Polícia Civil nunca foi modelo na investigação de grupos de extermínio, diz defensor

Jornal GGN – A criação de força-tarefa para investigar as chacinas que deixaram 19 mortos na região de Osasco e Baruerim, em São Paulo, foi vista com bons olhos por setores da sociedade civil ligados aos direitos humanos. O otimismo, no entanto, durou pouco. Menos de duas semanas depois do anúncio da iniciativa conjunta, delegados da Polícia Civil foram à mídia reclamar da atuação atropelada da Corregedoria da Polícia Militar, que faz uma investigação paralela, colocando em risco a segurança de testemunhas, entre outras questões.

De acordo com eles, entre os dias 21 e 22 de agosto, a PM realizou operações de busca e apreensão contra 18 policiais suspeitos de participar dos crimes. O problema é que os integrantes da força-tarefa não foram informados, o que pode ter atrapalhado as investigações.

“A própria essência da força-tarefa é a colaboração. A reclamação dos delegados demonstra que a força-tarefa não está funcionando”, disse o defensor público do Estado de São Paulo Antônio Maffezoli, que já representou, entre outros, os familiares dos homens e mulheres assassinados no massacre de 2006 que ficou conhecido como Crimes de Maio, com saldo oficial de 493 mortos.

“Até a semana passada, eu achava é que a constituição da força-tarefa era um bom sinal. De que o governo e o secretário estavam sinceramente interessados em solucionar essa grave chacina”, afirmou, em entrevista ao GGN, na terça-feira (1/9).

Mas Maffezoli confessou que já encarava a situação com ceticismo. “Historicamente, a Polícia Civil bate de frente com a Polícia Militar. Mesmo assim, nos casos de violência policial, de suspeita de execução sumária, ou mesmo dos autos de resistência seguida de morte, ninguém investiga nada. Nem a Polícia Civil tem interesse, nem a Polícia Militar. Nos Crimes de Maio foi assim”, lembrou.

Por atribuição, a apuração de crimes contra a vida é responsabilidade da Polícia Civil, que leva os casos à Justiça comum. A PM só investiga desvios de conduta – que vão desde o uso de uma bota mal engraxada ao uso de força letal – dentro da corporação. Nesse caso, com suporto do Tribunal de Justiça Militar. Mas o defensor explicou que, na prática, não é assim que funciona.

“A atuação da Corregedoria tem sido mais ágil e mais específica do que a da Polícia Civil. Porque eles têm acesso facilitado aos dados e aos GPS das viaturas, e à movimentação da COPOM [Central de Operações Policiais Militares]. São dados eletrônicos, de telecomunicação, que eles acessam internamente.”

A Polícia Civil também pode obter esses dados, mas precisa requisitar à PM. “Muitas vezes, como nos Crimes de Maio, como em dezenas de outras chacinas que a gente acompanha aqui, o delegado sequer pede isso”, denunciou Maffezoli.

Ele disse que no caso dos Crimes de Maio, quando uma verdadeira guerra se deu entre agentes de Estado, grupos de extermínios e membros de facções criminosas, a Polícia Civil falhou em aspectos fundamentais da investigação. “Ela não requisitou esses dados, não requisitou imagens de câmeras de segurança de comércios e condomínios nos arredores dos crimes, não solicitou sequer as armas dos policiais para fazer confronto balístico. Então, quando eu vejo os delegados da Polícia Civil reclamando [no caso da chacina em Osasco], eu fico com o pé atrás. A Polícia Civil nunca foi modelo na investigação de crimes de grupos de extermínio”, disparou.

O papel da Defensoria e do Ministério Público

A Defensoria Pública já começou o seu trabalho de atendimento às famílias das vítimas, que vai desde uma intervenção psicossocial até orientação jurídica. Mas o defensor público Antonio Maffezoli [foto] apontou que o órgão não tem poder para ir muito além disso. 

“O que a gente pode fazer com as nossas atribuições é acompanhar as famílias, pedir que seja colhida alguma prova, apontar algum caminho para o delegado, para o promotor, acompanhar as vítimas que eventualmente vão depor, ou alguma testemunha. Enfim, tentar fazer com que a investigação seja bem feita. Mas a gente não investiga, quem tem que fazer isso é a Polícia Civil, fiscalizada pelo Ministério Público.”

E o Ministério Público, na visão dele, também deixa a desejar. Por lei, todo inquérito policial tem que ser acompanhado por um promotor, que tem de garantir que o procedimento seja bem feito e sugerir diligências, quando for o caso. “Nos Crimes de Maio, a atuação da Promotoria foi protocolar. A cada 30 dias o promotor carimbava o inquérito requerendo a prorrogação. Em muitos casos é assim que acontece.”

Para Maffezoli, não é uma questão apenas de encontrar e punir os culpados. A verdade deve ser o objetivo da Justiça, não necessariamente a condenação. “A investigação é uma obrigação de meio. Você não tem como garantir que vai achar o culpado. Se você faz todas as investigações, pede todas as perícias, tudo que está ao alcance e não consegue, é uma pena. O importante é que isso seja feito”, ponderou.

Sem esses procedimentos, a Defensoria age com ações de indenização para os familiares das vítimas. Isso significa que o Estado, nessa etapa, admite que falhou duas vezes: uma ao permitir que o crime acontecesse, e a outra ao deixar de investigar por negligência. Só que essas ações raramente têm resultados positivos. No massacre de 2006, das oito ações de indenização, apenas duas foram julgadas procedentes, e o Estado recorreu das decisões, que foram, então, remetidas a Brasília.

A formação dos agentes de Segurança

De acordo com Maffezoli, a única solução que se vislumbra é realmente investir na formação e nos planos de carreira dos agentes de segurança pública. Para ele, nem leis como a que tornou crime hediondo o assassinato de policiais militares servem para nada. “A medida de tornar hediondo o assassinato de policiais, na nossa avaliação, não é benéfica. Primeiro que a gente entende que a utilização do Direito Penal para prevenir condutas, agravando penas ou adjetivando determinados crimes como hediondos, não funciona. Segundo porque os movimentos de direitos humanos sempre trabalharam que não tem diferenciação de vítima. A vida de um policial morto não vale mais ou menos do que a de ninguém.”

Ocorre que em determinadas regiões, as maiores ameaças para os cidadãos são justamente as pessoas responsáveis pela proteção de suas vidas. “Em Osasco, temos provas da atuação desse grupo de extermínio pelo menos desde 2008. Em 2008, 2009, 2010 houve chacinas, com pessoas dizendo que eram policiais ligados ao 14º Batalhão, 42º Batalhão, todos pertencentes ao CPMA-8 (Central de Penas e Medidas Alternativas). É importante que a capacitação e sensibilização dos policiais seja revista”, concluiu.

Redação

1 Comentário

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  1. Polícia e política: duas faces da Polis.

    O defensor em tela entende de muita coisa. E muita coisa do que entende não foi para o texto, seja por cvardia, seja por comodidade.

     

    Senão vejamos:

    Mais uma vez, como em todas as outras, os “entendidos” discorrem sobre os galhos e as folhas, enquanto as raízes do problema estão intactas.

    O problema não é a formação policial, mas sim a deformação do Estado, que já nasceu degenerado. Desde a escravidão, em 1808, a missão policial está defindida e intacta: prender e matar preto e pobre. Essa foi a motivação para D. João criar a Intendência Geral de Polícia, embrião das Polícias Civil e Militar: O pavor que a recém-chegada Corte teve com tantos negros soltos pelas ruas.

    A atuação promíscua da PM e dos seus órgãos internos não é novidade, é antes estratégia de Estado, desde os vários golpes militares na historiografia recente, onde as forças armadas e seus órgãos auxiliares foram utilizados como “ferramenta” de coerção política (não é à toa que o radical grego pólis é igual para polícia), passando pela importação do modelo militarizado de “guerra às drogas”, tão caro a política externa estadunidense dos anos 80 até hoje.

    O próprio Ministério Público desvia policiais militares para sua milícia particular ao redor do país, nos chamados GAP (Grupos de Apoio à Promotoria), esferas inconstitucionais derivadas do próprio abuso da permanência do “poder” e escolher (e não poder/dever) de investigar mantido ao Parquet, em afronta ao estamento constitucional, que só permanece sob a chantagem promovida pelos promotores, do tipo: “quem é contra o MP investigar é a favor da corrupção”.

    Não se trata disso, trata-se de escrever (e garantir) que tal poder, se houver, seja previsto em Lei e não nos ditames autoritários do órgão (MP) que não é fiscalizado por ninguém.

    Voltando ao tema, é preciso dizer que o nobre defensor confunde sintomas com causas.

    A Polícia Civil, e nem a Militar são ineficientes ou cruéis, são seletivas, como a outorga de TODA sociedade, ou você já viu chachina de playboys “com passagens pela polícia” nos Jardins, no Leblon ou na Savassi?

    Há pontos que o defensor não toca, como dissemos, por medo, cinismo ou incapacidade intelectual, ou tudo junto:

    A violência urbana brasileira é resultado, dentre outras coisas, da herança do uso da violência policial como política de contenção de conflitos (desigualdade), da herança do uso de polícias como ferramentas auxiliares no terror de Estado, e enfim, como resultado da militarização do combate ao uso/venda de drogas;

    O policial desde seu início de carreira sabe quem “pode matar, ou bate” e quem não pode, quem são os suspeitos “padrão” e os “inocentes” padrão, quem deve ser protegido e quem deve ser cassado. E estas premissas não são oficiais, portanto, inócuo dizer que um “treinamento” resolve.

    Os treinamentos policiais brasileiros seguem à risca (com raras exceções) o ritual constitucional.

    O monstro da violência se esconde em práticas que estão além das formalidades, mas legitimadas como fenômeno transclassista.

    Sim, porque a violência e a violência policial utilizada a partir de viés de classe e de cor não são incidentes apenas de cima para baixo na pirâmide social, mas acontecem dentro das camadas mais pobres e suas divisões heterogêneas, onde cada grupo e subgrupo monta suas estratégias de sobrevivência, o discurso “morreu porque tinha passagem” se esparrama desde a sala de um apartamento de cobertura até um barraco de 3 por 3 m², pendurado em alguma viela suja. 

    Enfim, peguem os dados: quandos homicídios por cem mil habitantes temos na Oscar Freire? Quantos na periferia? Qual é a cor e classe social da maioria dos mortos?

    É só coincidência ou sadismo policial?

     

     

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