“Projeto anticrime de Moro é um pacote de guerra na Segurança Pública brasileira”

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Retrato das saídas repressivas, do lema “bandido bom é bandido morto” e do punitivismo exacerbado, beirando a uma política de extermínio do governo Bolsonaro

A viúva do músico Evaldo dos Santos Rosa, morto pelo fuzilamento do Exército – Foto: Silvia Izquierdo/AP

Jornal GGN – Os 80 tiros disparados pelo Exército contra um carro em via pública no Rio. O educador que foi agredido por PMs após defender aluno em escola de Minas. A professora que foi presa por filmar truculência de policiais civis em Goiás. Os casos de violência nos últimos dias por parte de agentes de segurança estão relacionados ao discurso político de um governo que acata a saídas repressivas, ao lema “bandido bom é bandido morto” e ao punitivismo exacerbado, beirando a uma política de extermínio, como respostas para a própria violência.

Uma dessas sinalizações do governo de Jair Bolsonaro é o projeto anticrime do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Se o cenário atual já é alarmante, em entrevista ao GGN, o vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Bruno Shimizu, refletiu como os casos de homicídios por policiais ou militares seriam resolvidos se o projeto de Moro já estivesse em vigor. “O pacote do ministro Sérgio Moro foi pensado para que esse tipo de execução sumária possa acontecer sem que haja uma punição aos responsáveis”, avaliou.

A impunidade como uma espécie de “carta branca para matar” é, para o mestre e doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo, uma clara “autorização da política de extermínio”. E, na outra ponta, ao contrário do que sustenta o governo e defensores dessa tese, o aumento do encarceramento e maiores punições a crimes comuns “não terá outra consequência que não fortalecer o próprio crime organizado dentro dos presídios”.

Em via dupla, “se, por um lado, a proposta anticrime facilita a violência e a letalidade policial, por outro lado também fortalece as facções prisionais, aumentando o contingente de presos por crimes menos graves”. “É um pacote de guerra, uma guerra na Segurança Pública brasileira”, resumiu. Abaixo, compilamos alguns trechos da entrevista:

 

GGN: Qual é o cenário da Segurança Pública atual, em que Exército dispara 80 tiros contra inocentes em via pública, no Rio de Janeiro, gerando a morte do músico, além de outros casos recentes de violência policial?

É preocupante não só porque é uma tragédia inédita do fuzilamento de um carro com uma criança, de um homem negro que não tinha feito absolutamente nada, e ainda que tivesse feito, há um nítido excesso nesse fuzilamento, mas também porque sinaliza que essa intervenção militar não só não tenha resolvido o problema de segurança pública, como também possa ter corrompido boa parte dos agentes de segurança do Exército, que agora passam a atuar da mesma forma que os grupos de extermínio e que a polícia também vinha atuando.

Não é por acaso que o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, em uma pesquisa do ano passado, em dados oficiais, vai dizer que com a intervenção o número de mortes subiu 40%. Só no ano passado, o número de pessoas mortas pelas forças de segurança do Rio foram mais de 1000, então não estamos falando de um caso isolado. E chamou a atenção pela brutalidade, que foram 80 tiros, mas toda a semana a gente vê notícias de alguém que levou tiro pelas costas, etc, tudo entra na estatística.

E o que preocupa mais ainda é o fato de que o governo federal, sobretudo com o pacote supostamente anticrime do Ministério da Justiça traz quase um aval para que esse tipo de coisa aconteça. Se o pacote já estivesse em vigor, esses agentes, do Exército e das Forças Armadas, poderiam dizer que estavam sob emoção, ou medo, ou surpresa, e isso poderia levar a um perdão judicial. Exatamente para esse tipo de caso que o pacote do ministro Sérgio Moro foi pensado, para que esse tipo de execução sumária possa acontecer sem que haja uma punição aos responsáveis.

 

GGN: As propostas anticrime de Sérgio Moro têm relação com a onda de punitivismo que vem aumentando?

Eu acho que vai além do próprio punitivismo. O punitivismo está muito presente no pacote do ministro Sérgio Moro, que são essas tentativas vãs, completamente frustradas, de se gerar algum capital político junto à população. O punitivismo é um populismo penal, uma forma de conseguir um capital político, até por conta de expectativas eleitorais. Agora, o brasileiro sempre teve um tipo de punitivismo muito forte, mas isso está chegando às raias do absurdo. Estamos indo para além do punitivismo, para um discurso de extermínio, efetivamente.

O pacote de Sérgio Moro traz notas punitivistas, mas também de autorização de uma política de extermínio. E é isso que está se colocando em prática agora. A gente não tem como saber qual foi a influência do contexto político sobre esse absurdo do fuzilamento de um cidadão na via pública, mas é fato que é muito difícil se desvincular o aumento desse tipo de caso da sinalização política do próprio governo, do Ministério da Justiça e da Segurança Pública nesse sentido, de se tratar como normal ou legal, como dentro de parâmetros legais, os atos de violência policial.

Não é por acaso que o Brasil tem a polícia que mais mata no mundo e também a que mais morre no mundo. Esse é um contexto que, com certeza, vai ser agravado a partir de políticas públicas que têm sido aventadas – ainda não colocadas em prática, muito por conta de má gestão e de uma má articulação política -, mas essas políticas do governo estão tendo como resultado evidente o aumento na letalidade policial. É muito provável que estes casos se repitam, caso não haja uma mudança de sinalização urgente, por parte não só da cúpula das forças de Segurança, mas também do próprio governo federal e do Ministério da Justiça e da Segurança Pública.

Causa muito espanto o silêncio. A população tem direito de saber como os Poderes constituídos e o Ministério da Justiça vão agir a partir de um caso totalmente grave e inédito como esse, o fuzilamento de uma pessoa em via pública pelo Exército, o que nem na própria ditadura militar era algo que acontecia. A gente espera ansiosamente por uma postura, uma mudança de posição.

 

GGN: Se a gente não puder contar com uma mudança de postura no Executivo, seja do governo federal, estadual ou do ministro, existem mecanismos ou algum tipo de controle para impedir abusos assim? O Judiciário, por exemplo, poderia atuar de alguma maneira?

O que a gente enxerga, na prática, é que a punição de algum agente nesse tipo de conduta é bastante residual. Não que não aconteça, mas é raro. Hoje em dia, sem que haja o pacote de Sérgio Moro vigente, é muito comum que nos casos em que condena, há um reconhecimento forçado de legítima defesa por parte do próprio júri popular, do Tribunal de Justiça ou do juiz da causa. Isso por conta de uma adesão ideológica, o que é fomentado pelas Forças Armadas e classe política vinculada.

Do ponto de vista do direito, há mecanismos em relação às instituições responsáveis por fazer esse controle, mas uma vez que hoje elas estão contaminadas com a ideologia que levou a esse ‘estado de coisas’, o que a gente verifica é que fica muito aquém do que seria o necessário, o adequado do ponto de vista jurídico.

 

GGN: Sobre o pacote anticrime, além desse trecho que diz respeito a uma certa impunidade concedida a policiais em atuação em casos de homicídios, há outros tipos de “cartas brancas” que prejudicam a situação da violência, ao invés de prevenir?

O pacote inteiro é muito prejudicial à violência. Porque ele é apresentado como um pacote contra a criminalidade e a violência, contra a corrupção e o crime organizado. Quando se lê o projeto de lei, corrupção praticamente não aparece, há um aumento de pena, algum endurecimento no cumprimento, mas nenhuma forma muito eficaz de investigação. E, em relação ao crime organizado, verifica-se mais uma mudança de nomes, do que algo prático.

A grande maioria do pacote diz respeito ao endurecimento do cumprimento de penas para a criminalidade comum, estamos falando de pequenos traficantes varejistas, de furtos, de pessoas em situação de rua presas por furto de uma tampa de bueiro e fio de cobre… Se o pacote for aprovado, todas essas pessoas vão ter um tipo de tratamento judicial muito mais severo, rigoroso.

Por exemplo, o pacote prevê uma mudança no artigo 310 do Código de Processo Penal, que o juiz possa decretar a prisão de alguém por perceber que a pessoa seria um criminoso habitual, ainda que a pessoa seja primária, sem antecedentes. Ou seja, se na audiência de custódia, o juiz olhar para a cara da pessoa e achar que ela é um criminoso habitual, pode decretar a prisão por conta de uma presunção ou preconceito do próprio juiz.

Se as prisões preventivas já são a regra hoje no país, mais de 40% dos presos hoje no Brasil aguardam uma decisão de primeira instância, então a gente vai ter um problema muito maior de aumento nos níveis de encarceramento pelos crimes menos graves. O pacote traz a obrigatoriedade de regime inicial fechado para qualquer tipo de reincidência. Então, se a pessoa pratica o segundo furto na vida, obrigatoriamente ela tem que ser colocada em uma prisão de segurança máxima.

É absurdo do ponto de vista da proporcionalidade, não precisa nem ser do Direito para perceber que isso não é inteligente. Qual a consequência? Quando você tem a ausência de qualquer previsão de investimento em políticas de reintegração, palavra que nem se fala nesse governo, de inserção no mercado de trabalho, e, ao mesmo tempo, aumenta-se exponencialmente a população carcerária, não terá outra consequência que não fortalecer o próprio crime organizado dentro dos presídios. As facções prisionais, as novas que vêm surgindo, alimentam-se a partir do encarceramento de pessoas mais vulneráveis.

O pacote vai justamente na contramão de toda a criminologia, de toda a política criminal científica, no sentido de colocar essas pessoas mais vulneráveis sob o manto, a influência de facções prisionais. Para a Segurança Pública, a aprovação do pacote apontaria para um caos, uma hecatombe, para um verdadeiro banho de sangue, na medida em que o sistema prisional brasileiro não tem como absorver um contingente maior ainda de presos, que o Ministério da Justiça pretende colocar nas nossas masmorras medievais, que são os cárceres.

Se, por um lado, a proposta anticrime facilita ou dá uma certa carta-branca para a violência policial e a letalidade policial, por outro lado também fortalece as facções prisionais, aumentando o contingente de presos por crimes menos graves, que servem como a base sob a qual se constituem essas facções. Então, ele é um pacote de guerra, uma guerra na Segurança Pública brasileira.

 

Leia também: Pós intervenção, 80 tiros no Rio ocorrem em cenário indefinido e sem respostas

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. Moro quer apenas realizar o sonho da classe média brasileira: lugar de pobre é na cadeia. Ou servindo caninamente à classe média. (Lembre-se de que cachorro ganha casa e comida, ainda que osso.)

    O oposto dos governos PT: lugar de pobre é sair da pobreza e entrar na classe média. Para então sonhar em colocar os outros pobres, agora concorrente, também na cadeia…

    O problema do PT foi ter transformado pobre em classe média: classe média é antipetista. Devia era ter transformado pobre e classe média em cidadãos, não em consumidores.

  2. Talvez a grande dificuldade de qualquer ideologia é se adaptar à verdade dos fatos, como relembrou recentemente o próprio Nassif, ainda que em outro contexto.
    O fato é que a sociedade está apavorada com a violência e tal medo, gera irracionalidade.
    Se de um lado do espelho ideológico afirma-se que quem é rico não rouba, o outro lado em sinal trocado diz que quem é pobre e melhora de vida, não rouba. Bobagens! roubam e receptam mercadoria roubada. A impressão é que se trata da maioria, já que a honestidade sempre causa surpresa a ambos.
    Não temos medo de quem rouba uma tampa de bueiro, ironicamente o cara que faz isto é visto como trabalhador que desesperado busca alternativas. Mas do sujeito que empunha uma arma e nos mata como a cães (desculpe, sou antigo, hoje o cão é melhor tratado que nós mesmos). Demonstram crueldade e desrespeito, o mesmo que dedicamos a eles nas prisões do PT, PMDB, PSL, seja quem estiver de plantão.
    Por tal afronta, requer-se vingança. A mera restituição dos bens, não ameniza a humilhação de um roubo (não confundo com furto). Para as polícias é prato cheio, pois é fácil pegar estes e posar de salvador. Enxugando gelo, não investigam, não extirpam os males, que são a receptação do produto do roubo, o tráfico (droga, gente), a corrupção endêmica.
    O PT pensou que por haver contribuído para a geração de empregos, estava solucionado o problema, em linha com o pensamento neoliberal. Não resolveu o problema do trânsito que faz as pessoas acordarem 2 horas antes para ir trabalhar. Não resolveu a indignidade do transporte público, da segurança, da habitação a preços módicos (60 mil por um imóvel que não comporta expansões e renda de 0,9 mil = pagamento perpétuo), não resolveu a dignidade de um salário justo.
    Nem resolverá, seja quem se apresente, porque o problema do país é caráter, melhor, a falta dele.
    Enquanto o cara cheira e deita filosofias sem se preocupar com o modo que a droga chegou a ele, enquanto o cara comprar algo baratinho (sou esperto) sem se preocupar se foi fruto de roubo e assassinato, enquanto furar filas, se manter selvagem no trânsito e outros mais, não haverá solução.
    Caberá ao governo resolver isto, ou nós, como cidadãos, educaremos nossos filhos, netos e amigos?
    Para terminar musicalmente ao gosto do Nassif, mas sem tanto requinte:
    Vou negando as aparências
    Disfarçando as evidências
    Mas pra que viver fingindo
    Se eu não posso enganar meu coração

  3. não há pacote que dê jeito com a política neonliberal
    que só exclui a maioria das pessoas dos benefícios sociais,
    com tanto desemprego, etc e tal….
    ainda mais que muitos já disseram que esse pacote morístico
    é uma permissão para matar…..

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