas, lembrando que, além do consultório, é fundamental olhar “para fora” e visar não a um só sujeito, mas ao universo maior, às populações.

Atualmente, existe muito mais conhecimento sobre o autismo. A fita com quebra-cabeça colorido é um símbolo utilizado mundialmente para promover conscientização a respeito. | Foto: Wikimedia Commons

Hoje o cenário é: criou-se o orgulho autista, e o “esforço das associações de pais de autistas vai na direção de afirmar uma identidade autista, um modo de ser. A cultura contemporânea os absorveu”. “Esse novo modo de ser autista combina maravilhosamente com as novas formas de dessubjetivação que estão surgindo”. Para alguns estudiosos, o sujeito pós-moderno não teve apenas seu corpo consumido pelo capitalismo; o que está sendo consumido agora é seu espírito. Nos tempos de hoje, o autismo se vê pressionado pela ciência e pela medicina moderna, pois as crianças autistas estão sufocadas pela tecnologia. Por quê? “Porque na máquina o sujeito não está: foi suprimido”, responde a autora. O autista, assim sendo, evita qualquer situação “em que haja rastro de sujeito no outro: recusará sua própria voz”.

Segundo o artigo, nas escolas modernas, a criança autista precisa ser adestrada, treinada, uma vez que está fora da vida subjetiva, digamos assim. Não há aposta em uma possibilidade de aprender, “perdem a chance de viver na escola a verdade de sua experiência, a chance de enfrentar a angústia diante da sexualidade e da morte, dois grandes parâmetros freudianos”, parte essencial da verdade da experiência de uma criança. “Se a criança autista de hoje foi escolarizada pela técnica, quem será o adulto em que se transformará? E se foi escolarizada na direção de ser levada ‘a dizer-se’, em que adulto se transformará?”- eis as questões levantadas pela autora, convidando os leitores a refletir com ela.

Artigo

KUPFER, M. C. Quem serão os autistas de amanhã? Estilos da Clinica, v. 24, n. 3, p. 384-392, 2019. ISSN: 1981-1624. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i3p384-392. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/estic/article/view/163380. Acesso em: 12/02/2020.

Maria Cristina Machado Kupfer – Professora Titular Sênior da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. [email protected]

Redação

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