A integridade de Dilma, o golpe e o dilema do brasileiro, por Sérgio Reis

A integridade de Dilma, o golpe e a rejeição do brasileiro à corrupção como mera questão moral – e não ética

por Sérgio Reis

Uma das questões interessantes desse (farsesco) processo de Impeachment é que ele produziu um resultado diametralmente oposto às expectativas de um contingente social significativo. Explico. Por aqui, pelo menos dois elementos sempre acompanharam vigorosamente, no sentimento social médio, a política nacional: o personalismo e a rejeição moral à corrupção.

O relato do pai do insuspeito humorista Rafinha Bastos, que militou com Dilma Rousseff no PDT gaúcho  soma-se a tantos e tantos outros no entendimento sobre o caráter incorruptível da ex-Presidenta, jamais afeta a negociatas, conchavos e joguetes. Inobstante tantos e tantos outros defeitos, Dilma jamais foi seriamente acusada de qualquer prática corrupta. Arrisco-me a dizer que ela foi a mandatária pessoalmente mais íntegra da história deste país – ou, pelo menos, dos últimos 50 anos.

Não é pouca coisa, considerando-se o trágico histórico nacional e, em tese, essa demanda tão considerável país afora pela lisura da classe política.

Como pode ela ter caído, então, em que pese atender, com seu caráter a essas expectativas populares? E, pior: como pode um contingente expressivo da população ter apoiado a sua queda com base no argumento da corrupção para, em seu lugar, avalizar uma reconhecida classe de políticos profissionais corruptos? Minha hipótese é a de que a busca pela integridade e a sua decorrente rejeição à corrupção nunca foram uma pretensão verdadeiramente ética na formação social brasileira, mas sim uma aspiração eminentemente moral.

Isso significa que a aversão à “roubalheira” sempre se colocou como uma postura essencialmente particularizante, isolada da totalidade, posta do ponto de vista do sujeito consigo mesmo, como um mandamento ensimesmado: “não roubarás”.

Em oposição a essa leitura, uma compreensão ética da questão da corrupção necessariamente a relacionaria ao universal, ao domínio da política, a partir de critérios construídos nos espaços públicos para criticá-la como um processo social, muito mais do que um traço de caráter, i.e., uma mera expressão do sucesso ou da falha da natureza humana em se autocontrolar.

A leitura moralizante sobre a corrupção leva-a a ser compreendida como uma questão em si mesma. Trata-se de uma noção particularmente perigosa para a saúde das instituições quando é associada com o analfabetismo político, isto é, com o desconhecimento sobre como essa arte funciona. É claro que o rampante sentimento antipetista de setores da classe média e dos meios de comunicação tem o seu importante lugar explicativo no golpe, mas ele não explica sozinho o fenômeno.

A leitura moralizante da corrupção leva necessariamente a duas consequências: 1) a impossibilidade de conexão do particular com o universal; 2) uma observação da realidade com base no “dois pesos, duas medidas”. Combinada com o analfabetismo político, leva a um terceiro efeito: 3) o desejo não de que as instituições sejam reformadas, mas sim que a corrupção deixe de ser um tema a ocupar “a minha cabeça”, um tormento a macular o meu juízo e o meu cotidiano.

O analfabetismo político é ingrediente essencial, em sua associação com a leitura moralizante da corrupção, para avalizar a “solução Temer”. Isso porque qualquer sujeito que tenha um conhecimento singelo sobre os processos políticos sabe que a corrupção jamais poderá ser eliminada ou exterminada – esse seria um objetivo incabível até mesmo nas utopias mais pueris.

A questão sempre foi como preveni-la, detectá-la e combatê-la com eficiência e eficácia, para gerar espaços públicos minimamente sadios, e para gerar o sentimento social de que desviar recursos e obter vantagens indevidas, em qualquer contexto, fazem mal às pessoas.

Ora, a “solução Temer” evidentemente não se presta a isso, mas sim a se tentar fazer, na melhor das hipóteses com extrema ingenuidade, com que a corrupção, esse mal moral, pare de preencher os noticiários. E é esse mesmo analfabetismo que prega “tirar um político por vez”, como se fosse esse um processo fabril, tal qual uma linha de montagem de cassação de políticos, exclusivamente dependente de pesquisas de opinião ou de mobilizações ad hoc nas ruas.

A disfuncionalidade causada pela leitura moralizante da corrupção faz, então, com que ao final das contas mesmo o indivíduo moral e íntegro, como Dilma, não tenha vez, mesmo que adote, como ator político, medidas as mais variadas para atacar – com adequação ou não – a malversação dos recursos públicos. Pois não é isso que está em jogo, mas sim a corrupção como desvio particular, a ser evitada no mundo público com base em arroubos personalistas.

Não é por acaso que Covas foi preterido por Collor e sua caça aos marajás em 1989, ou que Suplicy foi vencido por Maluf nas eleições municipais de São Paulo em 1992.

Nunca esteve em jogo uma ética do combate da corrupção, mas sim uma moral, que pode ser facilmente colocada de lado se assim for preciso.

Entramos aqui, então, na segunda consequência dessa leitura moralizante da corrupção: na medida em que ela não se cristaliza como uma questão ética, de vocação sistêmica e valorativa como critério, ela pode ser alijada facilmente em virtude de outras questões, ou mesmo ser esquecida quando estão em jogo, por exemplo, atores políticos que não sejam limpos.

Há claro e manifesto espaço, nesse paradigma, para a falta de isonomia, para a incoerência e, assim, para a conveniência de ocasião. O conservadorismo ideológico é combustível para facilitar o referendo aos políticos de direita corruptos, mas fosse o contexto progressista, o eventual tratamento moralizante – e não ético – da corrupção permitiria apenas a “inversão da pirâmide”. Carecem, então, ferramentais individuais capazes de permitir a comparação de umas atuações com outras. Muito mais fácil é compará-las a “meus valores” (ideológicos), desconsiderando aqueles que com eles colidirem a partir de moralidades de ocasião.

Essa operação ocorre da seguinte forma: primeiro eu avalio a minha moral com relação a valores abstratos, os “mandamentos”. Depois, em um processo autônomo e desconectado do anterior, eu avalio a suposta postura do agente político com base nesses “mandamentos”.

Como a avaliação é moral, o vetor de enfoque parte sempre do particular para o particular, isto é, mesmo que a ação do agente tenha pretensão ampla, é estudada com base naquilo que “me” afeta, como uma questão comportamental.

Considerando-se que nessa percepção moralizante a carga ideológica é indissociável dos “meus” valores (e não de uma concepção que “eu” tenho sobre o público), por evidente a identificação e a rejeição ocorrem com base nesse viés, em uma perniciosa combinação entre moral e ideologia, que afasta ou une um ou outro elemento a depender do caso e da conveniência, jamais cotejando-os em sentido geral – procedimento crítico inacessível em uma abordagem moralizante de fatos sociais.

Daí, então, observamos a dificuldade (ou a inviabilidade) de conexão do particular com o universal. Fosse ética a postura da nossa sociedade em meio ao terrível escândalo da Petrobrás, ou ela teria reivindicado, verdadeiramente, um “fora todos”, ou teria apoiado Dilma para que empoderasse ainda mais a Polícia Federal e outras instituições de defesa do patrimônio público para a operacionalização da Lava Jato.

Teria, ainda, dado um voto de confiança a seu governo diante de sua postura moralmente íntegra de demitir sumariamente mais de uma dezena de ministros suspeitos de casos de corrupção ao longo de sua gestão. E teria, agora, se revoltado contra o Ministério bizarro de Temer – provavelmente a escalação do maior dream team de corruptos da nossa história recente.

Mas não foi isso que aconteceu, nem será o que acontecerá com relação ao último fato comentado. Nem ocorre, por conseguinte, indignação com as centenas de deputados envolvidos em casos de corrupção que votaram favoravelmente ao Impeachment com base em argumentos que proclamavam, com hipocrisia, o combate à corrupção e a defesa da família.

O que se verifica, portanto, é que esse caldo social fornece elementos para se entender como se é possível ter uma situação de não aceitação social da tríade presidente honesto-instituições atuantes contra a corrupção-escândalos gigantescos de malversação descobertos, e de passividade (ou mesmo de anuência) diante de outra tríade: presidente pessoalmente envolvido em escândalos – instituições paralisadas – inexistência de escândalos ou parca repercussão deles.

Como pano de fundo, encontra-se a noção de que, em que pese o comportamento ilibado de um ator político ser uma considerável demanda social, ao fim e ao cabo ele se torna insuficiente para garantir a adesão social a um projeto, em especial quando a corrupção aparece como um repercussão do eficaz desenvolvimento desse projeto, decorrente da tomada de decisão do íntegro mandatário que decide fazê-lo, mesmo que “cortando na carne”.

Isso levanta a hipótese de que a leitura moralizante da corrupção sustentada socialmente inviabiliza (ou desincentiva) justamente o seu combate, na medida em que a cidadania não parece conectar a política pública (o combate à corrupção) à sua implicação necessária (malfeitos descobertos e atacados). Essa conexão essencial adviria justamente do casamento entre uma compreensão ética do problema e de um entendimento sobre o próprio funcionamento da política.

Em síntese, parece que o contorno a esse nó górdio passa por doses cavalares de republicanismo para criar e fortalecer espaços públicos, de forma a se extirpar o “rouba, mas faz” (Maluf) e o “corrupto, mas íntegro” (Cunha).

Na prática, diante dos fatos, parece não haver ainda espaço no tecido social para se discutir a corrupção como uma questão a ser institucionalmente enfrentada. O debate público ainda persiste embasado na ideia de “limpeza geral”, de “masmorra aos corruptos” e de “altar aos heróis” (Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato, com seus salários que superam de 3 a 4 vezes o teto constitucional e seu punitivismo casuístico; o japonês da Polícia Federal – condenado por corrupção).

Por evidente, há de se assumir o papel decisivo de determinadas forças político-sociais na derrubada de Dilma e no fortalecimento do sentimento dentre certas parcelas de que sua saída seria a única medida saudável para o país. Contudo, essa atuação não teria a mesma ressonância se os lugares comuns da sociedade fossem outros.

Como comentado mais acima, o moralismo, ao abordar problemas públicos como desvios comportamentais, particulariza e fragmenta o juízo sobre eles. Na medida em que a avaliação abstrata da postura acaba por adotar o próprio “eu” idealizado como parâmetro e que esse “eu” adota para si certos valores (morais, não éticos), a crítica dificilmente é capaz de superar o autointeresse.

Embora esse encaminhamento negue a política, a política o mobiliza com força, como vimos no Brasil. A radicalização de processos como esse, que expressam a absoluta rejeição da arena pública pelo escrutínio privado, aproxima-se com facilidade de experiências fascistas, em que a “cola social” é a congregação de interesses corporativistas e privatistas que aspiram ao todo sem jamais serem, por definição, hermenêuticos.

Diante desse quadro, cabe à esquerda reivindicar para si a noção de que o combate à corrupção é, sim, uma agenda progressista, desde que ancorada em uma outra compreensão, capaz de transformar a conceituação social sobre o caráter, em si, desse problema. Trata-se de inseri-lo como um processo social, e não como um desvio de caráter; trata-se de postulá-lo como uma questão que impacta os domínios de política pública especialmente caros a essa corrente – como o combate à desigualdade –, dadas as suas repercussões para a eficácia e eficiência das ações governamentais e para a própria concentração de renda; trata-se de avaliá-lo como uma questão sistêmica, que cria incentivos para a corrosão dos espaços públicos a partir dos estímulos que cria para a produção de privilégios para castas políticas e burocráticas. Trata-se, enfim, de uma agenda verdadeiramente ética que precisa ser recriada e recuperada agora que essa força política se encontra na oposição.

Precisa, contudo, se reconfigurada como tal – como aspecto ético, e não apenas moral – para se capaz de influenciar na própria compreensão social sobre a questão – sem, por óbvio, jamais abdicar da coerência entre a atuação particular moral e o sentido universal ético dessa atuação. De outro modo, ao retornar ao poder, as forças progressistas poderão repetir os mesmos erros que cometeram nessa última década, e serão avaliadas sob os mesmos pressupostos de agora: um curto-circuito intransponível.

Redação

8 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. “Os fins justificam os meios….”

    Creio que a Sociedade Brasileira acredita que os fins justificam os meios, e por isso aceita que a Polícia seja tão criminosa quanto os próprios criminosos pois a mesma o faz em nome do “Bem” e sendo assim este novo Governo é corrupto, mas é corrupto do lado do “Bem” … e ignora que o ato é que diz o que é certo ou errado, e não em nome de quê ou quem.

    Em resumo: Hipocrisia.

  2. A integridade de Dilma e a falta de integridade geral

    Sérgio Reis você aborda muito apropriadamente a questão da moral endogena e exogena do cidadão brasileiro. Essa questão, alias, parece-me que é valida para muitos paises e no Brasil é uma maxima. Eh muito comum ouvir de pessoas que sabidamente sonegam impostos, por exemplo, que politicos e governos são corruptos etc. Essas pessoas, geralmente, são as que mais bradam contra a corrupção e arvoram-se baluarte da moral social.

    Quanto à presidente Dilma Rousseff, afirmo que ela não caiu por seus defeitos, mas sim por suas qualidades. Não interessa ao Congresso, à velha elite da imprensa nem ao empresariado e até mesmo ao judiciario um governante honesto. Como disse Maquiavel, variando a forma, se o principe esta muito distante moralmente de seus pares, ele não resistira por muito tempo.

    1. É coerente

      É coerente que as pessoas que sonegam impostos sejam as que mais bradam contra a corrupção, porque o que elas se ressentem é de que seu dinheiro seja apropriado por um Estado que não tem idoneidade moral. Beneficia muito mais o país investindo-se o dinheiro em atividades produtivas do que entregando-o na forma de impostos a administradores corruptos.

    2. Obrigado, Maria Luisa. Ótimo

      Obrigado, Maria Luisa. Ótimo o resgate de Maquiavel.

      A ideia de que os sonegadores sonegam em virtude de um Estado corrupto é em parte verdadeira, mas o argumento completo é na verdade a circunstância de os espaços públicos serem vazios, dando espaço para a vigência do que chamo de “privatismo”. A sonegação não constitui a “única” resposta possível a um Estado corrupto. Na verdade, é uma resposta moralista, no sentido do texto. A resposta ética, em sentido simples, estaria na pressão social por mudança sistêmica, envolvendo a transformação do Estado, do mercado e da própria cidadania – possibilidade que argumento estar fora do radar no debate que vige no senso comum (diferentemente da experiência de outros países que lidaram com o mesmo problema).

  3. Ao meu ver, não há dilema.
    Caro Sérgio Reis,

    Parabéns pelo ótimo artigo, o qual motivou minha reflexão sobre alguns aspectos destacados.

    No entanto, ao meu ver não há dilema algum. Acredito que neste contexto o brasileiro tenha agido, não movido por moral ou ética, mas foi tão somente vítima de manipulação midiática. Uma parcela considerável daqueles que reivindicavam o afastamento de Dilma Rousseff, o faziam sem saber o motivo pelo qual estavam fazendo. Um ou outro talvez pudesse até se referir a “Pedaladas”, mas não se espere que eles saibam definir o que isso seja. Agiram como zumbis, ou seja, seres privados de vontade própria. Incapazes, portanto, de emitir juízo moral ou ético.

    1. Obrigado! Eu também defendo

      Obrigado! Eu também defendo no texto que a manipulação da mídia e a restrição à informação tiveram papéis relevantes no golpe. Mas entendo a ausência de determinados ferramentais viabilizou efetivamente o seu acontecimento, no que se refere à questão da corrupção (central, a meu ver, para criar o “clima do golpe”). Esses ferramentais, que estariam presentes em ambientes públicos saudáveis (solidariedade, isonomia, “vontade de saber”) forneceriam as capacidades mínimas de escrutínio (critério) que não está posta à disposição hoje. Por definição, a compreensão moral dos fatos sociais se dá a partir de um viés comportamental, que coteja o particular não ao todo concreto, mas a um valor abstrato, potencialmente metafísico. Os zumbis a que se refere só podem ser gerados em cenários de profundo esvaziamento dos espaços públicos e de subsequente “fuga ao particular”, de realização absolutizada de interesses privados. Nesse sentido, a manipulação midiática, a meu ver, mobilizou justamente esse moralismo como se fosse um grande sentimento de indignação pública, quando na verdade esvaziou ainda mais o juízo ético a partir da transformação do “dois pesos e duas medidas” em “novo normal social”.

      1. Perfeito!
        Obrigado por sua resposta ao meu comentário, pois esclareceu um ponto que talvez tenha passado batido durante minha primeira leitura do seu texto. Concordo plenamente com você acerca do problema causado pela ausência de ambientes públicos saudáveis, como espaços de discussão e aprofundamento de questões éticas. Acabei de reler o seu texto, agora sob esse prisma, e confesso que gostei ainda mais. Parabéns!

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador