A mídia e os direitos fundamentais

No meu livro “O Jornalismo dos anos 90” abordo dezenas de episódios em que a mídia atropelou os direitos mais comezinhos de vítimas de arbitrariedades policiais e do Ministério Público, que se associou a chantagistas para divulgar dossiês incriminatórios contra adversários, que desrespeitou sigilo fiscal, telefônico e pessoal de pessoas, expondo-as a manchetes e capas, sem comprovação do crime.

Contei o caso da filha de Chico Lopes, cujo computador pessoal foi apreendido pela Polícia Federal, o grampo no BNDES, a loucura do dossiê Cayman, em que se deu aval a uma falsificação evidente e grosseira, ao vazamento de contas telefônicas sigilosas na CPI dos Precatórios.

Quando a “Folha” comemorou 80 anos, participei de uma mesa redonda com colegas do jornal. Nela, se enaltecia o papel da mídia pelo fato de, no dia anterior, um senador da República, Jader Barbalho, ter sido algemado pela PF. Questionei o ato. Disse que quando se avalizava uma arbitrariedade dessa ordem contra um senador da República, mesmo com o passado e a má reputação de Jader, estava se investindo contra direitos individuais básicos, e dando autorização para o delegado de periferia usar o pau-de-arara.

Perguntei, na ocasião, se o compromisso da mídia era dar tudo o que o leitor queria, ou ser a guardiã de valores da civilização, mesmo em um país onde direitos individuais são tão pouco considerados.

Digo que sempre fui minoria nessas discussões. Cada vez que se desrespeitavam os direitos de qualquer pessoa, classe média para cima, vinha a cantilena de que se o pobre tinha o direito desrespeitado, porque essa preocupação com os direitos dos ricos. Ou seja, buscava-se a igualdade na uniformização do desrespeito.

A questão do desrespeito aos direitos básicos foi sempre uma constante nas publicações desde a campanha do impeachment. Grampos foram utilizados despudoradamente, assim como dossiês. E digo despudoradamente porque, muitas vezes, se destacavam frases sem nenhum significado, e a publicação adicionava as interpretações que queria sobre outras partes do grampo que, não sendo divulgadas, impediam o leitor de conferir sua veracidade.

Por tudo isso, não há o menor sentido nesse carnaval em torno do fato de dois telefones da “Folha” terem ido parar no inquérito da compra do dossiê. Está claríssimo, para qualquer leitor inteligente, que entraram exclusivamente devido ao fato de constarem no telefone de um dos suspeitos.

A seguir, dois dos capítulos do livro. Sugiro que leiam à luz do que foi a mídia nos últimos anos. O livro era crítico em relação aos anos 90, mas terminava com uma visão otimista, de que a única saída da mídia seria aprimorar-se, porque os leitores seriam cada vez mais exigentes e não aceitariam carne de terceira.

O uso dos grampos e dossiês

Um dos piores recursos utilizados para esquentamento de notícias foi o uso indiscriminado dos dossiês. Dessa facilidade se aproveitaram alguns dos piores chantagistas da República, tanto para jogadas políticas quanto comerciais.

Partia-se de um ato criminoso, o grampo, e -pior— conferia-se ao dossiê do chantagista mais valor do que a um processo jurídico. Passava-se ao leitor a impressão de que, por ter sido obtido de modo clandestino, tudo o que o grampo revelava era verdadeiro.

Os principais estratagemas para “esquentar” grampos eram os seguintes:

Frases fora do contexto – A conversa telefônica informal é basicamente coloquial. Experimente analisar uma conversa sua, ao telefone, e, depois, levantar a quantidade de declarações que, tiradas do contexto, podem dar margem a interpretações dúbias. O que se fazia era mencionar trechos da conversa e, depois, o chantagista, através do repórter, tirar suas próprias conclusões e tentar induzir o leitor.

O ápice dessa manipulação foi o “grampo” em cima de um dos irmãos Bragança – tido como homem do ex-presidente do Banco Central Chico Lopes – em que ele dizia que “a reunião foi desmarcada”. E o repórter concluía – sem uma prova sequer – que a “reunião” só poderia ser a do Banco Central, onde se deliberaria sobre eventuais mudanças no câmbio.

Outro caso clássico foi o das centenas de horas de gravação da Polícia Federal em cima de suspeitos de escândalos da Sudene. A reportagem era rica em adjetivos que descreviam as transcrições – “chocante”, “inacreditável”. Mas a transcrição das principais passagens mostrava declarações pífias. Os esquemas existiam, eram pesados. Mas nada justificava os atentados que se cometeram contra a objetividade jornalística.

Estratagema semelhante – de manipulação de frases em conversas “grampeadas” — foi tentado na disputa Ambev x Kaiser, em cima de um grampo sobre o advogado Airton Soares. O episódio foi desmascarado a tempo.

A fonte secundária — Outra jogada usual era o “grampo” em cima de uma pessoa, em geral suspeita, onde ela mencionava relações com pessoas do governo. Não se ia conferir se a pessoa tinha acesso à fonte mencionada, ou se simplesmente se se valorizava perante o interlocutor. Um bandido conversava com outro bandido sobre um terceiro personagem ao qual ele sequer tinha acesso. Era suficiente para se considerar a conversa como definitiva

O caso da compra de votos para a reeleição foi típico. Houve o grampo em cima de um político secundário, que dizia ter sido convencido pelo governador Amazonino Mendes a votar pela reeleição. Ele supunha que a razão do interesse do governador fosse o “dinheiro do Sérgio Motta”.

Era evidente que a forma de cooptação política não era a mala preta levada na calada da noite para Manaus, mas verbas liberadas legalmente através do orçamento nas mãos dos aliados políticos – uma prática fisiológica condenável, mas que nada tinha a ver com a maneira com que se embrulhou a denúncia.

A denúncia foi importante para combater as práticas fisiológicas, mas sua premiação foi um dos principais estímulos ao uso indiscriminado pela mídia de práticas criminosas, como grampos e dossiês.

A verdade parcial – Recurso bastante utilizado no dossiê Cayman, ou na cobertura do caso Chico Lopes, era juntar um conjunto de fatos, alguns não apenas inverídicos como inverossímeis, e outros reais, porém secundários. A partir destes, concluir que o conjunto era real.

Nesse episódio tinha-se um caso real – a conta aberta no banco de Cayman. Não se sabia de quem era, quem movimentava os recursos e quanto recurso era movimentado. Podia simplesmente ser uma conta aberta pelo chantagista para armar a jogada, podia ser uma conta real. Pouco importava. Em torno de um fato verdadeiro e não conclusivo – a existência da conta – se armou toda a ficção.

O caso Chico Lopes foi um clássico de ficção também. Tinham-se duas informações: o número da conta do banco Pactual em Nova York e três números de celulares que pertenceriam a Bragança, o amigo de Lopes. Em cima dessas informações criou-se a história de que a conta do Pactual era utilizada para pagar Chico Lopes; e os três celulares eram utilizados por Bragança para poder trocar informações com Chico sem ser grampeado.

Na verdade, o número da conta era apenas o número de registro do banco em Nova York. E os números dos três celulares constavam da declaração de renda de Bragança. Essa informação jamais foi divulgada, depois que a denúncia saiu na “Veja”, apesar de cartas enviadas para lá por acusados.

Manual de Sobrevivência

Preparei um Manual de Sobrevivência na Selva, com algumas indicações simples e óbvias sobre como se precaver contra as falsas matérias.

Dossiê Cayman, reportagens sobre Chico Lopes, armação em torno do depoimento da conselheira do Cade (Conselho Administrativo de Direito Econômico) Hebe Tolosa na Polícia Federal, o sujeito que se dizia lobista do diretor-geral da Agência Nacional de Petróleo (que, depois, descobriu-se que era meio desequilibrado), todos esses fatos comprovam que não há mais o menor controle de qualidade na produção jornalística como um todo.

Conhecimento

Parte dos leitores tende a considerar que tudo sai em letra impressa é, por princípio, verdadeiro. Um pouco de ceticismo não faria mal. Tipo, toda denúncia é por princípio falsa, a menos que apresentem provas de que é verdadeira. Trata-se de princípio básico de direito, que reza que o acusador tem o ônus da prova.

Verossimilhança

É o critério inicial básico para se avaliar uma matéria: conferir se tem lógica. Se a denúncia diz que o sujeito que quebrou recebia do presidente do BC informações privilegiadas sobre o câmbio, a denúncia não tem lógica: se recebesse, teria enriquecido e não quebrado. Da mesma maneira, supor que quatro políticos, sem afinidades pessoais entre si, pudessem abrir uma conta conjunta, e batizá-la com suas iniciais é algo tão extravagante que deveria desqualificar a denúncia no seu nascedouro.

Evidências

Há denúncias que vêm acompanhadas de provas, outras que apresentam meras conclusões. O repórter que chegou à determinada conclusão, mesmo que não revele a fonte ou não disponha de provas, tem por obrigação revelar todos os elementos que lhe permitiram concluir. Quem tem elementos, apresenta. Quem não apresenta, é porque não tem. Se não pode apresentar testemunhas, o repórter tem, no mínimo, que apresentar fatos, circunstâncias, detalhes que lhe foram contados, para que o leitor possa avaliar se a suposição tem base ou se é chute. Se não apresentar, é chute.

Fitas

Não acredite no jornalista que, ao mencionar determinadas gravações, use adjetivos tonitruantes para qualificá-las (“explosivas”, “impactantes”), mas não mostre nem a cobra nem o pau. Só acredite nos trechos entre aspas, e só acredite naquilo que você está lendo. Se o trecho mencionado não significar nada para você, é porque não tem significado algum mesmo. Qualquer conclusão que a matéria apresente, que não for aquela que você pode tirar objetivamente da frase entre aspas, é cascata. Se os trechos do “grampo” que foram publicados não tiverem importância, é porque o que não foi publicado tem menos importância ainda.

Luis Nassif

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