Barreiras e Dilemas à Inovação: o caso das políticas de segurança pública, por Pedro Cavalcante

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Barreiras e Dilemas à Inovação: o caso das políticas de segurança pública

por Pedro Cavalcante

Desde os anos 90, as políticas públicas no Brasil apresentaram diversas inovações que aperfeiçoaram a comunicação, coordenação e cooperação entre diferentes níveis de governo e com a sociedade civil e iniciativa privada. Essas políticas culminaram em avanços em indicadores socioeconômicos e também na melhoria de muitos serviços públicos, como nas parcerias público-privado. No entanto, se, de modo geral, podemos afirmar que houve progresso na capacidade inovadora do setor público brasileiro, por outro nem todas as áreas governamentais conseguiram fomentar a cultura da inovação e gerar mais valor em suas entregas. Essa assimetria entre as áreas fica clara, por exemplo, quando se compara as políticas de segurança pública com as da área social (saúde, educação e assistência), que conseguiram, apesar das restrições orçamentárias e do desafio histórico, construir sistemas de políticas públicas complexos e, em certa medida, eficazes.

Não é preciso ser um especialista do setor para perceber que, nas últimas décadas, o país vem fracassando em lidar com seus graves problemas de segurança. Se por um lado, a criminalidade inova em suas práticas e níveis de organização, por outro, o Estado continua reproduzindo políticas públicas desatualizadas, com baixo impacto e que, em algumas situações, tendem inclusive a agravar o cenário. Esse é o caso clássico da estratégia de enfrentamento e baixa tolerância aos usuários de drogas que vem resultando em número recorde de prisões. Enquanto a taxa de encarceramento por porte de drogas dobrou nos últimos dez anos, seus efeitos em termos de redução dos crimes foram inócuos, vide, a taxa de homicídios que vitima cerca de 60 mil brasileiros todo ano, número próximo de guerras civis.

Como explicar essa incapacidade em lidar efetivamente com uma questão tão importante para os governos e a sociedade? Uma interpretação para esse fenômeno advém da literatura de inovação na gestão pública, mais especificamente, a partir da compreensão das barreiras à prática inovadora. Em linhas gerais, as barreiras podem ser enquadradas em dois tipos: internas e externas às organizações. Para ilustrá-las, analisamos o episódio da intervenção federal em vigor na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro e sua inaptidão em apresentar inovações nas ações e resultados.

Surpreendentemente, essa iniciativa governamental não sofre com as barreiras externas. A primeira delas envolve a questão do financiamento, que nessa iniciativa, desde o início, obteve uma rubrica orçamentária de R$ 1,2 bilhão, mesmo no atual cenário de austeridade fiscal. A segunda consiste nos obstáculos legais e normativos, que também não parecem ser um problema, uma vez que toda – a intervenção está respaldada na Constituição e não vem enfrentando questionamentos efetivos quanto a sua legalidade que a tenha impedido de ocorrer. A terceira e última barreira externa é a dimensão tecnológica. Essa também foi facilmente superada, haja vista que todo acesso a armamentos, sistemas informacionais, equipamentos de vigilância, entre outros, estão disponíveis às organizações militares e policiais, principalmente, após os recentes investimentos de grande vulto realizados para a Copa do Mundo e Olimpíadas. Logo, as limitações em inovar do setor e, particularmente na intervenção militar, estão mais relacionadas às barreiras de caráter interno.

A dimensão   recursos humanos é um sério obstáculo, pois carecemos de investimentos nas habilidades dos profissionais da segurança pública, sobretudo na área de inteligência e investigação. Além disso, ainda sofremos com o alto grau de corporativismo que geralmente impede a elevação do nível de accountability (responsividade) desses agentes públicos. Propostas de mudanças nas práticas e comportamentos das polícias brasileiras, constantemente denunciadas por organismos multilaterais por desrespeitos aos direitos humanos, têm tido pouco apoio e/ou efetividade dentro das corporações e entre os dirigentes públicos.

As características estruturais das organizações do setor também são uma barreira. As polícias e o Exército são burocracias que possuem formatos bastante hierarquizados e continuam com dificuldades em atuar de forma articulada e coordenada. A inovação demanda cada vez mais integração, colaboração e parceira, inclusive com os cidadãos, de modo a gerar agilidade no fluxo de comunicação e ação, bem como sinergia entre os envolvidos, o que se contrapõe às práticas burocráticas tradicionais, segmentadas e compartimentalizadas, típicas dessas instituições. Como agravante, elas são historicamente insuladas e com seu alto grau de especialização tendem a gerar resistências e aversões ao debate dos problemas e de proposição de soluções e caminhos com atores externos, consideradas ‘intromissões’ às suas atividades.

A terceira e última barreira é a falta ou insuficiência da estratégia. No caso da intervenção federal, o planejamento foi apresentado quatro meses após o seu início. Analogicamente, seria como começar uma grande obra sem ter conhecimento e definição acerca dos objetivos, capacidades, riscos, disponibilidade de recursos e cronograma de alocação, apoio, entre outros aspectos fundamentais para qualquer ação pública. Aliado a isso, a precariedade da transparência acerca das ações impede que se consiga avaliar, de fato, seus verdadeiros resultados e valores entregues à sociedade.

Além dessas barreiras, a segurança pública ainda sofre por não ser devidamente reconhecida como um típico wicked problem, isto é, um problema multicausal, complexo, incerto, transversal e sem soluções claras. Ao reduzir as suas causas às fragilidades na repressão e na impunidade e, com isso, apresentar uma solução unidimensional, no caso da intervenção, o enfrentamento com mais violência, a política de segurança pública no Brasil se afasta cada vez mais da inovação. Na prática, os resultados dessa iniciativa no Rio de Janeiro vêm indicando justamente o contrário. Ou seja, práticas retrógadas, testadas e reprovadas em décadas passadas, que tendem a gerar externalidades derivadas, em sua maioria negativas, tais como a elevação da letalidade policial de suspeitos (grande maioria jovens negros e pobres) e de vítimas inocentes de balas perdidas.

Em síntese, todas as inovações pressupõem a superação de barreiras, tanto internas quanto externas. A etapa básica desse processo, porém, consiste no reconhecimento pelos líderes envolvidos na política de segurança pública, de que a complexidade do problema e sua urgência de solução demandam capacidades de dialogar com diferentes perspectivas.  Cabe, ainda, construir ações coordenadas e pactuadas com sociedade, sobretudo, naquelas regiões mais afetadas pela violência, testar novas experiências, bem como promover uma estratégia cooperativa e colaborativa com organizações governamentais e também fora do setor público. Se antes, o aumento do enfrentamento com mais balas que mentes era uma estratégia do tipo ‘enxugando gelo’, hoje está evidente que se trata de uma ainda pior, pois estamos ‘apagando incêndio com gasolina’.

Pedro Cavalcante – Doutor em Ciência Política e Professor de Pós-graduação da UnB, Enap e Idp.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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