Negros de bombacha, no cavalo, tomando chimarrão

Enviado por Miriam L.

O invisível gaúcho negro. Um ensaio fotográfico

Por Eduardo Tavares

Da Rede Brasil Atual

Alguém lembra de ter visto um negro de bombacha, num cavalo, ou tomando chimarrão? Ou uma prenda negra dançando num CTG gaudério? Difícil. A representação imagética gerenciada por cabeças brancas os omite

Vilmar Fortes tem a força no nome e no olhar. Há também dignidade e paixão nesse olhar. Vilmar é negro e gaúcho. Um trabalhador rural que interage com seu ambiente com sapiência, habilidade e carinho. Sabe tudo da terra que pisa. A qual pisaram seus pais e seus avós, escravos, africanos, arrancados da sua terra natal com violência, por homens brancos, mercenários desalmados que visavam apenas a riqueza, muita riqueza.

Há mais de 15 anos Vilmar trabalha na Fazenda Capão Alto das Criúvas, em Sentinela do Sul, 110 quilômetros ao sul de Porto Alegre. Depois do mate ao alvorecer, ordenha as búfalas e vai aplicar os preparados biodinâmicos na lavoura de arroz orgânico que a família Volkmann produz. É tratado como um filho pelo patrão, João Batista, que reconhece: “Temos todo esse conforto hoje graças a essas pessoas que foram sequestradas, escravizadas e trabalharam com tanto sacrifício para o crescimento deste país. Devemos tudo a eles”.

Hoje Vilmar é um dos 1,8 milhão de afrodescendentes vivendo no Rio Grande do Sul, cerca de 16,3% da população. É uma cifra que impressiona os brasileiros que consideram o Estado sulista um reduto povoado apenas por brancos, descendentes de europeus. A existência do negro gaúcho é uma realidade que se esconde nas brumas do preconceito racial e da estratificação social. Essa discriminação se torna mais evidente no meio rural.

Alguém lembra de já ter visto alguma imagem de um gaúcho negro, de bombacha, montado num cavalo ou tomando chimarrão? Ou uma prenda negra dançando num CTG gaudério? Dificilmente. Esse é um fato que tem sido omitido na representação imagética da cultura gaúcha, normalmente gerenciada por cabeças brancas. O maior símbolo gaúcho, a estátua do Laçador, obviamente, é de um orgulhoso homem branco.

Essa deslealdade cultural levou este autor a dar a devida visibilidade ao afrogaúcho, produzindo a exposição fotográfica O Invisível Gaúcho Negro. Não foi um projeto que partiu de uma tese e de uma ida a campo para comprová-la. Na verdade, bastou um mergulho no próprio arquivo fotográfico. Uma coleção de fotos de negros no meio rural surgiu naturalmente ao longo dos anos e caminhos percorridos pelo interior do Rio Grande em reportagens para várias publicações. No campo, lidando com o gado, no fogo de chão do galpão, assando o churrasco, tomando mate, dançando a chula, competindo nos rodeios, cantando nos festivais, sempre, sempre, estava presente o negro, gaúcho. Fazendo tudo isso com maestria, paixão e orgulho. Mas, sempre, invisível na representação da cultura gaudéria.

Uma injustiça histórica a ser reparada. Navegando um pouco no nosso passado constata-se que em 1822 metade da população rio-grandense era negra. Consequência da bárbara escravidão que durou no Brasil até fins do século 19. Nossa biografia pátria carrega a vergonha de ser uma das últimas nações a acabar com a escravidão. O saldo, trágico, foram 5 milhões de africanos que pereceram no trajeto do tráfico da África para as Américas, sendo um dos maiores genocídios da história da humanidade. Ficamos atrás, apenas, do holocausto nazista.

Foi a força moral e física dos escravos sobreviventes, suportando toda sorte de sacrifícios e humilhações, que alavancou a economia do Rio Grande do Sul e projetou essa terra esquecida do sul como uma potência no cenário político e econômico brasileiro. Relatos de viajantes estrangeiros, como o botânico francês Auguste Saint-Hilaire, em 1821, comprovam a participação do negro em todas as atividades do cotidiano rural.

Numa charqueada, em Pelotas, registrou: “Há sempre na sala um negrinho de 10 a 12 anos, cuja função é prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. À noite chega-lhe o sono e, quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é essa a única casa que usa esse impiedoso sistema: ele é frequente em outras”.

Para completar o massacre, os escravos foram os “patriotas” enviados para combater na Guerra do Paraguai e na Revolução Farroupilha. Com essa mortandade, aliada ao tráfico interno para os estados cafeeiros, em 1858 os negros gaúchos tinham sido reduzidos a 25% da população do estado.

A afirmação da identidade racial e a preservação da cultura afro no interior tem se cristalizado com muita força nos quilombos rurais. São mais de 50 em todo o estado, com uma concentração maior na zona litorânea. A comunidade quilombola Ibicuí da Armada está localizada no município de Santana do Livramento, na divisa com o Uruguai. São 35 famílias, totalizando 110 descendentes do escravo Manoel Vicente Vaqueiro. O sobrenome não é coincidência. É uma evidência da habilidade dos afrodescendentes no manejo da pecuária.

O escravo Manoel foi comprado em Pelotas, zona das charqueadas, pelo estancieiro Bragança e levado para Livramento. Com a abolição da escravatura o patrão, além da alforria deu-lhe um pedaço de terra. Manoel tinha tanta destreza na lida com o gado que acabou adotando o sobrenome Vaqueiro e, hoje, seus descendentes, além de herdarem o nome continuam preservando a cultura e são especialistas no artesanato com lã de ovelha. Dona Valeriana Vaqueiro, a matriarca, tem 97 anos, faz crochê, anda a cavalo e conta, com lucidez e emoção as histórias da família.

As gerações alemãs pós-guerra, herdeiras da vergonha do genocídio nazista, fizeram um “mea culpa” com a humanidade e mostraram que podiam ser uma nação civilizada. Os brasileiros, finalmente, estão assumindo a responsabilidade pela herança escravocrata e começaram a pagar a dívida com seus afrodescendentes, agora irmãos de sangue. Programas de inclusão e promoção social, como as cotas de ingresso nas universidades públicas e empregos estatais estão sendo criados para começar a consertar estragos da discriminação e do preconceito originados do poder oligárquico, quase sempre gerenciado pela elite branca.

Mas não bastam decretos. A mutação cultural demanda consciência e tolerância da sociedade. É no convívio diário, baseado no respeito, na solidariedade e na igualdade que vamos pagando nossa dívida do passado e mostrando que podemos, também, ser um povo civilizado e fraterno.

Redação

13 Comentários

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  1. Pois então, não acharam o inédito

    o pesquisador não encontrou minha tia Jurema, que acho, é a única mulher que usa bombachas. e é claro também é negra. para o ódio dos tradicionalistas, que não admitem uma mulher de bombacha.

  2. O preconceito gaucho é

    O preconceito gaucho é interessante.

    Um dos maiores cantores populares gaucho é um negro, Lupicinio Rodrigues.

    O RS já elegeu um governador negro Alceu Colares.

    A maior ginasta brasileira é gaucha,  Daiane do Santos.

    O RS já produziu alguns jogadores negros de destaque, entre eles Ronaldinho Gaucho.

    O RS é um dos estados onde existe a menor taxa de casamento inter-raciais.

    E para completar, esse povo não sabe fazer churrasco.

    Eles espetam uma costela de boi inteira, enfiam o espeto na terra, fazem uma vala no chão e colocam carvão.

    Ficam horas e horas tomando um negócio verde amargo esperando a carne assar.

    Enquanto isso ficam ouvindo uma sanfona com um som diferente.

    Esse povo é meio esquisito, eh,eh,eh

    1. Quem é “meio esquisito”, Cara Escura?

      Quer dizer que preconceito contra gaúcho pode, né? Mas você se invoca quando é contra pretos e nordestinos.

      Será que você “como negro” se sentiria bem, lendo que faz parte de um povo que “é meio esquisito”?

       

    2. Gilson, estás meio por fora do assunto.

      Essa tradição de fazer churrasco dessa forma, com algumas variações, é comum ao RS e aos países platinos. Isso vem dos tempos das tropeadas, quando a forma de assar a carme tinha que ser improvisada, pois o campo era o lar dessa gente. E saiba que sou fruto desta mistura de espanhol, português e índio, mais uma coisinha de italiano. As minhas avós sempre foram chegadas num índio cor de cuia como chamamos por aqui. A mistura é interessante, tem gente de olho e pele de tudo que é cor.

      Que ainda existe preconceito por aqui, é fato, mas a sua demonstração de preconceito é da mesma forma, vergonhosa.

  3. A esperança é a ÚLTIMA que morre.

    Na Indonésia , brasileiro morre, terrorista vive. (Patricia Campos Mello – Folha de São Paulo – 16/01/2015)

    Organizações de direitos humanos, que se opõem à pena capital em qualquer circunstância, ressaltam que tráfico de drogas não é um crime violento.

    O fato é que a lei é dura contra uns, não tão dura contra outros.

    Umar Patek, extremista islâmico que admitiu ter fabricado as bombas usadas nos atentados de Bali, que mataram 202 pessoas em 2002, escapou do corredor da morte. Foi condenado a 20 anos de prisão

  4. #O saldo, trágico, foram 5

    #O saldo, trágico, foram 5 milhões de africanos que pereceram no trajeto do tráfico da África para as Américas, sendo um dos maiores genocídios da história da humanidade. Ficamos atrás, apenas, do holocausto nazista.#

    Boa abordagem desse texto ,só fica a ressalva para esse paragrafo ,segundo estimativas baseadas em objetos encontrados em antigas cidades indigenas da america do norte, a populaçao indigena na epoca do descobrimento das americas foi estimada em 200 milhoes de individuos (do tamanho da populaçao brasileira atual) ,isso somente no que chamamos hoje de EUA e Mexico,afirmaçao amplamente divulgada por Tom Morelo do grupo de rock R.A.M, o trafico negreiro e a extinçao das civilizaçoes indigenas disputam cadaver a cadaver o titulo de maior crime contra a humanidade !

  5. ‘A las putcha, tchê’ !! Não

    ‘A las putcha, tchê’ !! Não esqueçam do negrinho do pastoreio.

     

    “O BRASIL PARA TODOS não passa na REDE GLOBO de SONEGAÇÃO & GOLPES – O que passa na REDE GLOBO de SONEGAÇÃO & GOLPES é um  braZil-Zil-Zil para TOLOS”

  6. ‘A las putcha, tchê’ !! Não

    ‘A las putcha, tchê’ !! Não esqueçam do negrinho do pastoreio.

     

    “O BRASIL PARA TODOS não passa na REDE GLOBO de SONEGAÇÃO & GOLPES – O que passa na REDE GLOBO de SONEGAÇÃO & GOLPES é um  braZil-Zil-Zil para TOLOS”

  7. Gaúcho origens

    O gaucho original nunca foi o imigrante branco, nem os coroneis/ estancieiros que vieram depois, más sim os nativos indigenas que habitavam os pagos do sul do Brasil, Uruguai e norte da Argentina, estes nativos aos poucos foram se miscigenando  e aculturando com brancos e negros, gerando o gaucho popular, o peão trabalhador dos pampas…

    No Rio Grande do Sul, uma das primeiras regiões habitada pelos portugueses foi a hoje cidade portuaria de Rio Grande-RS.

    E neste extremo sul do estado, especialmente na região dos “CAMPOS NEUTRAIS”, é onde surge uma das manifestações do tipo original do gaúcho do RS , mistura de portuguêses, castelhanos e índios, esta é a verdadeira origem do tipo gaúcho. Anterior a colonização alemã e italiana.

    E claro, os negros também já estavam no RS, bem antes da colonização alemã e italiana e por isto, negros gaúchos típicos não faltam…

    *Citando:

    “O Minuano e o Charrua foram povos indígenas que habitavam esta região e que assimilaram aspectos de cultura européia, tornando-se um problema para os colonizadores. O domínio não se restringia somente ao cavalo e ao gado, mas ao fato de serem adaptados e conhecedores destes rincões. A boleadeira era uma de suas ferramentas utilizadas para a lida campeira, antes confeccionada pelos seus ancestrais, e foi assimilada
    pelo colonizador. Também outras características da cultura indígena foram absorvidas e perduram entre a nova sociedade.
    (…)
    O indígena, por sua vez integrado no seu
    habitat, obtém outro meio de sobrevivência: a caça do gado xucro (daí o churrasco feito no “fogo de chão”).
    (…)
    O cavalo, um dos principais elementos adotados pelo indígena, apesar da apreciação pelo sangue e a carne de potro, tornou-se fundamental para suas atividades pelo pampa. Dessa forma, ninguém melhor do que eles para interpretar este ambiente desconhecido pelo colonizador, este último, possuindo boas relações com os indígenas.

    Em outubro de 1750 celebraram-se os batismos dos Índios Minuanos […]
    Os batizados, entre adultos e crianças, foram pouco mais de 60. Os Índios Minuanos, com serem os mais valorosos da campanha, eram já em pequeno número, porque os Índios, chamados Tapes, e outros chamados Charruas, em muito maior número, os andavam acabando e destruindo. Eram de gênio e natureza bastante doce e amicíssimos dos Portugueses, de que é suficiente prova não haver notícia que o Minuano
    roubasse ou matasse português algum […] (CESAR, 1981, p.143).

    O Minuano e o Charrua têm importante contribuição para o
    processo de colonização e exploração econômica, entretanto um dos benefícios de que o colonizador dispõe abrevia sua extinção: o cavalo (4) .

    4.(O indígena ao dominar o cavalo tornou-se mais “livre” ou “bandoleiro”, cometendo abigeatos, o que marcou o seu comportamento perante a “nova sociedade” que ocupava
    suas terras.)

    Encontramos também o homem do campo denominado
    changador, considerado de grande virtude na lida campeira. É tratado pela historiografia a origem do gaúcho. Possui um caráter violento e solitário. Suas origens são do ventre indígena. Vagava solitário pelos pampas acompanhado do laço, boleadeira e do cavalo.

    Veio o changador dos toldos indígenas em conseqüência da
    miscigenação do índio com o espanhol e o português. Era um “tipo” solitário. Coquimbo para a tribo em cujo seio nascera, pois as suas características fisionômicas faziam-no estranho ao meio. Por outro lado, jamais se incorporara aos brancos porque aprendera, desde o ventre materno, a odiá-los, a enxergá-los como invasores e senhores de escravos. Somente com uma coisa se identificava, que lhe moldara a
    maneira de ser e de sentir; a maneira de agir e de viver – a terra (AMARAL, 1973, p. 51-52).

    Para alguns autores, o changador é considerado abigeatário,
    mercenário; para outros, como uma figura importante para o
    desenvolvimento do gado vacum. São os diversos conceitos que
    empregam para este indígena “meio” branco, que como vestimenta utiliza o couro, e o garrão de potro como calçado.
    (…)
    Uma análise a partir do trabalho de campo e bibliográfico sugere a hipótese de que, ao se estabelecer o Tratado de Santo Ildefonso, esta área (dos “Campos Neutrais”) não poderia ser habitada nem pelos portugueses, nem pelos espanhóis; só existia um homem “livre” e natural deste pampa, que poderia “habitá-lo”: o Minuano.

    Desse modo, podemos imaginar o indígena como “instrumento” dos portugueses e dos espanhóis para exploração de uma área que era restrita aos seus interesses econômicos.”

    *Fonte:
    OS PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA
    DOS CAMPOS NEUTRAIS

    (Por Osvaldo André Oliveira)
    ——-

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