A canibalesca elite do atraso

O festejado livro de Jessé Souza tem sido resenhado e comentado nas redes sociais. As entrevistas que o autor deu sobre sua foram filmadas e difundidas amplamente. Acatado por adversários, ele reagiu de maneira vigorosa jogando gasolina na fogueira. https://www.revistaforum.com.br/2017/10/24/jesse-de-souza-responde-criticos-e-desafia-professor-da-usp-para-debate-publico-na-puc/.

Não vou falar aqui dos méritos do livro. Também não vou inventariar as principais idéias do autor como tenho feito com outras obras. Vou apenas divagar sobre um aspecto que me pareceu obscuro em “A elite do atraso”.

Jessé Souza culpa a elite paulista por ter criado o que ele chamou “ralé brasileira”. Isto teria ocorrido mediante ação (importação de mão de obra européia acostumada ao trabalho assalariado) e omissão (abandono dos negros libertos à própria sorte). Este sistema de exclusão social teria chegado intacto até nós e explicaria tanto o ódio aos pobres (e quase sempre negros) quanto a violência policial que perpetua a segregação econômica, política, social, culturas e até racial. A violência policial nas favelas, nesse contexto, seria uma sobrevivência daquela que era utilizada contra os quilombolas.

“Esse esquema funciona até os dias de home sem qualquer diferença. Esse abandono e essa injustiça flagrante é o real câncer brasileiro e a causa de todos os reais problemas nacionais.” (A elite do atraso, Jessé Souza, editora Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2017, p. 84)

Jessé apontou os problemas que identificou na obra de Florestan Fernandes. Ocorre que ele mesmo incorreu num outro problema: o deslocamento espacial.

O câncer social que o pesquisador reputa ser nacional é um fenômeno que ocorreu especificamente no sul e sudeste, onde a “ralé brasileira” teria sido construída. Os quilombos que sofreram repressão mais feroz e violenta se encontravam na região nordeste. Em Eldorado-SP (antiga cidade de Xiririca) o quilombo do Ivaporunduva existe há séculos e foi tolerado http://www.quilombosdoribeira.org.br/ivaporunduva/historico.

É evidente que esta tolerância política não resultou em ganhos econômicos para os quilombolas, mas sua especificidade não poderia ter deixado de ser considerada. Além disso, apesar de serem brancos e/ou descendentes de indígenas, milhares de sitiantes pobres do Vale do Ribeira estão em condições semelhantes às dos quilombolas do Ivaporunduva. Eles também pertencem ao que Jessé chamou de “ralé brasileira”, mas o processo de sua inserção nesta classe foi diferente e isto deveria ter sido objeto de estudo.

O deslocamento espacial e o uso de generalizações, porém, não invalida o esforço intelectual do pesquisador. Muito pelo contrário, creio que o autor de A Elite do Atraso deve continuar pesquisando para nos brindar com obras ainda mais ousadas e totalizadoras. Faço aqui uma modesta sugestão.

É cediço que durante séculos os escravos negros foram valorizados em oposição aos índios, considerados preguiçosos, pérfidos, enfermiços e perigosos. Considerados inadequados até para a escravidão, os índios que sobreviveram ao choque da colonização foram abandonados à própria sorte, indo fixar residência nas áreas não desejadas e não disputadas pelos colonos.

A mesma estratégia do abandono teria seria empregada em relação aos escravos libertos após a proclamação da Lei Áurea. Como subproduto desta Lei, considerada tão humanitária pela elite do atraso, teria ocorrido uma verdadeira degradação dos negros. Eles perderam sua finalidade econômica (fenômeno apontado por Jessé Souza) e regrediram ao status de inúteis que era reservado há séculos pelos indígenas. Portanto, poderíamos dizer que eles se tornaram tão invisíveis quanto os próprios índios.

Desde então, negros libertos, indígenas, mestiços e sua prole tem sido condenados a indigência. Os vocábulos indígena e indigente não pertencem a mesma raiz etimológica https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-etimologia-das-palavras-indigena-e-indigente/26406. Mesmo assim sua aproximação forçada se tornou um fenômeno antropológico importante no Brasil.

A antropofagia, prática considerada atroz e que, pelo menos aos olhos dos colonos, legitimou o combate aos índios canibais no século XVI sofreu diversas mutações. Ela deixou de ser um ato de vingança ritual que retribuía a agressão e recuperava a integridade da comunidade mutilada pelas guerras tribais do passado (Florestan Fernandes) e se tornou uma proposta estética (Mário de Andrade). Agora a antropofagia se desloca da cultura para a economia política.

O capitalismo tupiniquim, regime econômico voraz que devora nossas florestas e jazidas minerais, não foi e ainda não quer ser capaz de devorar os indigentes (a “ralé brasileira”, como diz Jessé Souza).  A elite do atraso considera os indigentes seres econômica e socialmente indigestos. Isto explica porque a ousadia da ralé ao eleger de Lula e Dilma Rousseff foi considerada imperdoável. Ela causou uma indigestão nos donos do poder financeiro.

Lula tem que ser sacrificado, mas as relações com esta vítima não vai terminar “…como se poderia supor, com o massacre.” (A função social da guerra na sociedade tupinambá, Florestan Fernandes, editora Globo, São Paulo, 2006, p. 336). Além de exterminar Lula jornalística, jurídica, política e partidariamente, a elite do atraso precisa observar outros ricos que terão “…um duplo objetivo: 1) consumar a ‘destruição’ da vítima; 2) evitar que o seu ‘espírito’ se tornasse nefasto para o sacrificante e para a coletividade. O primeiro objetivo era conseguido através da antropofagia ritual; o segundo, em parte por meio dela, ,as especialmente por intermédio de ritos de purificação do sacrificante ou ritos de renomação.” (A função social da guerra na sociedade tupinambá, Florestan Fernandes, editora Globo, São Paulo, 2006, p. 336).

A Lava Jato é um ritual de purificação antropofágico. Isto explica porque o Sistema de Justiça rasgou a Constituição Federal e transformou a técnica do Direito num tacape. O problema é que ao fazer isto, os descendentes dos colonos perderam a única coisa que os diferenciava dos seus contrários. 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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