Atuação da polícia nas manifestações revela despreparo

As manifestações que ocorreram nos últimos dias colocaram em debate central as ações da Polícia Militar antes, durante e depois dos protestos. A conclusão é que falta preparo aos policiais para a tomada de decisões em manifestações públicas.

Em debate promovido no dia 24 de junho, com o tema: “Manifestações de rua e segurança pública: limites e controvérsias”, no salão nobre da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, foram abordados vários pontos sobre o papel das forças de segurança pública, especificamente da polícia militar.

Desse debate participaram: Carolina de Mattos Ricardo, do Instituto Sou da Paz; Viviane Cubas, do Núcleo de Estudos da Violência, na USP; Fábio Bechara, da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo; Tânia Pinc, pós-doutoranda em Administração Pública e Governo da FGV-EAESP; Francisco Fonseca, autor do livro Liberalismo autoritário: discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira; com mediação do jornalista Luis Nassif.

Ação policial nas manifestações

Carolina disse que se trata de um tema complexo e polêmico e que é preciso fazer reflexões gerais para analisar como foi e como deveria ter sido feita a intervenção da polícia no caso das manifestações, e citou algumas premissas que devem ser levadas em conta para a atuação de forças de segurança em manifestações de massa. São elas: as manifestações demandam uma reposta pública; precisam ser recepcionadas; e o governo precisa se abrir para o diálogo. “A polícia não pode ser a resposta pública do governo às manifestações. Quando a polícia é a única representante,  a chance de o problema se agravar é maior”, apontou. “Logo que houveram os primeiros indícios de manifestações, o governo deveria ter estabelecido um diálogo”, comenta.

Tomando como base a política democrática, ela enfatiza que é preciso pensar sobre o papel que deve desempenhar a polícia, de garantir a integridade física dos manifestantes. “Precisamos reconhecer que as polícias avançaram em promover a segurança pública, mas ainda há muito a ser feito. As polícias são o braço armado do Estado”, declara.

Carolina diz que, para tornar possível essa missão democrática, é necessário que outros representantes da sociedade estejam presentes, como a polícia civil, etc. “É preciso que haja a criação de um sistema local para liderar meios e modos de atuação que estejam adequados às missões políticas e contem com táticas operacionais, como estarão organizadas”, garante. “Se a Polícia Militar for preparada para uma missão, é necessário que toda a cadeia dessa missão esteja clara, principalmente a cadeia de comunicação.”

Carolina disse que um desafio que temos que vencer é o uso da força pela polícia. “É preciso saber bem o limite entre o uso da força e o uso da violência”, diz. “A partir do momento em que a polícia está na rua fardada, ela já está usando de força que pode ser expressa também na capacidade verbal, e, quando ela se defende, já é outro tipo de força.” E diz: nesse caso, é preciso que a polícia esteja preparada para lidar com policiais, e armamentos que sejam os menos letais possíveis.

A pesquisadora Tânia enfatiza que a polícia militar não pode impedir o acesso das pessoas ao espaço público. “As manifestações são eventos constantes, em 2011, por exemplo, aconteceram 426 manifestações” aponta. “Essas que foram promovidas pelo passe livre ganharam maior amplitude pelo número de pessoas que foram envolvidas.”

No caso específico dessas manifestações, aponta a pesquisadora, soube-se que havia a ordem para impedir o acesso dos manifestantes à Paulista, mas não se soube de quem veio essa ordem.

Bechara disse que o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella, disse que é preciso realizar uma conversa com manifestantes para fazer com que os protestos sejam os mais pacíficos possíveis. “O tratamento humanitário para quem for vitimado deve ser digno”, analisa.

Segundo ele, romper esse lacre não é tão simples assim. “É preciso estabelecer uma adequada proporcionalidade. Também é preciso que haja uma mudança no padrão de mídia, que implodiu com a violência”, observa.

Despreparo

A pesquisadora Tânia diz que ainda estamos acumulando know how para lidar com situações do gênero das manifestações. “É preciso que haja uma reunião prévia para a tomada de decisões”, analisa. “As ações precisam ser imediatas e planejadas. É necessário que haja a realização de um termo de reponsabilidade em uma reunião prévia com a liderança da manifestação, estabelecendo, inclusive, as reações cabíveis de quem vai comandar essa operação.”

Essa gestão prévia, segundo ela, é muito importante porque influirá no decorrer da manifestação. “Essas ações influirão, por exemplo, em decisões com relação às faixas de ônibus que não podem ser ocupadas durante a manifestação”, diz. “O setor interno da Polícia militar ainda está desenvolvendo uma metodologia para avaliação de serviço.”

Tânia diz desconhecer qualquer polícia no Brasil, incluindo a de São Paulo, que tenha um grupo de efetivos que atue especificamente nessas ações. “Quando existe uma manifestação, o serviço policial é todo desarticulado. Muitas vezes os policiais que trabalham no administrativo também saem para trabalhar numa ação como essa”, relatou Tânia.

Um ponto importante a ser ressaltado, de acordo com Tânia, é que a lei municipal, por exemplo, determina que a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), por exemplo, deve ser avisada. “Caso haja violência e força tática por parte dos manifestantes, o grupo de força tática deve ser treinado para isso”, diz.

A pesquisadora diz que, embora não seja essa a polícia que se sonhou, é a polícia que se tem e é preciso refletir em questões sobre o que se pode fazer para ajudar essa polícia, qual é o papel dos cidadãos a respeito disso e quais são as consequências desses episódios políticos sobre a corporação.

Viviane aponta que é preciso que a polícia obtenha o máximo de informações possíveis, como hora, data, local do evento, número de pessoas e o trajeto que será feito pelos manifestantes. “A violência utilizada pela polícia como forma de repressão não é um fato novo. Nesse evento específico que tivemos de manifestações, a magnitude da repressão ocorreu por causa do número de pessoas envolvidas e por causa dos registros de cena que foram intensos por parte da população e da mídia”, comentou. “É preciso que haja, também, o monitoramento do que está acontecendo com os manifestantes”.

Desmilitarização da polícia

Para Viviane Cubas, a com relação à violência da polícia contra os manifestantes, a desmilitarização da polícia é possível. “Hoje existe uma preocupação muito grande com o cumprimento dos procedimentos internos, mas não tanta rigorosidade quando se trata da cobrança com relação à qualidade dos serviços prestados pelos policiais”, analisa.

Ela aponta que a desmilitarização da polícia será possível com transparência, participação da polícia em canais de participação e, com o controle social.

Segurança pública

Bechara analisa que um grande equívoco que temos hoje é que discutir segurança pública como sendo uma reponsabilidade da polícia, e, nessa conta, também entram as outras políticas e inclusive a sociedade. “Isso deve ser uma responsabilidade de todos – não temos um modelo de segurança pública”, relata.

Segundo ele, é preciso que haja um aprimoramento da prática “A segurança e um tema suprapartidário e o reflexo disso está na segurança do dia-a-dia”, aponta. “Tem muitas outras incumbências diárias da polícia que o cidadão desconhece, aquilo que ninguém vê, como por exemplo, o transporte de órgãos.”

Questionado sobre a possível infiltração de policiais ou agentes públicos nas manifestações, Bechara não negou a prática. O promotor argumentou que é necessário haver mecanismos de controle que fortaleçam a possibilidade de vigília por parte do agente público.

Compartilhando da mesma opinião, Francisco Fonseca, diz que segurança não é um tema de polícia, mas sim da sociedade. “Esse é, também, um problema da polícia, mas não totalmente dela”, reafirma.

Ouvidoria

Um dos jornalistas que estavam na plateia disse que teve um problema com o filho dele, que foi ferido durante a manifestação. Ao ligar para a Ouvidoria da Polícia Militar, ele descobriu que o órgão não funciona aos fins de semana e está há dois anos sem mandato, ou seja, na opinião dele, “o sistema imunodefensivo do cidadão foi liquidado”. O Conselho Estadual da Pessoa Humana, que deveria apresentar a lista tríplice, também foi desmanchado.

Como resposta a acusação, Bechara se comprometeu a levar adiante a averiguação da denúncia.

Eduardo Ferreira Valério, integrante do Ministério Público Estadual, disse que a lei estadual garante que o funcionamento autônomo do Conselho de Direitos Humanos, que devemindicar a lista tríplice para a escolha do ouvidor ao governo do Estado. Há aproximadamente dois anos, todavia, o governo estadual editou dois decretos que, na prática, interferem no funcionamento do conselho. Segundo ele, os decretos estabeleceram procedimentos rigorosos na escolha dos candidatos atuais, como: edital público de abertura de inscrições, audiência pública, e reunião de conselheiros para eleição e composição da lista tríplice que teriam que ser feitos por consenso. “Isso ficou meses sem definição do governo. Até que houve um parecer de um procurador que atua na Casa Civil dizendo que não pode ser por consenso”, disse.

Transparência

Viviane Cubas destacou que nos casos das manifestações a tecnologia foi fundamental para a obtenção de controle das ações da polícia militar.

Esses episódios demonstram dificuldade da sociedade acompanhar o trabalho da polícia e é preciso que haja mecanismos para transparência e controle atividade da polícia.

Luis Nassif, mediador do debate, destaca que um dos episódios mais vergonhosos que tivemos foi a paralisação por causa do PCC, em 2006, em que os policiais desligaram os rádios para matar 580 pessoas. “Esses episódios demonstram dificuldade da sociedade acompanhar o trabalho da polícia e é preciso que haja mecanismos para transparência e controle atividade da polícia”, disse.

Bechara concorda com a posição e diz que, embora nosso sistema de segurança seja resistente à mudanças. “É preciso aprimorar os mecanismos de transparência, não só as estatísticas, mas também os procedimentos e comportamentos que devem ser cobrados pelo Estado”, relata. “O policial é um ser humano como qualquer outro. É preciso incutir a visão humanista na formação dos policiais que passa por um processo contínuo de formação e adaptação.”

Outros países

Em situações de manifestação, o site da Polícia Militar de Vancouver tem um departamento especializado em manifestações públicas. Eles dão parâmetros de como deve ser realizado o tratamento das polícias com relação aos manifestantes. São eles: papel de proteger o direito de se expressar, prioridade é a proteção das pessoas e do patrimônio público, realizar a proteção dos policiais, utilizar força de acordo com a ameaça recebida, comunicação com a liderança do evento, mostrar profissionalismo, assumir o papel de uma força de paz e se tiver que intervir, intervenha com outros órgãos.

Em um guia de estudantes do Reino Unido constam informações sobre como devem ser realizadas as manifestações e as penalidades para cada transgressão cometida. “Isso implica em quanto maior for o conhecimento, maior é a probabilidade de que o evento transcorra sem grandes transtornos”, aponta. “Essas iniciativas surgiram de modelos de policiamento que dialogam com a sociedade.” 



Redação

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